quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Querido Deus

Bem sabes que as minhas dúvidas são perenes e que as minhas diminutas certezas abrangem um nico de ideias, e ainda menos de pessoas. Faz o favor de não te irritares, não sou céptica em relação à humanidade, mas, reconhece, deixaste-nos incompletos em demasia. Pensando melhor: sou céptica em relação aos homens género masculino e às amizades sem género. Por mim, já sabes, não aposto em nenhumas destas categorias. E quero mas é que se lixem (gostei de escrever isto, calha bem). Vou rever-lhes as posições.
            Bom, e posto que para Ti há só eternidade, esta coisa de Ano Novo e Boas Entradas, não te serve.  Mas olha lá, como é que se pode – no mundo dos homens, claro -  desejar bom ano a alguém. De forma honesta, quero dizer.  Fora de fórmula e sem protocolo. Experimento escrever a frase e noto-a dissonante, um barulho de lata no meio da música. Leio alto e não conjuga. Não dá para acreditar em desejos de bom ano se forem de ano inteiro.  Nunca dá. Um ano é tanto tempo! (dantes os anos passavam sem dar conta e agora cruzam-me tão devagar que não os entendo). Pode não parecer, mas nesse interim de centos de dias,  acontece TUDO. São doze meses, cada um com 30 dias – pronto, há um com menos, mas sete têm mais um. Ora, 365 dias, a 24 horas cada, é uma conta bicuda. E por aí fora até aos milionésimos de segundo. Contudo, é de experiência, num átomo se nos esvai saúde, dinheiro, amores e outros imprescindíveis; ou nos esvaímos nós. Resultado: um ano é um amontoado de oportunidades para. Portanto, cautela com ele.
            Assim, é com pinças que entreabro as primeiras folhas  a cada ano de calendário: devagar,  com cuidado para não atrair as desgraças que estão por ali em revoltinhos, ensalganhadas com as coisas boas que, já se sabe, são frugais. E depois, podem pensar, se elas lá estão, vão sempre acontecer. Não, não. Os anos nascem com a prerrogativa da vida, são um bouquet de possibilidades que puxamos à existência. Aceito, abundam contingências e necessidades provenientes do acumular de vida onde o corpo se gastou (tudo nos marca),  genes que nos afundam, a barbárie de alguns erros... são as condições gargalo de garrafa. Se a vida é mais longa ou menos ágil o pólo da sorte, o possível afunila. Quem sabe esteja aí a causa do tempo a preguiçar, horas compridas inchadas de minutos que lagartam.
            Deus, eu só queria que 2016 fosse menos comprido.
            E a paz no mundo e isso?! Ora, há mais de mil anos que assobias para o lado queres o quê?! Deixei de acreditar.


PS: se não conseguires cortar no ano, podes cortar-me a mim. Estás à vontade.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Estrela de Natal

Agora sou criança. Criança de escola a fazer uma redacção das antigas. Porque quero. E posso. Sou quem me desejo e não me interessa se sou mesmo ou só finjo. Neste preciso momento estou “nas tintas” para a essência  - das coisas e minha -, que aliás não existe senão como ideia (a tralha que acumulamos, santo Deus!), jamais alguém viu uma essência por aí, lhe palpou a carne ou fez cócegas; a essência não cheira a nada e dela não se ouve um resmalhar. É um conceito, portanto. Onde não cabe a minha estrelinha brilhante. De Natal?...hummm...nem tanto. Diria que a minha estrela é de ano inteiro. Mas no Natal brilha mais e mais me interpela. Empurra-me. Cutuca-me. Faz-se até importuna. Mora tão dentro de mim como o Menino Jesus de Pessoa, mas não é de carregar no colo. E o nosso  términus é a morte. Curiosamente, eu que dou nomes palermas a tudo de que gosto, não lhe dei nome, vive tão comigo que prescindimos nomeação.  A minha estrelinha não nasceu da fractura de um sol cósmico, mas de um buraco humano. Isso mesmo, em cada homem há um buraco propositado, uma reentrância da alma inspirada nas covinhas da bochecha que algumas pessoas fazem a sorrir e onde Deus planta uma semente de estrela. Depois, mães, pais e outras pessoas tratam dela e ajudam-na a ser luz – toda a gente sabe que as estrelas não crescem, ganham brilho -. Sei que a minha estrela não é única no mundo senão para mim, mas também sei que é a única estrela que pertence aos homens e que a podem  tratar com os cuidados de um principezinho a olhar a sua flor e a varrer a cratera de um vulcão minúsculo. É uma coisa tão bonita, ter uma estrela cá dentro! Basicamente, o trabalho dela é brilhar nas outras pessoas; é assim mesmo que pertence, a minha está em mim e ilumina mais os outros. Faz-me vê-los. Inspira-me a dar o que gostam e precisam. Sussurra-me ideias para agradá-los. É por ela que os meses são menos compridos e os dias mais leves – vai dando palpites para este ou aquele aniversário, esta ou aquela pessoa que vi ou senti mais precisada de cuidado. Só assim os meus Natais valem a pena. Houve um tempo em que íamos as duas às compras de Natal e eram dias felizes esses em que procurava e levava para casa o que eu mesma gostaria de ter. Hoje não posso arriscar tal luxo e  servimo-nos de outras artes, cuidando de não as repetir em cada pessoa.  E o meu Natal é sempre muito tempo, o que, bem vistas as coisas, é uma grande sorte para mim. Vivo-o ponto a ponto, em cada gesto da caneta, no desenho das letras mais simples, em cada prescindir, os agrados pessoais a tombar de leve. Tenho verdadeira pena das pessoas que abafam a sua estrela. E de quem lhe desvia o brilho com cheques e contributos para gente que é um número, ficando fora da sua alegria grata, desperdício de sol que não lhes bate na alma. Também são necessários, sim. Mas dar é mais. Por incrível que pareça, a estrela rebrilha se haja troca e presença. Porque o agrado de dar  nasce na alegria de quem recebe e cada prenda se sustenta na reciprocidade: o que sentimos pelos outros e o nosso gesto desperta neles. Portanto, as prendinhas de Natal são encontros de bem querer. Sem este fundo de boa vontade, não há estrela que se aguente.

Bom Natal!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Conto de Natal

Os meus olhos devem ter assentido que continuou, é só uma boleiazinha, ele faz-lhe companhia e desce ali por Águas de Moura; depois lhe diz onde parar.- e numa espécie de ansiedade que não entendi – não se importa pois não? A despesa fica por conta da casa, deixe estar – acrescentou mal iniciei o gesto de puxar pela carteira. Pensei que seria bom ter companhia quase até casa e saiu-me um ora essa, traga lá a pessoa. Ele passeou-me olhos duvidosos e respondeu, já lá vai ter ao carro, descanse. Saí e, mal liguei o motor, um vulto nasceu das sombras e entrou. Olhei-o curioso. A meu lado estava um homem talvez mais novo que eu, suspensórios sobre camisa de pano vulgar, calça de cotim coçado que não lhe tapava a canela, um farrusco de mãos sobre o amarrotado da boina; não me parecia disposto a conversas. Perguntei-lhe se não tinha bagagem e acenou uma negativa. O carro fez-se à estrada e, no interior, o silêncio pesava. Percorremos uns bons dez quilómetros em mutismo absoluto, ele muito direito, quase a rasar o vidro da frente, fascinado pelo asfalto. Até que não aguentei e, para fazer conversa, lhe interroguei finalidades, vai a compras ou regressa a casa para passar a quadra? Ele olhou-me como se olha uma criança aborrecida que tudo pergunta e soletrou em rispidez, a compras. Fizemos mais dez quilómetros. E depois outros dez. Sentia-me cada vez mais incapaz de retomar conversa. De repente, sem mudar de posição, como se comentasse o estado do tempo, fugi do Pinheiro da Cruz. Com a crispação das mãos no volante, quase deixei o fiat resvalar para a valeta e amaldiçoei o Marques enquanto endireitava o carro. Porém, sem me dar tempo, continuou monocórdico, foi propositado; arranjaram uma estrangeirinha com um assalto e prenderam-me. Eu era lá capaz de roubar alguém – voltou-se para mim – querem estragar-me a vida. Nesse momento, as mãos afligiam num aperto à fazenda gasta da boina mudada em bóia de salvação. Rodei em silêncio alisando terreno para acrescentos imprevistos. E ele, olhe digo-lhe isto porque podemos encontrar a guarda por aí; a esta hora já eles sabem. Se o senhor está com medo deixe-me já aqui. Parei o carro na berma de um ermo sem luz e ele abriu a porta. Pensei que era melhor assim; escusava-me a trabalhos que podiam custar-me caro e tirar-me o emprego. Ele havia de chegar a qualquer lado. Além disso, desculpava-me,  podia ser uma pessoa perigosa. Mas antes que saísse, estendi o braço, segurei a porta entreaberta e perguntei, e afinal o que vai fazer hoje para aqueles lados? Ele ficou silencioso. Entristeceu-lhe o semblante. E já me preparava para largar a porta e deixá-lo seguir, quando murmurou, voz embargada, vou para casa, hoje é a noite de Natal. Acertei-lhe a data, mas a consoada é só amanhã, homem. E ele, não. A minha tem de ser hoje; se não for apanhado antes, amanhã de madrugada os camaradas passam-me para Espanha. Fechei a porta de golpe e pus o carro a trabalhar. Vamos embora, há-de ser o que Deus quiser. Nasceu-lhe no rosto um assomo de estranho sorriso  e acrescentou, e se uma patrulha nos fizer parar, é que Deus nunca quis assim tanta coisa para o meu lado. E nos cinquenta quilómetros que se seguiram engendrámos-lhe uma história. Quando inquiri, e não tem medo de ser apanhado em casa, olhe que a guarda é onde procura primeiro... respondeu-me no mesmo sorriso de pouco hábito, eu não disse que ia para minha casa. E não tive tempo para pensar mais nada que, na beira da estrada, dois jipes da GNR mandavam encostar todos os veículos. Abrandei enquanto o coração sobressaltava em batidas de catapum, catapum que temia se ouvissem cá fora. Baixei o vidro e preparei os documentos. O Guarda aproximou-se, o sinal batendo exasperâncias na polaina, vermelho para dentro verde para fora, vermelho para dentro verde para fora. Olhei o meu acompanhante e estava calmo, meio adormecido, um aldeão de consciência tranquila. Dentro de mim o coração estoirava violências sanguíneas num batuque que me deixava as têmporas a latejar e fazia temer pela segurança da voz.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Conto De Natal

Parei no caminho para comer alguma coisa, esticar as pernas e descansar. O proprietário do café já me conhecia e, se a freguesia não apertava, vinha de pano na mão até à minha mesa e puxava conversa enquanto oficialmente a limpava. Falávamos do tempo, do trabalho na base, de Setúbal onde, dizia ele, tinha assentado praça, da família de cada um. No final, já éramos íntimos, ele quase de cabeça colada à minha, antebraço na mesa e joelho apoiado na cadeira em frente, o pano sujo a resvalar-me no prato. Depois descaía a perna, afastava o pano para um ângulo da mesa e, em segredo escondido, com boca bem pequenina,  sentados frente a frente e muito sisudos, que assuntos sérios pedem pose e reflexão, falávamos de política. Que é como quem diz, falávamos mal do governo; nenhum dos dois sabia o que eram partidos políticos, mas ouvíamos falar nos comunistas que estavam presos e que falar mal do governo dava o mesmo resultado que ser comunista: a haver uma denúncia, prendiam-nos. Mas agastava-nos que a maioria dos portugueses comesse o pão que o diabo amassou. Vivia-se de boca fechada numa pobreza miserável. Tudo faltava ao pobre: comida nos pratos, calçado, casacos quentes, médicos, remédios e até uma cama onde dormir. Contudo, o período de trabalho ia do nascer ao pôr do sol e muita gente não chegava a frequentar a escola, que então não era obrigatória, para tomar conta de irmãos mais novos ou começar também a trabalhar na terra ou em qualquer fábrica. Naturalmente,  no meio desta massa de gente desvalida e mal paga, que não tinha onde cair morta, havia os que tinham quezília sem remédio a governo e governantes. Mas quase ninguém abria a boca por medo à PIDE-DGS, a polícia política a mando do governo que, vestida à civil, se disfarçava no meio do povo e espiava os descontentes, podendo engavetar qualquer. Também sabíamos que alguém que fosse preso por causa da política, não voltava a arranjar trabalho. Todas as pessoas que conheci tinham medo da PIDE. E ainda hoje não encontro explicação para o facto de discutir assunto para mim tão melindroso, com o taberneiro daquela aldeia  à beira da estrada nacional. Mas há coisas que não se explicam, apenas acontecem.

Quando entrei no café, um petromax fosforecia a meio da casa, dependurado de uma viga do tecto por uma gancheta de arame.   A luz do candeeiro amarelava sobre pessoas e objectos a adoecê-los por inteiro e era como se tudo que ali se encontrava tivesse encolhido e perdido vida, os rótulos das garrafas que chispavam aos raios do sol, tão murchos que não se lhe percebia marca. Adentrei-me pela sala evitando  encandear no foco de luz e chegou-me o fedor peculiar do petróleo que arde,  misturado ao cheiro de vinho a copo. Atrás do balcão, o Marques olhou-me com a pergunta de sempre, o costume?, e fui lavar as mãos ainda em afirmativos de cabeça. Quando regressei, já ele me tinha servido um prato de moelas e um traçadinho e aproximava um ensaio de guardanapo. Lancei-me ao repasto enquanto voltava ao posto e atendia dois clientes. Mastiguei devagar, a dar-lhe tempo para se fazer próximo e cumprirmos o ritual. Mas o homem demorava-se em limpeza corrida no balcão, o pano pensativo, para cá-para lá, para cá-para lá. Até que reparou na minha insistência por cima do ombro e se decidiu. Levantou a passagem de madeira, veio andando de pano na mão e começámos a  desfiar o catálogo de assuntos.  Parecia-me meio constrangido, quiçá preocupado. Tem alguém doente, atirei de chofre. Ele deitou um olho investigador ao café agora vazio e, num salto de várias alíneas, passou à posição de antebraço na mesa e perna na cadeira, a cabeça a colar na minha e pediu-me de olhos redondos a engordar medos, preciso de um grande favor.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Conto de Natal

             Em 1960 eu já espigava para jovem, mas ainda acreditava em todas as histórias do meu avô. Esta data não faz parte do que vou contar, mas são bons números e soa-me bem. Por isso, tenham paciência, deixem-na estar. Ora, dizia eu, calhou-me nascer e crescer num tempo que os meus filhos e netos julgam pré-história, uma espécie de advento da civilização. Também por isso, no correr dos anos e transformações da vida, esqueci a maioria dos contos com que o meu avô entretinha os serões.  Porém, a idade cai-nos em cima sem dó: aumentaram-me o peso e a cinta, barba e cabelo ficaram brancos, a pele começou a sobrar-me pelo corpo. Ganhei rugas a que os netos mais novos chamam “riscos”; dizem eles, a cara do avô tem riscos e a do pai não. E é agora, na idade de contador, que me falta a arte e sinto pena por não lembrar os contos que o meu avô desfiava como se fossem coisas certas e suas, verdades puras que desembrulhava cuidadoso e só para nós. Eram contos bonitos que passavam na família de geração em geração. Ele entregou-mos em mão. Mas quando quis contá-los, tinham evaporado. Estão perdidos para sempre. Quebrei o fio de memória e não é possível reatá-lo. Por isso, a minha obrigação é, pelo menos, inventar um conto novo.

            Quando a minha filha era bebé, eu trabalhava a semana inteira na Base aérea de Beja e, para chegar a Setúbal onde tínhamos casa, percorria, aos fim-de-semana, os caminhos do Alentejo profundo. O nosso fiat 600, comprado a prestações custosas de vencer, demorava horas e horas na viagem, sobreiros e azinheiras sem conta a deslizarem lentidões através dos vidros do carro, e a estrada uma fita mágica que acrescentava em cada curva. Nesse dia, regressava a casa para umas curtas férias de Natal, trazia no banco de trás as prendinhas inchadas de laçarotes pimpões e antevia bons momentos passados em família. 

Um Agosto em Itália

Passear por S. Marcos
Borboleteei por ali, a impressionar na extinção do dia. A essa hora mágica dos pequenos desvarios e saudades, os restaurantes iluminavam as esplanadas e havia  cristais de brilho a reflectir. Antes das mesas, as orquestras (não eram orquestras, limitavam-se a quatro a cinco elementos) iniciavam trabalho afinando instrumentos e lançavam queixas contundentes em notas desgarradas; sem eco, esvaneciam solitárias, um gritinho de pauta a prolongar, uiiii!. Empertigados  e  rigorosos, os empregados atendiam os primeiros clientes e quase lhes esperei um sapatear ritmado com a bandeja. Porém, apenas observei a solicitude fardada e um quê de sobranceria na mirada ao público, não chegas cá; aqui, não há chão para os teus pés, desanda. Numa mesa, um casal de mão dada degustava do lugar. Selectos. Nem um grão de pó lhes perturbava o visual. A música, sintonizados os instrumentos, ia passeando por ali em passinhos pequenos, os violinos um adoçante sorvendo a noite. Enjoada de perfeição, fui espreitar o Palácio dos Doges. E aí me surgiu – como é que ainda não o notara?! – um caminho de infinito. Ou de infinita contemplação. Ou assim, apenas por gostá-lo desmedida(mente). Sim, o interior do palácio deve ser bonito; o exterior é um espanto, com sua ligação directa à Catedral. Mas não se descreve a beleza de caminhar entre as duas estátuas – o leão de S. Marcos e o arcanjo Miguel - até à beira do canal. Podem ter sido subtilezas de brisa, artifícios da iluminação nocturna, delicadezas sufragadas no corpo adormecido das gôndolas, mistérios escuros da água. Sei apenas que alheei. Diluí. Nessa hora sobrou de mim o que resta ao eremita que jejua no deserto:pó, cinza, nada. Porém, um nada de gratidão e alegria que bendizem o jejum.

            Nessa noite, jantámos tarde e o cansaço pesava-nos. Mas tão leve era a alma de regresso que nada sei do caminho. Teremos voado até casa?!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Um Agosto em Itália

Passear por S. Marcos
Em Itália há duas mais valias seguras: a rara beleza da paisagem - urbana ou campestre - e os gelados. Lembro-me que foi após um gelado extraordinário e uma travessia a rememorá-lo contrariando os arquipélagos de multidão, que me iniciei na Piazza di San Marco. Neste país, vira-se uma esquina vulgar no fim de uma rua estreita e súbitos nos plantamos em local insuspeito e encantatório. San Marco é também assim: ruas pequenas pejadas de lojas que vendem tudo, de vidros de Murano a porta-chaves de cortiça, provavelmente alentejanos; de calzones italianos a hamburguers americanos; de adereços típicos às imitações da alta costura. E gente. Muita gente de passagem, mochila às costas, mapa na mão, olhos que não pertencem. Sim, que o turista estrangeiro é jarra fora de sítio, peixe retirado às suas águas; para além de tudo, salienta-o essa estranheza pregada à íris. E há gente que hesita e pára a meditar as montras, talvez fazendo contas de cabeça, enquanto a multidão lhe faz o contorno e desenha a silhueta a passos contrafeitos, agora é que este papalvo se lembrou de parar.  Alheios ao engarrafamento que provocam, mergulham indecisos no interior da loja, mal sabendo que basta entrar e já decidiram. São  o desjejum do comércio local, gente que compra  espanejando ilusões sobre a autenticidade dos muranos, das peles, dos vestidos de marca, do papel de carta florentino, dos casacos, sapatos e malas ciganas com assinatura.  Ainda que a tempos diversos, uns e outros  desembocam repentinos num lugar extraordinário, a piazza di San Marco. Que todos procuram e a todos surpreende. Já em Florença eu me quedara imbecilizada face ao inesperado da Loggia dei Lanzi, a retina incrédula e eu a estarrecer, será verdade tanta beleza por metro quadrado?! Mas ali, em S. Marcos, deveria ter gasto, uma a uma, as horas do dia. Ou melhor, todos os minutos de uma noite. Porque, mal a manhã se aformoseia, logo os turistas tomam posse. E tanto se perde no excessivo humano! Sendo certa a monumentalidade dos edifícios que rodeiam e constituem a praça, a verdade é que relativizam se a multidão intromete. Para onde se olhe há intrusos aos molhos: cabeças, e cabeças, e cabeças. No calor ou no frio. Ao sol ou sem ele. No ar, o barulho de conversas e chamamentos condensa em enorme vaga, imagino que os ouvidos dos cegos aborreçam o ambiente, credo, este chinfrim ensurdece-me, dá-me cabo dos tímpanos, a bengala a hesitar-lhes perto do chão, sigo em frente ou viro já aqui. Junto à Catedral, filas sinuosas lembram bichos a que não se vê rabo, corpo atirado à soalheira (tudo é visita-paga, exceptuando a praça e o recinto de culto na catedral). Entrados neste cenário, muito nos escapa: há gente intrometida entre nós e o relógio romano, a obscurecer os pormenores das enormes colunas e impedir a esquadria da praça. A chusma desnivela e evapora lojas e restaurantes de charme. Viajante com presença de espírito eleva os olhos e deixa-os presos por lá, ao sabor de frescos e cúpulas de cintura torneada, rendados de pedra que impressionam.

Graças ao Luís e à Céu, experts em latitudes de multidão, eu e a praça encontrámo-nos num bendito fim de tarde. Um, olá como está, mais atento. Dela guardei a atenção de olhos que irradia para o inteiro de corpo e mente, nessa hora indistintos. Atolada na riqueza de pormenores a toda a volta, atenta à sua delicada beleza, circunvaguei-a pelos quatro cantos. E só não caí de joelhos porque eles não iam gostar e na minha idade  respeitam-se os interesses do corpo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Efeitos Aghata Christie

O que mais me conquistava nos livros de Enid Blyton nem era o enredo, a aventura. Era a sensação de segurança e bem estar que se desprendia do seu todo. Uma segurança feita à medida do mundo em que viviam aqueles garotos, antípoda  do meu. Não só os pais eram óptimos, toda a  sua realidade o era. Se passavam numa quinta, ali havia mesa posta com um lanche, sumos, gelados, bolos, scones, etc; os seus rituais quotidianos, alimentares, de sono, de passeio e diversão, galvanizavam qualquer, eram ideais. Repare-se que, no subterrâneo mais negro, havia sempre uma lanterna; se estavam presos em algum lugar, encontravam paus de chocolate no bolso, bocados de cordel que eram suficientes para subir desde o fundo de um poço...como eu invejava aqueles bolsos. Enid Blyton foi o Aristóteles da aventura infantil, fez descer o maravilhoso do mundo dos duendes e fadas para a terra dos homens e seus apetites. Depois, os bons ganham sempre e os maus sofrem castigo; e, por norma, são feios, o mau carácter devidamente identificado.

Agatha Christie criou a sua versão dos cinco, mas para adultos. Menos linear. Bem posso desculpar-me afirmando que Poirot é uma série inglesa, fiel à época e aos detalhes, motivos da minha preferência; Midsummer murders também é, e não faz igual mossa. Sou obrigada a reconhecer o meu lado de piroseira: gosto daquele mundo meio feudal, talhado a damas e lordes irrepreensíveis, moradias (solares e castelos, há muito castelo habitado por aquelas bandas) a que não se apõe uma nota de rodapé, jardins a estourar beleza. Mundo de pessoas bonitas e inteligentes, distintas na maioria dos casos, servidas por meios de transporte expensive e empregados obedientes que não destoam da condição e se apagam na trama. É básico, a história recai sempre sobre quem está bem de vida. Como em Enid, há um mundo bonito e de alto nível, onde os acontecimentos se desenrolam; e os maus são castigados. Eis o maravilhoso de Ágatha Christie. A ler, ou a ver e ouvir, eles rodopiam em meu redor; contudo, permaneço invisível. Oh! Claro. Há o mistério que a escritora tão bem soube construir, mantendo-nos intrigados até final. E a figura bem cinzelada de Poirot. Ou Miss Marple. Ou a vivaça Tuppence e seu par. E há as mortes. Que importam tanto como os subterrâneos em que os cinco ficam prisioneiros: são acidentes de percurso, sem dano para o espectador ou leitor. As pessoas vão sendo assassinadas, mas todos tocam a sua vida; como nos cinco, a aventura tem de continuar, nada de paragens piegas no enredo. Acontece como nos contos, saltamos levemente sobre.
E quem não gosta de uma aventura que se torna enigma e onde o que é bom aparece requintado e o pior tem tal leveza que não é ele?! Que atire a primeira pedra. Mas só daqui a poucochinho que vou abrigar-me primeiro. Ou será antes preparar-me para ver novo episódio...

Efeitos Aghata Christie

No momento em que – oxalá – a esquerda portuguesa se faz à terra com o arado e a direita roga pragas à rabiça, pois neste precioso “momento interessante da política”, ainda com a aura de alguma esperança, apetece-me outra coisa. Por me apetecer.
Neste rumo de inconfidências, reconheço que banhar-me num episódio de Poirot antes do telejornal, desencarde (dois em um: solta-me as cardas ao mesmo tempo que lava).  Existem mil maneiras de nos contarmos. Por que não com os romances policiais? Os de Agatha Christie agarraram-me aos vinte anos e não descolam. À época, a dama inglesa conseguiu mesmo uma vitória sobre a praia. Em férias  – cinco brevíssimos dias -, após ler um dos seus livros, decidi levar de empreitada toda a colecção da dona da casa. Dias e noites a ler em maratona. Adormecia com uma senhora dor de cabeça ansiando a manhã em que, fresquíssima, me atirava à página assinalada de véspera, em anelante pressa de amante insaciada. Quando, com grande pena, terminou o breve período de lazer, ainda os meus propósitos estavam longe da metade, a pele amarelava como antes, e a praia, meu supremo enleio, era-me estranha (tentei juntar as duas modalidades mas desisti; portanto, 1-0, perdeu a praia). Perguntava-me como é que até à segunda década de vida vivi alheada do entusiasmo presente no romance policial, coisa tão idêntica ao ar que se respira. Mas a verdade é que desconhecia a sua existência. O mais parecido que tinha lido eram os livros dos cinco. Mas os amores levam-se até ao fim, esgotam-se sem se esgotar. Ágatha Christie foi a causa primeira da mania que me nasceu de coleccionar livros por autor. Durante anos, perseverei em coleccionar-lhe títulos, andava com a lista na carteira e tinha supremo prazer na compra, antevendo horas inefáveis. Durante uns anos, esta fixação facilitou as poucas prendas que recebi. Os títulos que ora me faltam, são os que li nas férias da nossa apresentação amorosa que logo me incendiou em paixão a perder de vista. Confesso que me desilude comprar livros que já li; portanto, é possível que a prateleira da estante mantenha essas faltas ad eternum. Entretanto, comprei livros policiais de outros autores. Mas nenhum destronou a dama inglesa. Aghata Christie é a minha queen.

Quando (me) surgiram os filmes baseados nas obras, não desiludi. Até hoje, perguntei-me que sorte de ingredientes detêm livros e filmes para despertarem  tal empatia. E só agora, nesta hora precisa – também não penso assim tanto no assunto –, descobri o que sempre esteve em frente dos meus olhos: estes livros e filmes são muito particulares. E, hélas!, chama-me neles (aos gritos) o exacto mesmo que me chamava nos livros dos cinco. Não têm nada em comum?! Ora essa, mas é que têm mesmo. Vejamos.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Um Agosto em Itália

Piazza di San Marco, Venecia


            Apesar do corropio de turistas a demandá-la em primeira escolha, conheci-a já a semana em Veneza ia a meio. Conhecer não é o termo certo, ainda a desconheço. Conhecer uma praça numa cidade é mais que saber-lhe o nome e ser-lhe apresentada. Ultrapassa a possibilidade de sentir-lhe as variações ao longo do dia (como nos sucedeu). Está para além do sortilégio de o primeiro olhar acontecer ao rés da noite, sem multidão (assim se teceu o nosso prazer). Para conhecê-la, teria de pisar-lhe a esquadria vezes sem conta e saber nela as quatro estações; sentar-me no esplendor das suas esplanadas; entrar em algumas das inúmeras lojas que a muram; encostar em quase todas as colunas das suas arcadas magníficas; amiudar o hábito ao tempo  daquele relógio romano com signos do zodíaco; pedir alento ao juvenil galope de cavalos estrangeiros e naturais de Alexandria que ali brilham tão a gosto; meditar na Catedral; fazer visita ao Palácio dos Doges; jogar a macaca no tabuleiro da praça a afastar pombos, xô, xô, xô... E desvanecer uma vez e outra, e outra ainda, frente ao Leão de S. Marcos e à displicência destemida do arcanjo Miguel, um pé distraído a calcar o dragão enquanto, logo ali, a simetria  bailarina das gondolas ensonadas, azula no fim de tarde.  Porém, mesmo sem a saber, me rendi ao primeiro encontro, tão desprotegida como qualquer mortal.

É que a beleza do canal invade-nos. Desmede e estarrece sem direcção.  Oh, que sempre os poderosos souberam – puderam -  escolher os lugares de morar! Regresso às gôndolas e seu doce chapinhar. Escuto melhor, não soa apenas a música da água a alisar a madeira. Sobre ela, perpassa um cristal de piano. E é certo, a leveza dos barcos ondula ao som de Beethoven; juro, ouvi a Melodia para Elisa a embalar as garotas.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Um Agosto em Itália

BURANO

No espesso de nuvens, Burano surgiu-nos crepuscular a meio da tarde. Uma aldeia de pescadores e bordadeiras. Molhada de corpo inteiro. E, por benção da chuva, pouco transitada. Linda, a aldeia de Burano. Talvez em dia soalheiro as gentes tolhessem o espírito que lhe vive nas frontarias coloridas à mão, cores fortes a encobrir torturas e nódoas negras; ou no entortar das torres de igreja, meias zonzas no horizonte, estou a descair, sinto que me falta terreno; ou nas flores em ponto de exclamaçãoque enlanguescem  por muros e paredes, rimamos, fazemos pendant. Talvez nem tivesse olhado as suas varandas onde, em tamanho natural,  moram santos contempladores; nas festas, fazem par com os da casa, são parentes debruçados a olhar os transeuntes, assinam com o apelido da família. Dependuradas do alumínio, virgens de olhar maternal em pose de benção eterna, braço meio soerguido; Cristos que nos observam inquisitivos ou em jeito tão de amor nos olhos vítreos que nos apetece subir e apertar-lhe a mão delicada, agradecer-lhe, muito prazer, Beatriz. Mas não rodam a cabeça se viramos a esquina, antes se quedam, no mesmo lampejo, olhando o vazio. E assim não vale. A custo abandonamos a ideia de subir a escada para um cumprimento sentido, a mente a insistir, deve ser naquela porta rosa, e depois, lá em cima, é só andar em frente e ficas virada ao Cristo.
Vagueámos perdidos e contentes naquele colorido luxuriante e desvaneci numa casita que arroxeava em dégradé. Dos roxos aos lilases rosados, acintava. Desde o leve estremecer da cortina que usam na porta de entrada – antes da porta – aos vasos e flores que a ladeavam, passando pelo secreto encosto das janelitas de madeira e tapete. Naquele golpe de paixão macerada à beira do canal, havia um misto de corpo de Cristo exposto, um Cristo jovem e frugal, a linha da cintura encimada pelo desenho da caixa torácica, firmeza de músculos que a morte não desfigura; ao invés,  os membros desprendem uma elegância pueril, quase feminina na sugestão de curvas. Assim a casa se oferecia ao olhar. Linda. E morta. Sem escamas de peixe a eclipsar pelo ralo das bacias, sem aventais e casacos grossos e gorros desmaiados no prego atrás da porta, sem o extenso de fio e o aparato dos bordados, sem tartamudeios e imprecações de hálito avinhado escada acima ou o  sururu linguarudo de vizinhanças afiadas. Ali, a pescadores e bordadeiras já sucedeu outra geração. Talvez as casas de Burano sejam moda e fique cara a sincronia da cor.

Embarcámos pela tardinha, encantados neste passeio de água. E foi do vaporetto que assistimos ao pé-ante-pé da noite, a paisagem a desfocar. Para lá das gotas no vidro, as árvores embrulhavam-se em seu silêncio denso, acinzentando sombras, esvaindo contornos. Passámos de novo pelos ancoradouros e só uma luzinha tremeluzia na água oscilante, um véu sombrio tragando o cenário de uma vez só. Nas ilhas, casas iluminadas viravam-se para dentro e iam pouco a pouco fechando os olhos. Junto à linha do horizonte, como quem chega um xaile aos ombros, o céu acabidava migalhas de sol. E eu talvez nem existisse, que a contemplação requer um estar raso acrescentado de silêncio.

Um Agosto em Itália

BURANO

Depois foi a procura do posto de polícia mais próximo, um sotaque brasileiro de aquisição marital a valer-nos o desengano sobre a hipotética recuperação de perdidos. A sua complacência proporcionou-nos uma hora de galharda simpatia e, muito importante,  permitiu, via telefone, contactos internacionais. Esgotado o nosso tempo de antena, os senhores agentes foram liminares e convidaram-nos a sair.  Cá fora, mirando o local, ficou-nos a certeza de que, em Itália, a polícia se afadiga a guardar-se a si mesma, tal o aparato  de segurança interna existente num quartel, que, no exterior, se faz quase moradia anónima.   Ou seja, a máfia é a sério.  Portanto. 
Entretanto, proprietárias ostensivas, chuva e trovoada assentavam sobre Veneza. Porém, hélas, os portugueses têm sempre sorte no meio do azar, faltava-nos visitar o sector da Bienal que se encontrava na Armada. Sob um tecto protector, íamos percorrê-lo a contento. Corremos os três, a água a rodear-nos por todos os lados, e o recato na bienal foi-nos alívio e quase céu.
Talvez tenha sido o escuro do dia que me impactou. Porque me passaram pavilhões e suas mostras de uma manhã. Mais me resta de Burano que visitámos após o almoço, em viagem de beleza lavada e transparente, olhos a arregalar de espanto, que é isto. Já tínhamos rumado a Murano, mas nada me preparara para esses postais ímpares, plantados no caminho de Burano. Ilhotas de uma casa só, a chaminé acenando invernias aconchegadas e, a seguir ao abraço de madeira que rodeava o lar, sôfrego guardador de árvores e flores dependuradas, a miniatura de um cais. Sob a chuva, era mais nítido o vagar desenhado das árvores, as mãos cansadas dos ramos em líquida prostração, entregues aos elementos. No horizonte de chumbo, em ilhas de aqui e ali, um barquito amarrado à sua sorte, a cobertura a negrejar plástico que um vento mais forte espanta em barulhos nocturnos de flop, flop, flop e se perde no escuro, o plástico a engasgar na mão de um arbusto que o agarra e ele  ainda estonteado, muito obrigada pela atenção, não se vê nada, nem sei onde estou.

Não há dúvida, o céu de depois da tempestade empresta à Terra o ar angelical que ela não tem. Extasiei. Viajante resumida, sem corpo para frio, dores e pés molhados, eu constava de mente e olhos.  Ai quem me dera ser assim mais tempo! Quem me dera essa dissolução latejante que enquista na memória e, sendo ela, é já outra coisa. Porém, tê-la vivido é um tudo no quase nada da vida humana. Dizia um poeta satisfeito de si, “Confesso que vivi”. Referia-se a ter vivido variadas coisas e ter experimentado muita diferença; ou seria antes ao viver infinito de Pessoa, a esse aturdir em realidade mental tão pujante que anula o exterior. Não interessa. Neruda foi um só e Pessoa idem. Mas os sentidos sem a mente são boca escancarada que não aprendeu a mastigar. Que morre de fome e não sabe. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

As Mãos


Dói nos olhos a ternura das mãos escorrendo sobre o mundo
 As mãos são bálsamo que arrasa o vácuo dos abismos
 E à boca das mãos existem os gestos 
A desligar o espanto 
Nos olhos dos afogados. 
As mãos pegam, desfazem e fazem. Refazem.
Tocam. 
Recolhem-se em brusquidão de ouriço. 
Armam-se
Rendem-se como folhas em descanso
E voam-lhes libélulas por entre os dedos. 
Às vezes, a vida das mãos destila cansaços murados
 E as unhas são janelas de prisão.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Estranhezas Pessoais

Nas insónias nocturnas raciocino demais. Escrevo de cabeça sobre factos que me acodem repentinos e construo, sem que o deseje, posts inteiros de razões encadeadas. Ou textos. Ou argumentos. Não sei. Estranhamente,  naquela hora de roda dentada que engrena mal, rr,...rrrr...rrrr..., as ideias fluem e jogam umas com as outras; conjugam. Porém,  na manhã seguinte, esqueci o completo de tudo: tema e razões que lhe assistem. Portanto, do  molho de elucubrações, nada me é devolvido e, se não fora a certeza de haver pensado em alguma coisa, julgaria que foi sonho. Assim esta noite. Não me ficou um átomo de ideia. Escreve, pode alguém aconselhar. Ora bem, a insónia – a minha – não quer nada com a escrita que, a haver, arrasta a noite branca. Inconveniente, portanto.
Havia um poeta - António Ferro, julgo - que comparava a sua alma a um relógio que parava de quando em quando, provavelmente por falta de corda. (se o poeta tem vivido na era digital, adeus poema). Não diria que o meu pensamento pára (parece que só a morte tem esse poder), mas a minha memória, sim. Aprofundo-me em mistérios a que chamo “coisas esquisitas” e que me acontecem desde que me lembro. Por exemplo, enquanto as outras crianças tinham medo do escuro, ladrões, velhos do saco, feiticeiras, lobisomens e bruxas em geral, eu temia cheirar e mexer em moedas e era-me terrífico subir escadas. Se agora se me pára a memória, nesse tempo, à vista de um lance de escadas, entravam-me as pernas numa letargia paralítica que nem a ameaça de pancada as demovia. A questão das moedas era resolúvel: sendo-me raras, quase não necessitava pensar no cheiro que destilam. Hoje, a perfídia olfactiva ainda me atraiçoa no entreabrir da carteira, mas disfarço melhor a agonia táctil. Por via destas chinesices, fui desde cedo vaticinada como futura virtuosa, único ser conhecido no lugar como “aquela que não toca em dinheiro”. Esclareço que, embora não tenha coração maléfico, eu e a virtude altercamos com frequência e tive de socorrer-me de profissão mais vulgar, gorando os presságios das tias-avós. Paciência.
Quanto às intermitências da memória, a coisa começou mais tarde. Tinha eu uns míseros quinze anos quando, pela primeira vez, ela parou onde quis. Num exame. Sim, que a minha memória, se é para fazer dano, não se coíbe. Muito selectiva, só me dava as páginas onde estava o que precisava escrever, as linhas que ocupava, se estava a meio da página ou no princípio, se na frente se no verso...e o assunto, nada. Zero.
Podem dizer-me que não há Deus. Penso mais vezes que sim do que não. E nesse exame fatídico, em que, claro, não escrevi quase nada e ia ter de zero a cinco numa escala de zero a vinte, penso que sim, que Ele me pôs a mão. Ah, podem desdenhar, então só há Deus quando te convém. Não é isso. Deus existe sempre, mesmo se não o noto. Um Deus não é conveniente e não pertence a ninguém. Também não creio que seja solitário, que a solidão tem raiz humana. O que aconteceu foi o acaso de termos de repetir a prova escrita de todos os exames. Para mim, divino e providencial. Como a memória reatou funções, não me demorei a pensar no caso e atribuí a desregulação a factores variados. Porém, no princípio de uma doença – que ainda desconhecia que tinha –, saltou-me em cima a pés juntos: num teste, esqueci a matéria da minha disciplina preferida; não só a de teste, toda. Dois anos de estudo olvidados num ai. Preocupei como se preocupam garotas de dezoito anos: em brevidade e pouca urgência. Mais tarde, na faculdade, tive uns apagões a que chamei nervos de oral e desliguei.

E agora isto. Terá a diva alguma coisa contra a hospedeira. Lamento se não sou quem ela queria. Mas se nem quem eu queria sou...Ora esta. 

domingo, 22 de novembro de 2015

Um Verão em Itália

Se duas pessoas se juntam e a conversa gira à volta do clima, quase sempre é sintoma de mútuo embaraço. Falta-lhes assunto, desconhecem-se e fogem a “pôr o pé na argola” por abordagem de tema que mais exija. O estado do tempo passa, neste caso, de mera condição meteorológica a entretenimento de minutos que se arrastam, lesmas peganhentas e babosas que pegamos com a pinça climática.
No entanto, conversar sobre o tempo pode ser assunto sério. A verdade é que não será apenas a mente a tornar-nos humanos. Por via dela, temos conhecimento da nossa sujeição à temporalidade, cuja não existência  nos escandia de sermos homens. Portanto, o tempo, nas suas três instâncias, integra e categoriza-nos: anjo com pés de barro, infinitude limitada, eternidade finita. Expressões bonitas de dizer mas difíceis de viver.
Mas, a condicionar o quotidiano, há ainda a questão temporal de ordem prática e comezinha. Por ela, o dia-a-dia dobra e faz mesuras, encurta por medida, torna-se um rasgado sorriso ou um contrafeito esgar. A existência está polvilhada de meteorologia e é escusado negar-lhe efeitos que dão  pelo nome de “pequenos ajustes à realidade”. Ora, as férias não se eximem a tais  acertos desacertados. Para mais em Itália, país de telha, que a descaso se enche de relâmpagos e trovoadas sem destino, anteparo de rebentamentos líquidos em catadupa. Foi assim, impreparados, que nos encontrou a tempestade do segundo dia na Bienal de Veneza. Felizmente, algo no semblante da manhã me fez voltar a casa, em busca do corta-vento. Ainda a caminho do celebrado vaporetto, a chuva fez a sua entrada. Pé ante pé, em gotas grossas que breve adquiriram velocidade de atleta, um ventinho cortante em passeio, a desmanchar-me a sombrinha de bolso que coabita com o leque. E logo Veneza numa tristura de dar dó: os canais sozinhos e a escorrer, lonas rápidas sobre as gondolas, corridas de turista sem aviso. No cais de embarque, gente esfriada, pés queixosos em sandália aberta, olhos de inveja nas poucas senhoras avisadas, prováveis venezianas, de casaco, cachecol, guarda chuva e sapatos; no frio do canal, crianças em corpo de verão, molhadas e aos berros soluçados, nariz a escorrer, pegadas às pernas de mães carregadas de malas, que surdinavam comentários a companheiros aselhas e desasados enquanto as assoavam, inermes à sirene que pedia colo, bracitos ganga acima, exigindo guindaste. Fixei a indiferença enlameada do gran canale e o vaporetto a aproximar. Entrámos e à viagem desanuviada de outros dias sucedeu o desconforto das correntes de ar, do choro infantil, de uma mãe benfazeja, transpirando restos de woodstock, que cantava em afinado francês e profusão de gestos, uma canção que metia galinhas e números em repetição acrescentada que calaram a chorinca de serviço. A garotita foi mesmo até ela, qual ratinho perseguindo a flauta mágica. A jovem mãe sentou-a a seu lado no chão do barco, talvez sobre a sua saia larga, e continuou a actuação com a criança que tinha no colo. Abençoada seja ela e a infinita paciência que tomou para si. Esta mulher, mais ou menos despenteada, foi um sol na agonia da manhã.

E porque uma desgraça nunca vem só (e uma sorte também não), mal saímos do barco, o alarme do Luís a palpar o bolso, “ roubaram-me a carteira, merda”. Um palavrão a desábito. Logo, um facto insofismável.

sábado, 21 de novembro de 2015

Olívia

Olha garota, tu desculpa, mas é que tenho pavor a descobrir que morreste mesmo. À séria. Assim uma coisa de não estares em casa nunca mais e haver outras pessoas a morar no lugar que foi teu; de eu te procurar na rua de sempre que a minha baralhação não alcança; de os  alentejanos à beira do carro, a coçarem a cabeça por cima da boina, embatucados na resposta, uma fixidez mórbida aguardando reacção, morreu já vai para um ano.
E depois chego ao teu portão que dá sinais de sim e de não. Para que duram as coisas mais que nós, se depois levam que tempos a despir-se de hábitos, a despegar de cheiros, a entretecer a realidade. E pode que não. Sabes tu, na casa da minha avó, morta há que séculos, ainda uma flor ou outra plantada por sua mão. Palavra. Bom, as flores não são objecto de comparação, fazem o que querem. E aquelas, pelo visto, querem florir, renascer a cada primavera. Passo lá e os pés abrandam nos pedais, o guiador feito parvo a querer virar, dar a volta à casa e encostar no pilar do alpendre; e tenho de contrariar a minha vontade de anuir - até porque alguém a murou. Por entre o folhedo das árvores, espreito a selha onde lavava os pés, vestido e combinação a escorrer. E o meu avô, juro, está lá, virado ao gargalo do poço, todo mãos no golpe do balde. Às vezes, penso que devia fazer o mesmo contigo, regressar ao que deixaste. Metia gasolina e partia como dantes, Alentejo adentro. Depois de muito quilómetro, numa recta sem fim, passava a placa indicativa da Caridade noivando ao longe, e subia-me uma ternura só de olhá-la assim, aldeia tão pequenina e perdida na planície, à mercê sabe Deus de que maldades. E logo, logo, circundava a igreja matriz de rectas barras azuis, tão alentejano o deus que lá mora, anos a fio virado ao vagar da praça, a sofrer o áspero do vento que encana a esguedelhar árvores ou sufocando, lento e esbraseado como qualquer mortal, quando nem uma aragem corre e um inferno de calor assenta na terra desfalecida e semimorta. Mas isto saberás melhor que eu, Reguengos é a tua cidade.
Como fazer tal viagem, diz-me tu, amiga. Vá, ensina-me a tua ausência. Preparo o quê, para quem. Em quem penso no caminho. O que faria à beira daquele portãozinho pequeno a que já aprendi os truques. Desculpa, não sou capaz. Emendo, não tenho de ser capaz.
Aí tens, Olívia. É isso. Prefiro eternizar-te no lugar onde te visitei menos vezes do que devia. Mas as coisas boas são sempre a menos. Calha assim.
E afinal, a eternidade é essa coisa vaporosa e de nuvem, ou simplesmente não existe?  Bom. Se não existe, estou falando sozinha. Pra nada. Pra ninguém.   De novo. Portanto, mais uma vez jogo nas preferências: Em mim, existes sempre. Queres lugar melhor, Olívia? Não comes, não bebes, não dispendes. Ora muito bem. Sim senhor.
Pronto, tá bem, cansei-te. Vai lá apanhar solinho recostada numa nuvem. Ok, sim, guarda-me lugar que a vida é um rufo.

E porta-te, que não quero cá queixinhas dos santos

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Atentamente na Bienal


A atenção humana é enigma maior que o da esfinge. Nada promete a quem o desvende e é provável que não seja de esmiuçar. Pode até parecer que exercita a desobediência  deliberada. Senão, repare-se: é incompreensível que estejamos numa aula e só nos lembremos das pernas vidradas da professora passeando devagar em estalidos finos (e não, não é motivada por concupiscência adolescente); que vamos a um concerto e, em vez da música, nos fique a argúcia cuscuvilheira que rebrilha nos olhos da vizinha do lado; que passeemos no canal e guardemos apenas o garrido das sardinheiras no cais de embarque. Enfim, a nossa atenção, não só não é exclusiva, como se detém a desejo e toma para si o que bem entende. Uma  desobediente caprichosa. Portanto.
Assim eu, na Bienal. Passaram-me os pavilhões, as obras, as pinturas e esculturas, as provocações quase todas. Lamentei o pavilhão fechado da swatch, com animação de Joana de Vasconcelos,   e que aguardava técnicos de Portugal cujos deviam fazer caminho a pé, dada a incógnita sobre reabertura.

Pela escultura descomunal da entrada exterior, o pavilhão mais chamativo era o inglês. Mas, é claro que a minha atenção se concentrou na cor – amarelo-ovo –, pareceu-me uma aranha em ponto grande, ou, com muito boa vontade – achei que tinha poucas pernas –, um polvo gigante. Fosse o que fosse, achei lindo. E resolvi dar uma vista de olhos no interior. De que gostei menos. Proliferava uma abundância de sexos masculinos e femininos, quase todos fumadores. Não achei grande graça, mas talvez tenha entendido a risota dos nossos rapazes no campismo (eles bem balbuciavam um cigarro em qualquer lugar...). Edificante e pedagógico. Portanto. Atardei-me um pouco à saída, observando a escultura. Era o máximo, exibia um agradável arqueado de pernas e havia na extremidade central qualquer coisa de flor a desabrochar, uma irrupção que me convencia. Mas ainda tanto por ver! Desci a escada e consultei o mapa a decidir caminho. Eis senão quando o Luís me encontra – de cada vez que acontecia, trocávamos informação contando uns aos outros o que mais nos agradara e aconselhávamo-nos – e logo me apressei a recomendar o pavilhão inglês desvendando que a escultura da entrada estava um primor. E ele numa espécie de solilóquio, sim, já lá estive, também gostei daquele pénis, a cor é muito adequada. Bom.  Voltei atrás, a reapreciá-lo; vê-lo pela primeira vez na sua qualidade; merecia. Mas é que não consegui, o primeiro olhar é que manda em nós, é o original.  A escultura surgia-me bem mais bonita e estilizada. Porém, aquela força de flor a desabrochar...coaduna. Parabéns ao escultor. Já lhe dava as costas quando ouvi – e vi - um garotinho de calções, mão dada a uma jovem muito italiana, dedo esticado para o amarelo-ovo, guarda mamma, un gricino tanto grande!; confesso, senti-me mais acompanhada. 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Na Bienal

Há coincidências. Afirmo-o a muitas vozes, em várias tonalidades. Se necessário, exemplificando. Foi por acaso que coincidimos com a bienal de Veneza. Abençoada sintonia! Por ela, eternizámos em fila indistinta, onde semelhávamos tortos e desordenados carreiros de formigas, um por bilheteira. Cogitei que não haveria muitos alemães em espera, o seu amor seriado pelo método decerto impediria os amontoados de gente, as zonas de fila  gorda e a desbordar de que não se entendia a existência. Ou os espaços inexplicáveis, buracos entre as gentes, que, suponho, insinuavam desconfianças na pituitária das pessoas em redor, cheiro mal; se calha, com a pressa, esqueci o desodorizante e o calor fez das suas; e as mais afoitas observavam disfarçadamente os pés, talvez tenha pisado cocó de cão e agora ninguém se aproxima. Ora, além do calor que demorava o passo na sombra e o estugava na soalheira, não há motivo para estas idiossincrasias de trazer por casa, que existem, em grande parte, casuais. E também porque os homens tendem a copiar-se uns aos outros. A cópia é um dos mais activos simplificadores do agir.  
Bom. A Bienal distribuía-se por vários lugares distintos: um jardim, as instalações gigantescas  pertencentes à marinha e vários palácios e praças da cidade. Refiro apenas a parte da bienal “plantada” no jardim, por interessante e prazeirosa. Um espaço com tudo que lhe pertence, apetitoso aos sentidos, acolhedor, propenso a desejos indefinidos. No início do jardim, enfileirei  por uma rua ladeada de árvores que me lembrou Serralves. Contudo, não repeti a sensação de pisar terreno conhecido e de ter vivido ali coisas boas e passadas. Não. Antes me certifiquei de estrear os passos. Por entre a frescura arborícola, espreitavam os pavilhões deste e daquele país, um busto ou outro a mirar-me do alto da sua compostura. Desconheço o critério que atribui edifício cativo a uns – nome  inscrito na pedra da fachada  – em detrimento de outros. Pode ser questão de antiguidade. Imagino, por exemplo, que a França seja bem antiga nestas andanças. Daí o nome do seu pavilhão talhado a escopo e martelo. Ou será relação de boa vizinhança...

Verifico-me incapaz de descrever ou avaliar o que vi. Não houve deslumbramentos, mas apreciações. A minha veia poética rejubilou com o pavilhão da China, onde dois ou três barcos sonhadores nos envolviam deveras com suas linhas e chaves em nuvem avermelhada de fios. Presumo que me deu alma passear incógnita e transparente em lugar tão aprazível, descansar num bar ao ar livre, estar entre pessoas desconhecidas, sem colisão. A bienal foi uma dor de pernas e a correspondente paz de espírito. Ser todo olhos, aliena muito de um homem. E a medida  dos anos requer cada vez mais o alheamento de se deixar diluir no observado, mergulhar. O artista cria e está inteiro na obra enquanto cria. Ao observador resta esse exercício de mergulho, olhos guiando a mente, a leveza a instalar. Talvez se chame prazer. A sensação mais próxima é a do viajante ajoujado que alija bagagem e, uma após outra, vai atirando as malas. Que continua caminho, pedestre entre pedestres, imerso na sensação de ser o único que quase voa.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Manhã em Veneza é este afã revolvido por enfileirar na praça de S. Marcus, no Palácio dos Doges, na Catedral... em tanto lugar onde a arte nos descentra e esparvece. Mas a verdade é que, quando a multidão ataca, já a manhã vai alta.
Venecia acorda bem mais cedo. E é vê-la a espreguiçar-se na hora desleixada das ruas mais conhecidas e transitadas. Banhadas de luz e quase desertas, encolhida a garridice dos toldos, não escondem o jeito dormente, ainda sob anestesia, de lugar noctívago. Quem as vê duvida de si, cabeça a um lado e a outro, devo ter-me enganado. Ao acaso de portas ainda cerradas, as esplanadas desolam, na modorra abandonada e quase grotesca dos lugares onde os bêbados apodreceram até ser manhã. Há cadeiras caídas, papeis de mesa rasgados, vasos de flores de banda, a geometria torta dos restaurantes é batom que desacertou da boca. Neste vento de desordem, reféns de horizontes caseiros, os empregados chegam amorfos, pernas bambas, mãos inábeis a levantar cadeiras tombadas no caminho, ainda tacteando a eficácia de gestos, não é este, ora esta. Molemente, entram a transmutar-se. E saem fardados e profissionais,  um desembaraço funcional que devolve a face  ao lugar.

            E nos supermercados, nas padarias, nas ruas onde, afinal, vive gente igual a nós? Acontece como em qualquer país europeu. Pessoas cumprimentam-se e aconselham este pãozinho, aquele bolo de manteiga, uma certa fruta bem madura, um determinado vegetal. Na entrada do supermercado, duas italianas de meia idade –  mais novas que eu – trocam uma receita que não lobrigo, olhar embebido  no guindaste da descarga de batata que provavelmente querem comprar; na caixa, uma criança faz birra, apetecia um doce que a mãe negou; eu engano-me mais uma vez no código de pesar a fruta e faço a empregada da caixa – tão linda e simpática – sair do lugar e ir ela mesma fazer o peso, o que atrasa toda a gente que está na fila; no átrio, duas garotitas comparam sandálias ou pés, cabeça baixa, fixas na função, fora do mundo. Lá fora, há gente quotidiana, a ir para qualquer lugar a que chama casa, sacos plástico na mão, equilibrando mercearias. As pontes do meu enleio já acordaram. E, vestidas de claridade desvelada, atentam no passo arrastado dos velhos, cuidam dos sacos que descansam sobre elas, dão bom dia ao ritmo tracejado da bengala que conhecem. E sorriem. Sinto-lhes o riso ténue e a complacência matinal. Mais tarde, serão apenas caminho e destino de lembranças. E essa posteridade não lhes vale um requebro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Veneza só é ela antes e depois dos turistas. Sim, é verdade, também nós pertencíamos ao grupo, mas tivemos a sorte (dá pelo nome de Luís, a nossa sorte) de habitar entre os venezianos, frequentar-lhes os supermercados, passear na quietude das ruas libertas da chusma que desgarra a cidade.
Nada é igual a vaguear por Veneza ao anoitecer, quando os restaurantes acendem velas, as flores transbordam de janelas e amuradas e a água dos canais bruxuleia. Apesar dos pés doridos, que linda a Veneza nocturna, em seu romantismo sombrio, a quietude dos sottoportegos, chamando ao amor e ao roubo. À noitinha, os venezianos acendem luzes de casa e abrem portas e janelas. Por certo se debruçam a reconhecer a sua cidade. Nessa hora, a beleza das pontes amplia. Despidas de selfies e sorrisos emprestados, de abraços de fotografia e poses estudadas, são recorte que os olhos apetecem. Ali permanecem, arqueadas sobre os canais como um arrepio de amor. Algumas  são em ferro ligeiro e erguem-se em curvas delicadas, talvez arte nova. Sobre a água soturna e sombreada, há um enleio que comove no encanto de ligar duas margens. No fim de tarde, faz-se palpável a doçura morna que desprendem, amparo do silêncio que vai chegando.  Então, descem devagar as mãos da  penumbra e,  em desvelo materno, as vestem levemente.  Em breve serão meninas cabeceando sobre o canal.
 Mas a Veneza diurna é diversa e, em grande parte, um fartar de gente. Falo das hordas que  enchem as ruas a partir da estação de caminho de ferro ou do largo onde estacionam os autocarros. Do turista que chega pela manhã e some ao entardecer.
Miro a rua  da estação ferroviária, a rebentar de gente quase correndo, um jeito de desafio no corpo, como quem vem travar uma batalha e não respirar e absorver uma quota de beleza em liberdade concreta. Caminham intrépidos como se os monumentos possam fugir ou haja um génio maligno a contrariar intentos. Talvez a pressa lhes exista porque em Veneza as filas engrossam e são a ordem das coisas. E porque, na bagagem, guardam apenas algumas horas para tanta maravilha. Trazem olhos  antecipados e futuros, quase cegos para a circunstância. São multidões  fugazes mas densas, em ruas de beleza ímpar a que não acodem. Portas, janelas, arcadas e palácios de esquina escorrem desilusão e comentam em transparência triste, não nos notam, existimos?.  

Mas, e se alguém caísse, se sentisse indisposto... talvez passassem sobre, na tentativa de cumprir roteiro ou chegarem primeiro. E vêm os vendedores ambulantes, besouros colados  a jovens chinesas de cabelo alado a esvoaçar em pele branca e lábios de carmim que todos se franzem à insistência bacoca,  eles acompanhando-lhes o passo, braço estendido a entrechocar o vidro de colares e pulseiras, murano, murano... depois abrandam, desistem e acorrem ao encontro de novas e potenciais clientes. E são as bancadas de fruta montadas a meio das ruas e gente de saco plástico na mão, damascos , uvas e pêssegos em alegre camaradagem; e as meninas venezianas, alheadas do roldão, a deslizar no empedrado, morenos meneios de gôndola esbelta, golpe de elegância nativa que desmede. E ninguém para notar as flores no monte de cardos. E chapéus. Múltiplos vendedores de chapéus a sombrear a porcelana  das chinesinhas, a deitar-lhes o espelho, expressão de apreço fingido. E elas compram e seguem caminho, os cabelos de desenho animado  acamados ao rés do rosto, um leque novo tocado por cinco gotas de sangue. É manhã em Veneza.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália


Que poder detém uma carga de tralha! Não aprecio o Gran Canale, ou deixo os olhos espreitar  a vetusta Veneza enquanto, no cais,  semeados de bagagem, esperamos quem nos guie até casa.  Veneza labiríntica onde as ruas todas se assemelham, a maioria das casas univitelina com mais uma dúzia, pontes airosas em proliferação. Ali abundam, isso sim, recantos únicos. Porém, se intentarmos regressar a um deles, raro conseguimos. Neste momento, ainda ignoramos tudo isso, os meus pés e ténis enjoados de sobremalas, agradecidos de terra firme, a relaxar, já temíamos pertencer a um insecto voador. Encosto-me à parede do cais  a apaziguar-lhes o redondo contrafeito da biqueira, enquanto a Mariazinha da história, a mesma que se perdeu na floresta, miolos de pão engolidos pelos pássaros, me grita uma angústia lá do fundo, e se ninguém vier?!  Habitam-me sem transtorno estas personagens de contos, comprensíveis e femininas. Mas logo chega uma italiana de meia idade e cala temores, Mariazinha já concentrada na tarte de maçã que tem ao forno. A senhora é despachada, funcional  e atípica: baixa, loira, olho azul. Declinamos a oferta vazia de intenção, querem ajuda. Seguimo-la. Caminha em passo meio apressado, ou assim nos parece, mas o cortejo arrasta-se; em breve ocupo o meu lugar habitual, na traseira do grupo. Mentalmente, equaciono o material que transporto no fito de alijar algum na volta. E prometo a mim mesma que não acrescento peso, nem uma pena de galinha que seja. Após muita esquina a repetir decepções, é ali; não, é ali; ai, ainda não..., a dama detém-se e abre uma porta anódina, em tudo idêntica a outras. Um, "abre-te sésamo". Entramos num fresco saboroso, a penumbra silenciosa evola do tabuleiro quadriculado do chão. Sem que a tivéssemos visto, já a casa nos apetece.

            Veneza oferece-nos os melhores e mais confortáveis aposentos. Cidade tão medieval por fora como contemporânea no interior. Quem decorou a “nossa” casa esmerou-se na mistura entre ikea e objectos de estilo; foi requintado na escolha de cores e adereços, usou, no cortinado da entrada, as cores da cidade. E, muito importante, cuidou de bons colchões e camas largas. Em Veneza  estamos de gosto no conforto e requinte que todos desejamos em viagem quando nos passam as juventudes aventurosas de saco cama e tenda às costas. Somos presas desta harmonia cativante. Talvez a meio da semana, conversamos com Pietro, o proprietário que encontramos sentado a meio da escada, portátil em punho. O gigante explicou-nos que trabalha em Pequim e pretende que a net seja partilhável em todo o imóvel. Andou pelos quartos e mais no meu por ser ali que estava não sei o quê e etc. O edifício é todo seu e serve o mesmo intuito: abriga turistas. O meu progenitor de imediato lhe faria contas ao bónus mensal. Porém,  desejei -lhe apenas que continuasse bem por Pequim. A net à força toda só chegaria depois de sairmos. Ora bolas.

Deste dia primeiro, para lá do tropeço de bagagens, fica  a graça natural e miúda das árvores que arredondam e florescem, bandeiras de paz que cruzámos à saída do cais. Como a beleza pode ser simples! Depois  de cheirarmos a casa e a fazermos nossa de objectos, a saída bandeirante. Nas traseiras, junto à Piazza dei Mori (lá estão os três mouros a atestar), mesmo nas nossas costas (da casa, da casa), um palácio casado ao resto das habitações, algumas delas com roupa estendida sobre o canal, cuecas em fila indiana, blusas e outra roupa normal em aceno sorrateiro. Um palácio  a sério, ogivas de cordame a sombrear janelas rindo de alto, em opulência de cortinados; e o benefício de cais próprio e barco a motor resguardado. Provavelmente, o palazzo pertence a duques ou condes que, se espreitam o canal, dão de caras com as cuecas da vizinha e o mais que ela queira no estendal. Venecia é também isto.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Ah, Os vaporettos nos canais! E agora eu desfiava uma quantidade de frases românticas sobre a poética de se viajar de barco e não haver automóveis em Veneza e o ar despoluído e assim. Mas é que, ajoujada de malas e sacos, o esqueleto num estertor a acompanhar-lhes o peso, não há poética que resista, beleza que nos não abandone. De joelhos vizinhos do queixo e olhos  na água, recordo o nosso bolinhas cheio como um ovo, mas os meus braços em descanso, as minhas pernas nas dobras normais e não este arco baleno sobre a bagagem que ameaça desabar de encontro ao meu ensonado vizinho do lado com quem convivo intimamente, tão siameses um do outro que ao levantar, me arranca junto, eu a estorcegar-me toda, tá-me a magoar caramba, não puxe com tanta força que a gente tem que se despegar primeiro. E aí talvez ele abra muito os olhos e comece a separar-nos à pressa, isto é meu, isto é teu, isto é meu, isto também, toca a despachar que o Vaporetto para só uns minutos e tenho de sair; e depois, em  desespero de causa, arrasta-me até à escada (vou de boleia que é alto e nem chego com os pés ao chão), uns bocados de cinta ainda em comum, e pede ajuda ao cobrador dos bilhetes, a apontar-me como se um contrapeso indesejado, olhe pra isto, ainda não cheguei completamente e já um sarilho destes me toca, a culpa é da sobrelotação, agora estamos pegados. Que vida (suspira), se a minha mãe sabe, dá-lhe um baque dos antigos, o senhor  desembarace-nos que não deve ser a sua primeira vez, mas é a nossa e temos pressa de ser um mais um;  ui, cuidado que esse bocado de pele é meu e já está negro de tanto repuxar –  e desata a esfregar no doloroso, a fazer-me cócegas com os nós dos dedos, eu a rir-me sem querer e ele numa interrogação de birra francesa, quelle bêtise... 
       Olho-o fora do sonho e o jovem francês não encolheu, está ali, factual e palidamente alto, olhos fechados, braços serpenteando a mochila que lhe barra o estômago. Como será que ele me sente, pergunto-me. Em mim, o vizinho tem consistência de muro. Os homens são assim: consistentes de corpo. É isso, as mulheres são rendadas: de pensamento, de esqueleto e até de carnes. Nenhuma mulher tem consistência de muro. Por mais gorda. E nenhum homem tem pensamentos rendilhados ou deixa de ter aquele jeito sólido de parede. Por mais magro. E entretanto, ainda que o Luís destine e apresente, o Cemitério, o Palácio dos Doges, a Praça de S. Marcus e etc., foi isto que pensei durante a indisposição no Vaporetto. Hummm…também reparei que a água era suja e que havia demasiados barcos a sulcá-la. O resto foi esforço. Repleto de suor corrente. Pensei no Pico Evereste e no íngreme das escaladas. Veneza é essa planura que se escala fortemente. Metro a metro. Quilo a quilo. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Nada existe tanto como antes de existir. Algum poeta o terá dito. E não só os poetas, que se não fora o desejo das coisas, elas mesmas pouco nos interessavam e delas nada nos viria. Por isso, antes de Veneza é que ela nos existe. Fica-nos a oscilar no desejo de sabê-la, palmilhar ruas e pontes que lhe fazem o corpo de água  fugidia, conhecer-lhe o cheiro pagão dos cabelos, murmurar-lhe lábio a lábio o sinuoso dos braços de muitas portas, subindo o cotovelo até à humidade concava e retráctil da axila. Depois, humildes e prostrados, rodearmos a saia cigana que insinua pernas guardadoras de convictos segredos. E penetrarmos assim nos seus palácios, namorados à descoberta da intimidade que lhe existe sob a multidão que pulula. Ó Veneza misteriosa que sonhamos conhecer! Doce sonho de uma semana de Verão! Por ti despimos cabides e armários, puxamos malas e pacotes, fazemo-nos reiterados viajantes. Por ti, decidimo-nos a abandonar Ravena que tanto nos enleia em sua teia fasciculada. Ravena que nos reclama, uma mão cheia de história a agarrar-nos o pensamento. Em Ravena podíamos ser felizes.

 Mas já é outro dia e depois de alvorada expectante e despedidas para nunca mais mascaradas de ano que vem, sobreveio-nos a viagem para outra província, o Vêneto. No caminho, a paisagem um écran em mutação de cores, a exposição de verdes agrícolas perdendo para infiltrações de amarelos que rodeavam alguma desarrumação cénica, a remeter para desacertos pátrios e sua mescla insane de alhos e bugalhos. Nada de jardins cuidados e habitações de cor retocada. Convenci-me de que entrávamos  numa Itália menos abonada, a pobreza do gosto em desvarios de aqui e ali. A planura impunha-se esfumando o bucolismo acidentado e espigoso dos ciprestes. Em seu lugar, os choupos e a sua mansidão de folhagem sussurrando desculpas, boquinhas tímidas a entreabrir, somos assim. Os choupos são árvores pobres que existem sem porquê como todos os deserdados da vida. Vivem sem orgulho que os aprume e não lhes cabe a densidade colorida do cipreste. Existem verdurengos. Escusam a proximidade aquosa, mãe da frouxidão verde, quiçá da roupagem que se espalha sem direcção definida, remoinho de braços estendidos a nada ou, para quem prefira, estendem braços uns aos outros, permanecem de mão dada na sua vida de árvore. E amei os choupos por serem eles. Amei-os no verde sem arroubos, nos braços abertos e finos a entrelaçar, quase sem forças para o alto onde as folhas se penduram no à-vontade espaçoso que falha em qualquer arrogância cipreste.  Benditos sejam os choupos que adivinham e sinalizam as correntes subterrâneas de água doce. Benditos.

domingo, 1 de novembro de 2015

Olívia


O tempo levou-nos na correnteza. Submersas em tentáculos quotidianos, persistimos viradas ao umbigo e suas extensões. Vivo enleada em palavras enquanto tu persistes nas obras comunitárias que te organizam as horas, manifesto da tua agenda. Não entendo como te deixas seduzir por catequeses, missas e velhos sem destino ou direcção; mas a ti  “faz-te espécie” que eu perca horas a ajeitar letras sem préstimo, que ninguém lê e eu mesma esqueço (a mim também me faz espécie, mas é um ritual e agrada-me). Como as pessoas diferem sendo tão parecidas! Preciso de um exercício de bom senso para aceitar que uma vida – a tua – tenha tal conteúdo e daí lhe venham os toques de alegria que te animam. Imagino que eu te provoque algo semelhante.

Lá fora, a política enlouquece a fingir acordos que não duram, o país depaupera e hordas de refugiados morrem e sofrem às portas da Europa. A frágil e fingida Europa. Que oferece roupas e agasalhos, e brinquedos e livros e o diabo a sete, mas receia.  Que deixa passar – se deixa –, mas não acolhe. Armada em obtuso Pôncio Pilatos. Pergunto-me como pode ser levada a bom termo a inclusão dos refugiados se não beneficia de acção concertada por parte dos Estados. Não se criam infraestruturas, não se pensa que são milhares e milhares de pessoas em fuga e  sem um haver. Que vêm para ficar. Oh, Olívia, não me julgues ingrata, uma mal agradecida a tanto particular que se moveu. É tudo necessário, os camiões TIR com víveres e roupas e livros e bonecos e tanta coisa. Porém, tudo isso pertence a outra ordem e é quase irrelevante na solução do problema e na sua premência. Queiramos ou não, é agora um problema nosso. Nosso, enquanto Europa. Nosso, enquanto países envolvidos no acolhimento. Vai afectar-nos presente e futuro e reduzir o problema à sua dimensão moral e humanitária é simplismo. É também um problema social, económico e político. E tem de ser assumido na sua qualidade. Mesmo não aplicando o discurso – verdadeiro -  sobre a tradição humanista da Europa, é errado ignorar e dar as costas.

            Quem sabe, esperas resposta do Deus de bondade e paciência. Que te acalma e promete.  Ao invés, os meus deuses  são inclementes,  viram-me o bico da seta  e não fazem promessas. Privo-lhes com a veia poético-estóica, que apregoa o esforço porfiado e convicto: “vai...mesmo que sejam vãos os passos”. Olívia, essa bondade inalienável não me existe, apaguei-a ao nascer. Ficou-me o reduto breve da poesia. E  os passos.

            Eu acho que hoje o meu coração ensopou, está de portas abertas e à chuva. E é por isso.

Um bjo

domingo, 11 de outubro de 2015

Um Agosto em Itália

Noites de Ravena

Se lhe franquearmos a entrada, a noite feiticeira exerce-se sobre nós, em mutação de olhos e mente. Pondero se os feitiços nocturnos emergem por mera falta de luz ou se a noite é antes a liberdade possível, tempo de pausa no quotidiano que transborda horas esquartejadas até ao tutano. Tempo de dormir sonhando, haja ou não lembrança; e de sonho sem dormir, o pensamento a espairecer nos longes irreais. Este é o tempo. O timing identitário e a uso de todos os homens, esboço matricial da imagem de cada um. Não é apenas regeneração, o necessário repouso celular do corpo; nem a semi-morte que entrava todos os sistemas de um ser vivo. É também a laboração emergente de um campo de irresponsabilidade, malha aberta onde anzolam os compromissos diurnos, tempo de o pensamento mais sisudo desvincar. Ora, se a eclosão do desejo nas almas violentas desperta maus instintos, ideias torpes e o desassossego do mal em sua força de gume, a par flutua o sonho que reúne e congrega homens empenhados em alijar invejas, raivas, vaidades. Convenço-me que, sem a telúrica dominação desta força, a espécie já teria estourado. Mas é melhor voltar às noites italianas, meu intento primeiro e de que me desvio usando filosofia de bolso que me ocorre a descaso. Sorry.
A noite é em qualquer lugar o mistério escuro que arrebata e transfigura. Em Itália apenas conheci as noites de Ravena. Duas. Bom, foi pouco. Mas valeu.
Nas duas vezes em que nos armámos em “Gandas malucos” oscilámos entre a Piazza del Popolo e a Piazza San Francesco porque aí corriam ventos culturais que nos pareceram de feição. Garanto, não eram as mesmas praças. Todo o espaço me parecia outro, vivaço e desinibido, um certo ar risonho. Ambas tinham um quê de vagar entornado nos passeantes. E, nas esplanadas, turistas colavam às cadeiras, sorvendo o espírito de alegre e descomprometida vizinhança de pernas e braços. Havia um ror de ciclistas que cirandava por todo o lado – em Ravena bicicletam novos, velhos e de meia idade; turistas e ravenenses. As bicicletas chegavam e partiam sem ruído, pedais eufóricos a rebrilhar (desconfio que alguns velocípedes traziam um grãozinho na asa, tal o contentamento que os percorria). Bicicletas airosas de serem novas. Bicicletas airosas de serem velhas. Airosas sempre e a eclipsar os condutores. E depois ficámos a tentar ouvir o jazz – que nem era mau – e em seguida fomos espreitar San Francesco e por lá nos quedámos. Era uma conferência ao ar livre, “La Grammatica del cuore” centenas de pessoas a assistir, umas sentadas e outras tantas de pé. Ouvimos um médico e um poeta. E o primeiro batia o segundo aos pontos. Teria uns cinquenta anos e passaria por actor. Porém, de conversa,  pertencia ao mundo das letras tal o à vontade com que dissertava sobre autores (italianos e não) e citava – de cor – excertos e poemas. Pareceu-nos admirável na medida em que as citações apareciam em conversa com os parceiros de mesa mercê de oportuna argúcia. E por ali estivemos de encanto, até ao fim. Posto isto, voltámos ao jazz e gastámos um bocadinho a pedir desculpa que os rapazes sabiam o que faziam. Depois, rumámos ao ninho, gratos a deuses e homens.        

Na segunda noite, confirmámos a qualidade dos espectáculos quando, nas mesmas praças, ouvimos – San Francesco -  uma banda a ressuscitar com alma grandes êxitos dos anos sessenta. Dei por mim, leque afobado  cantarolando entre a multidão à cunha, sentada por todo o sítio, um muro de pessoas lá atrás, em pé e nas bicicletas.  As pedras dos muros em volta da praça (onde é que elas estariam de dia) a escaldar pernas, incomodidades de suor abrindo poros insuspeitos, uma mão que corre a perder-se no decote e a certificação molhada dos dedos,  não era um bicharoco. E fomos terminar o sarau na Piazza del Popolo com um trio feminino: piano, violino e voz. As garotas eram lindas e havia arte na música. Mas a cantora, muito diva e italianíssima de figura, não era dona de voz alada. Que pena!