segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Nós e a Cidade II

Por dificuldade em andar no escuro, no cinema cumpro o horário. Se entro tarde, insiste-me fulgurante a ideia de quão bom seria que alguém me levasse, pela mão, ao lugar. Como nenhuma mão se me apresta, levanto muito as pernas e os pés, a imaginar degraus em todo o lado e a desconfiar das fiadas de lâmpadas no solo; olho-as com cuidado para as não pisar, no receio de vidro fino a partir e descargas de impiedosos filamentos  que me abocanhem os pés. Depois, a ideia de incomodar pessoas já sentadas, é-me funesta. Ora, naquele lusco-fusco, as letras que assinalam as filas e os números dos lugares emigram ou tornam-se indistinguíveis. Tudo razões mais que suficientes para entrar com luz. Ou seja, com aquela média luz que não chega a ser. Não basta o ar de catacumbas de que ora sofrem os cinemas, nem quando o filme intervala, começa ou acaba, a luminosidade é decente. Quase parece que, em vez de ir assistir a um filme, estamos prestes a envolver-nos numa actividade subversiva. E depois querem clientela! Tanto ouvi falar de se namorar na última fila… e agora é um deserto. E sobre este despovoamento se poderiam escrever livros compridos. Mas não tive a felicidade de frequentar a última fila, portanto…
Entrámos um quarto de hora mais cedo para ver “12 anos escravo”. Por saturação de saldos e cansaço de corpo e mente. Tínhamos tempo e escolhemos o lugar com requinte: mais atrás do que à frente e mais ou menos a meio da sala. Mal nos sentámos, os nossos pés em coro, muito obrigado. E bem ouvi o meu esqueleto a aliviar num suspiro, ufa! 
Entretanto, desceu-nos uma paz feita de penumbra e cheiro a mofo acompanhada de música ambiente. Procurei os óculos e lancei-os ao lugar a fim de evitar mais episódios - umas vezes não os levo e não consigo ler as legendas; outras, engano-me e tenho de ver o filme de óculos de sol; algumas, não utilizo os óculos 3D; e uma vez soltou-se uma haste –  culpa do parafuso que se desenfiou - e levei o tempo a levar a mão à haste que não havia e apanhar os óculos do chão. 
Ambas tínhamos visto a apresentação do filme na TV e, ainda a fita dava os primeiros passos, avisámo-nos mutuamente de que algumas cenas eram fortes. Logo de seguida, deixei de ter amiga e fiquei sozinha num frente a frente com  o filme (suponho que à minha amiga tenha sucedido o mesmo). Pela minha parte, desatei a sofrer desalmadamente que é a única forma que sei de reagir – reagir, pois, é puramente animal – ao sofrimento injusto. Um negro que é livre e ainda assim o raptam e fazem escravo. À mercê de todos e de qualquer um. Quanto vale a vida humana sendo escrava? Nada. Quanto vale a força e o poder branco sobre um homem justo mas negro? Tudo. No entanto, ia preparada para essa relação desigual senhor-escravo, para o preconceito que se baseia na diferença de cor. Mas a vida não me apetrechou para as brechas que o filme abre, as secções que cria, as grades da alma humana que mostra. Fugi a escrevê-lo porque me ficou em amálgama e me obriga a voltar e isolar do meio da trama esses sinais de naufrágio. Mas tenho de o fazer: pôr etiquetas, catalogar. Que, mais além, não consigo.
Curiosamente, as personagens que me retalharam foram desempenhadas por Lupita Nyong’o e Michael Fassbender. Ou, a escrava negra por quem Fassebender – um dono de plantação prepotente e esclavagista - nutre estranha e alucinada paixão. E o que é para muitos a história de um negro livre raptado e feito escravo durante 12 anos, foi para mim a história das mulheres do mesmo tempo e de outros, num mundo de poder. Masculino. Onde não contam. Ou onde, por inadvertidamente contarem demais, descontam. É o que acontece à personagem de Lupita. A jovem escrava nasce para nós dentro da plantação. Adolescente ímpar. A melhor apanhadora de algodão, a superar os homens. Sofre os efeitos da paixão desenfreada do patrão, casado com uma menina branca. Paixão patética, absurda, contra ele mesmo e a sua moral racista. E por isso gostei de Michael Fassebender. Porque soube imprimir ao seu master não só a selvajaria sem escrúpulos da época como a raiva contra si mesmo, o ardor viral de uma paixão apodrecida de desejos de presença e domínio, que não suporta as breves ausências da escrava, que exige vê-la sempre, escravizado ele pela posse de um "objecto" que em tudo(?) lhe pertence e não consegue capturar. Simultaneamente, sentimos no fazendeiro uma espécie de asco de si mesmo que se descontrola na presença da garota e como que se vinga nela de si; que bebe à exaustão porque o álcool tem seus poderes sobre a memória e ajuda a embrutecer. 
Desacredito que volte a este filme. Vai arder-me até que o tempo, que tudo apaga, me consuma. É verdade, o poder baseado na força e na instituição do preconceito faz-se desmesura e catástrofe. E a escrava era uma semi criança a desmaiar no sexo furioso que a violava, que era chicoteada sem dó pelo fazendeiro enfeitiçado (com uma predilecção-tara por meninas púberes), que sofria dele o que a ele pertencia e também o que era nele o ciúme da patroa. E queria morrer. Assim, natural como a sede ou a fome. A morte também é libertação. 
Quase no final do filme, quando, enfim, o amigo é reconhecido como homem livre, é a imagem dela a correr atrás da carroça que nos atinge. A imagem desesperada de quem perde para nunca o seu esteio. E a mim me pareceu que ali estavam, rojadas e impotentes, todas as mulheres. 

O filme termina com um regresso do ex escravo à família de origem, uma recepção calorosa; antevemos mesmo o futuro de luta daquele resistente a quem só a morte há-de imobilizar. Mas o que nos enche a alma é a lancinante perda, gritada, rouca, atrás do rodado do carro. E  o vazio apossa-se da paisagem e toma-nos por inteiro.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Nós e a Cidade I

As minhas fantasias são quereres simples. Ir a lugares com amigos, por exemplo. Viajar com eles. Corrijo, é mais com elas. E a quem retorquir, ah, mas isso não é uma fantasia, é um facto normalíssimo. Pois aí é que está, digo eu, não é. É um desejo que tem a aura da inconcretude, o que lhe outorga e mantém o fantástico. De pleno direito.
Existe uma série na TV que desgosto mas invejo. Abalizo-me a tais conclusões porque já vi uns dois ou três episódios e um filme sobre. E aquelas meninas-bem, armadas ao pingarelho e a fingir que são pessoas normais e medianas, sempre me bolem com seus probleminhas inóquos e mirabolantes preocupações de sexo que compartilham na boa. “O Sexo e a cidade” é uma série americana que se vê bem se estamos cheios de dor de cabeça, aborrecidos da vida e não nos apetece pensar. Olhamos e, a um clique, dos antípodas do nosso quotidiano, surgem as quatro vamps, qual delas a melhor, e mais a sua vida de caca; e é engraçado, chegamos a sorrir. Foi assim que passei os dois ou três episódios. E mesmo o filme. Contudo, as quatro eméritas têm uma coisa que invejo: saem juntas, almoçam, fazem compras, têm dias santos na semana, para reunir. Isto, digamos, alimenta-me a fantasia.
Não desisto de fantasiar. Todos os anos faço umas propostas de férias ou dias a passar em qualquer lado à amiga que me parece mais livre e próxima dos meus anseios. Puro engano! Até hoje, consegui que nos encontrássemos – na vida - umas cinco vezes fora de portas. O que, face ao tudo em família das outras, é uma enormidade de tempo. Nunca tínhamos ido ao cinema. Pensei no “12 anos escravo”. Marcámos hora, conferi tudo e lá fomos as duas depois de almoço para um Centro Comercial muito a armar, cheio de marcas, cheiros e pessoas que, por auto comparação, semelham marcianos.
Chegámos cedo e, depois do bilhete, sobreveio-nos a canseira da carestia nos saldos; a sensação de ser inútil o tempo que ali gastávamos, a nossa bolsa um gemido, não alcanço nem que me estique toda. Das minhas entranhas subia uma zanga surda-muda e acho que pus olhado a dois ou três casacos, fuzilei umas quantas blusas e derreti uma lingerie estapafúrdia que nem percebi para que serve (a bem dizer só a considero na sua utilidade mais evidente, que a qual a tal peça não devia ter, ou eu tapadinha de todo).
Antes que houvesse uma explosão, saímos e enfiámos noutra loja  - em saldo, pois. Ia-me dando uma coisinha má. Piorei. Mas a ritmo diverso. Saímos da classe média alta para um mergulho na média baixa. E logo eu, em vez de roupa, começo a ver dedinhos de criança a coser bolas de futebol, cortar peças, tricotar casacos e blusas a desoras, pregar fechos em calças – das coisas mais execráveis que existem na costura - dias sem noite, famílias inteiras à costura, a cumprir prazos por pagamentos de miséria. Que não é ordenado aquela exploração. Havia peças por todo o lado, entre 5 e 20 euros; caídas pelo chão, a escalavrar sobre cabides, atravessadas na rima de casacos, num aperto a amontoar em crescendo, em posições de dar dó, que se via mesmo que estavam perdidas da família. Quase me deitei a arrumar – ainda ajeitei algumas – enquanto supunha as coisas lindas submersas, a adivinhar-lhes a transpiração abafada.
Havia mulheres em todo o lugar, agarradas a peças ou a desprezar umas e agarrar outras sem quê, para se enfiarem no vestiário, saírem e recomeçar tudo de novo. Decidi-me pela companhia aos vestidos de alças que, fora da orgia consumista, dormitavam nos cabides. E fiquei ali a festejar-lhes rendas e leveza, descorajosa de os retirar da cama, quem sabe não me desciam, se agarravam aterrados ao meu pescoço, onde é que eu estou. Sem lhes precipitar o sono, saímos devagar e fomos – pensávamos nós - descansar o espírito para o cinema.

 É doentio assistir a isto. De saldos.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Resquício

O dia está doente, pensou, rente ao parapeito. E logo a mão parou ante a cortina, a recear comprometer-lhe a leveza; quem sabe se, disposta a carregar as maleitas do dia, ela engasgava a oscilação sob os dedos. Lá fora, a chuva era muda e caía em mansidão, gotinhas de borrifador desmanchavam-se no vidro a alargar até escorrerem em regos pequenos. Através da trama aberta do tecido, observou, como de dentro de uma nuvem, o quadrado húmido da praça a escurecer, as árvores semidespidas, quietas, a fingir-se de mortas para aguentar o inverno. Teve vontade de as chamar, psst, tu, sim, tu mesma, junto ao banco de pedra. Contudo, desistiu. Elas ensimesmavam por inteiro na semimorte, a reunir forças para a rebentação da primavera e a beber por antecipação toda a água que o Verão lhes havia de negar. O brilho metálico dos automóveis estacionados em volta do jardim refulgia acetinados aquosos, aqui e ali partidos pelos troncos, caixinhas pequenas e sombrias à chuva, a perderem contornos no avanço dos minutos. É só impressão de crepúsculo, não deformam nem desmancham, amanhã estão ali todos tal qual, disse para si. E anteviu em nitidez a segunda feira de portas a bater, cães a ganir, crianças puxadas para dentro dos automóveis, um ou outro impropério que saltou e não coube no carro que arrancou num repente. E ele que cortara o ar de jacto,  incógnito da sua brevidade e sem tempo de ver por onde andava, antes de se sumir no sulco entre as pedras da calçada , agora deixam-me aqui sozinho e vou para onde? Noutra esfera, os senhores de passear o cão, agastados, despacha-te que este frio me gela os ossos. E apertam a gabardine com o pijama a espreitar, uma ponta de calça esmorecida sobre o chinelo, cabelos ensonados e sem ânimo, para que lado caímos, não temos forças, um bocado da gola virado para dentro, aqui é mais quente, deixem-me estar, por favor. E os cães em euforias de cauda, imunes ao sono e ao frio, a gozar a liberdade de se aliviarem, patas em alegria do chão que pisam, o regalo de adivinhar cheiros na ponta do focinho. A zanga amuada dos autocarros na rua a tomar balanço, embraiados em mudanças de hora de ponta, e uma ou outra persiana subida aos arranques custosos, numa constância de vai à frente e vai atrás, que o tremedor esforçado da mão leva até meia  janela. E lá atrás, um rosto átono  a voltar-se e esvair em passos de vagar meticuloso.
De repente, no quase noite, uma garotinha de galochas e guarda-chuva grande demais plantou-se no rectângulo do jardim aos pulos e, com vozita saltitante, apagou a manhã de segunda feira, anda, vê-me. Olha! Já sou gande. Olh’ó guada chuva, mãe, olha, olha. E a ela pareceu-lhe que a chuva se divertia com a garota, mãozinhas juntas em esforço, no balancé do objecto. E a chuva a rir,  agora molho, agora não, agora sim, agora não.
E talvez tenha sido a força desvanecida do sorriso da mãe. Ou o seu desprezo pela chuva a engrossar, não o deixes cair que te molhas. Ou apenas a luz de diferença no olhar. O certo é que afastou a cortina e atardou-se a observá-las. Tão bonitas as duas, pensou. Tão verdadeiras como o quadro de Miguel Torga, “Embevecida a mãe ovelha para de remoer e a vida para também a ver”.
  De onde vêm às mães os olhos com que olham e que são outros dos olhos diários, feitos para ver, ler e outras funções. De que fundura de poço tiram, a braços, essa doçura derramada sobre os filhos e o que lhes pertence. Em que lume brando cozinham as ternuras de que os vestem, os cuidados com que os rodeiam, o pavor de que o mal os assombre pelas esquinas. 
Contudo, todas as mães nascem meninas. Crianças. Não pensam em filhos, em casamento, o sexo não lhes existe em acto. Brincam. Vivem sem futuro maior do que o amanhã, as datas dos adultos a surgir-lhes sem nexo, incapazes de convertê-las em tempo. Negar-lhes um desejo é negar o presente, exibir-lhes a impossibilidade. E as birras que fazem reflectem  o apego ao momento. Que urge. Se o adulto protela uma coisa de que gostam, prostram em desgosto verdadeiro, lágrimas em corda. O que não pode ser agora, ou mesmo amanhã, equivale-lhes a um não ser absoluto trazido por mão espúria. 
E que as mães de olhos de lago tenham sido estas crianças é, no mínimo, excelso.
Perscrutou o exterior. A noite infiltrara-se a arredondar ângulos, a embrulhá-los. A garota e a mãe tinham debandado e o escuro engolira os prédios da frente onde agora brilhava sozinha uma porta de entrada, exibindo a desolação de não ser ainda casa, de ninguém a passear-lhe os olhos com interesse, ninguém a interessar-se por estar nela com alma de, enfim! Na praça, sombrios e erectos gigantes  rodeavam-se de vultos menores a amontoar, parte de um mundo oculto só imaginado que brota sombrio do âmago da noite, repleto de mãos e dedos misteriosos e terríficos que aliciam o tacto, nos tocam os braços e tolhem as pernas e que, se nos prendem pela cintura, nos deixam cativos até ser manhã. Ao lado, uma ou outra janela existia e desistia, à mercê de um interruptor, talvez accionado por um esquecimento qualquer. Uma porta bateu lá ao fundo onde a escuridão se apertava de encontro aos carros e a noite, num frémito, recuou um nadinha, temerosa. 
Então, pousou de leve a cortina, acertou-lhe o franzido e correu a persiana. Maquinal, conferiu-lhe o paralelo das lâminas postas em sossego. E sobreveio-lhe um acervo de dúvidas, Qual será a minha cara de olhar a rua? Que som tem a minha persiana quando fecha e levanta e quem a ouvirá? Como será que eu existo para os outros? E de súbito, a dar-se conta do seu sem ruído na vida,
se eu existir...






segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Madrinha Zefa

Pouco sabemos das pessoas que amamos. O saber é frio, lúcido, razoável, descritivo. E gostamos sem lucidez, a abarrotar de preferências, as descrições armadas em folhas de outono, caídas em desinteresse. Cada objecto do nosso amor é único. Por exemplo, nunca vi a minha madrinha como ela é. Mas posso dizê-la como a sinto desde sempre: madrinha e minha. O que é uma sorte.
Tenho memórias antigas de uma rapariga de avental e touca branca, calada e, para mim, muito alta. Trabalhava no fim de uma escadaria difícil e que pouco a pouco me deveio impossível de vencer, as pernas de pedra, não somos capazes. Atormentava-me o lanço único de escada que se escancarava pavoroso, logo após o toque da campainha. Sobranceiro, erguia-se a pique e reinava sobre o espaço num volume de degraus a meus olhos impressionante. Então, lá em cima, onde me parecia que não seria capaz de chegar, surgia a criada de fora que ao ver-nos rasgava um sorriso e, destemida, corria degraus abaixo, olha quem nos veio ver, a Beatriz. Chegava-se a nós, pegava-me ao colo e salvava-me dos degraus que galgava em facilidades incompreensíveis. Se a porta da rua entreaberta, o panorama mudava, a mão da minha mãe a puxar-me escada acima, içada a cada degrau. E ela, por que é que tu não mexes as pernas? Respondia-lhe, não andam; e a minha mãe incrédula, sua preguiçosa, vinhas na rua a correr. E por mais que eu, mas a rua não tem escadas, ela não entendia e chegava ao cimo cansada de puxar por mim. Claro que, quando experimentou largar-me a meio,  fiquei desamparada; olhei para baixo e para cima e aterrorizei. Desatei num berreiro. E se ela não me deitasse a mão, cairia escada abaixo tanto as pernas me tremiam, o pérfido degrau onde me encontrava, a encolher na largura.
Lá em cima, depois de um corredor comprido e escuro em que me recuperava, os braços da minha madrinha levantavam-me, parece uma pena, tão levezinha. Tirava a touca e espalhava um basto cabelo às ondas que eu acompanhava com as mãos, a fazer-lhe uma festa. E era daquele altar de conforto que olhava a casa; íamos cumprimentar a senhora e os meninos no salão, a minha madrinha uma nota de satisfação, é a minha afilhada. A menina era da minha idade mas nem parecia. Era a menina Maria Rita a quem a família, não as criadas, chamava Mani. A menina Maria Rita era linda e tinha brinquedos e jogos nunca vistos. A senhora incentivava-nos a brincar juntas e mandava a minha madrinha para a cozinha. E a menina, com um jeitinho bonito e importante, ficava a mostrar-me as coisas que tinha e o que faziam, ou nós podíamos fazer com elas. Nunca nos juntámos numa brincadeira.
A minha madrinha trazia-me prendas: peúgas com folhos a que eu me apegava ferozmente e que só me descalçavam adormecida; um extraordinário ferro que saiu na farinha amparo e a menina MariaRita desprezou e veio a morrer disforme e fedorento quando uma garota endiabrada mo roubou de dentro da caixa de sapatos das minhas riquezas, e feita mázona o  atirou no lume da vizinha;  um boneco de casquinha que mexia cabeça, pernas e braços e parecia saído da mocidade portuguesa, risca ao lado, penteadinho e de calções e camisa de virados. Que viajou até mim numa caixa, mumificado em papel de seda, a esticar-me o suspense. A alegria de ganhar o garoto de casquinha só foi ultrapassada pela minha bicicleta e, mais tarde, pela Maxi Push. Teve um reinado longo o meu boneco.
A minha madrinha namorou e fui carraça no colo do meu padrinho – assim nomeado desde o primeiro dia de namoro – e julgo que não os terei deixado namorar convenientemente. Íamos esperá-lo de mão dada até à curva, depois a figura dele surgia difusa e a minha madrinha, já lá vem. Eu distinguia uma mancha e ela, traz o casaco azul-escuro que lhe fica tão bem e vem a pedalar com força. Eu olhava na mesma direcção e continuava tudo indistinto. Provavelmente, o que então julguei força amorosa da minha madrinha era a sua visão normal face à encoberta miopia da afilhada. Mas só agora penso nisso.
O seu casamento foi a minha estreia em cerimónias. Teria uns cinco anos. Amei vê-la de véu e com um ramo de flores na mão; o ramo estava arranjado em bouquet, espargos entremeados com flores e um papel rendado a suportá-lo. Bem lho pedi, mas, ao contrário do que sempre fazia, ela não quis dar-mo, teimou em carregá-lo o tempo todo na igreja o que muito me surpreendeu e encheu de perguntas. Eu e a Mani estamos nas fotos com os noivos e os padrinhos que, no caso da minha madrinha, eram os patrões. A Mani brilhava no seu extraordinário; pela primeira vez vi um chapelinho – era de veludo vermelho escuro debruado a branco e rimava com os laços e passe fita do vestido, inchado de saiotes engomados, que me encantou; parecia mesmo de fada. Vaidosa do meu vestidinho branco, só tinha pena que não fosse igual ao da minha madrinha, todo às rosinhas, mas a minha mãe respondeu-me que o vestido das noivas não podia ser igual ao de ninguém. Tive sérios problemas com o véuzito que estreei, não me parava na cabeça, descaía; por fim, a minha mãe atou-mo ao pescoço mas, pelas fotos, não resultou grandemente. Na foto que tenho, a minha madrinha está séria, parece triste. Quando lho notei, explicou-me que estava a concentrar os olhos para não parecer estrábica. Na verdade eu preferia uma noiva-madrinha risonha e estrábica, mas ela pareceu-me contente do esforço e calei a ideia. Eu e a Mani estamos sorridentes, ela divertida e eu de cabeça meio torta, sorriso envergonhado, muito atrapalhada - era a primeira vez que me fotografavam e a minha mãe encontrava-se a dois longos metros -, com uma mão a torcer e levantar a saia, os olhos a seguir as ordens dela, sentada no banco da frente da igreja, levanta a cabeça e ri-te. Lembro-me da constância em desviar a cabeça por causa do ramo; um espargo ficava-me na direcção dos olhos. E sei que há uma foto onde estou com um olho fechado em fuga ao invasor.
Em casa da noiva havia uma sala sem porta, com uma cortina apanhada dos lados. Achei um supremo bom gosto e quis logo importar a moda para minha casa, mas a minha mãe não deu resposta às milhentas vezes que perguntei e pedi. Portanto, abandonei o assunto. Para ajudar em casa enquanto os filhos cresciam, a minha madrinha lavou, durante anos, roupa para fora. Passava horas ao tanque. E convidava-me em todos os aniversários. Sempre encontrei a mesa posta na salinha das cortinas e um senhor velhote, muito passadinho a ferro e bem posto, que se alambazava de tudo a sussurrar, a menina Zefa é que era, tem uma mão para a cozinha que só visto, chegue-me mais uma talhadinha de bolo, se faz favor. E nós só comíamos depois de ele ir embora. Cheio de salamaleques e de bolos. Nunca gostei da maneira como a minha madrinha o servia. É que não partia bolos, pão, não punha sequer o açúcar na chávena, o parvalhão. E depois, a minha madrinha ficava a dizer muito baixinho, não convidei o senhor Gonzaga, mas ele apareceu, sabe os anos de todos, até dos filhos, e nunca traz uma prenda. O senhor Gonzaga era o pai da mãe da Mani. Dizia ele que gostava muito da minha madrinha. Mas eu não gostava dele, a fazer-se dono de tudo, até dela; e a comer antes de nós, a encetar todos os bolos, mesmo o dos anos, antes de cantarmos os parabéns. O meu padrinho também não gostava dele e resmungava, já não és criada; lavas a roupa suja dele e chega. Se eu não precisasse…

(continua)