sexta-feira, 13 de junho de 2014

Ó Cristo, a Julieta caiu

A realidade entretece e enreda-nos sem atentar a estados de alma, ponderou enquanto descalçava uma bota com a outra, o bico do pé a forçar no calcanhar. Há quanto tempo comprara o bilhete para o bailado…abria a gaveta e ele a garantir um bom serão, ali, desdobrado, o nome, a fila e o número do lugar a negrito. Posto num sossego de fazer inveja.
Porém, à medida que o dia se aproximava, as perspectivas foram esboroando. Porque os planos são sempre e apenas planos. E, à data, os afazeres e aborrecimentos na linha da frente, a destacar. Então, reuniu-se toda em esforço, a mente a verdejar, à noite esqueço, eclipso. E cumpriu-se em metódicos ademanes de quotidiano.
 Até ser noite, minutos e horas num atropelo, o projecto, hoje visto-me cheia de tempo, subterrou. Quanta coisa a irromper em teimosia imprevista! Quando, enfim, olhou o relógio, já o redondo do tempo evaporara deixando uma nesga de minutos apressados, passinho curto, a segredar-lhe, larga o resto e vai. Assisado conselho. Vestiu o casaco, alisou a franja, alçou a mala e saiu. Depois dos engasgos do elevador a sacudir preguiças de ferrugem, a rua. A recebê-la em hostilidade friorenta, prédios-concha, persianas corridas, átrios desertos. As árvores disfarçadas de guarda-costas gigantesco, a reluzir alturas por entre candeeiros envergonhados que lhes davam pela cintura, as folhas a desmaiar num desassossego de luz, queremos dormir. Só o tráfego automóvel deslizava diáfano. Autocarros sombrios resfolegavam moíções de dia inteiro, o interior esventrado por claridades de lâmpada que anoiteciam bancos vazios e vincavam preocupações habituadas em olhos mortiços de seis da manhã, que vou fazer para o jantar ;  num cansaço arfante, encostado à bengala, um idoso a encher-se de sem futuro, olhos de lago ressequido.
 Lisboa pacata em noite de fim-de-semana. No Metro, alguns sinais, garotas de festa, rapazes com gel e perfume enjoativo, um ou outro trabalhador retardatário, o corpo a entregar-se aos solavancos, olhos fechados, desmaiadas mãos sobre o vazio balofo do saco do almoço. Ela, o que serei para eles. 
Saiu numa rua repleta de noctívagos vagarosos e encontrou a sala de espectáculos meio vazia, os lugares na forma tradicional, um corredor ao meio e dois laterais. Acomodou-se. De imediato, duas filas à frente, nos dois primeiros lugares à direita do corredor central, um parzinho abraçado a fotografar-se com telemóvel, ela a chegá-lo para si, dedos longos a virar-lhe o pescoço. Desviou o olhar a impedir a devassa, o amor é coisa de dois. Daí a pouco, arriscou um soslaio. Siamês perseverante, o par continuava em pose ao telemóvel, ela uma mão sobre o ombro dele, a outra, subreptícia, atrás da cabeça num exercício de dedos assaz suspeito. Sorriu. Talvez que ele também, mas não lhes descortinava o rosto. Que namorada estranha, pensou. Imersos no seu mundo biunívoco, conversavam; amiúde, ela encostava-se mais a ele e movia as mãos em gestos gráceis, movimentos alados que apetecia prolongar ad eternum. Intrigada, tentou vê-la melhor, mas só pernas e pés descaiam do assento. Do seu ângulo, a jovem reduzia-se a um par de pernas inesperadas, tornozelo grosso em flagrante assimetria com a delicadeza de pulsos e mãos.  Descortinava ainda o remate do tornozelo imerso nas sabrinas brilhantes e o esotérico caudal de cabelo escuro. Vista assim, parecia equilibrista de circo. Observou o homem. Andaria entre os trinta e os quarenta, t-shirt preta, calça de ganga, moreno de tez, os músculos a esticar a t-shirt. De certeza, uma tatuagem algures. Havia nele a ambiguidade contrafeita de alguém fora do apetite. Rodeou o espaço a avaliar se o estranho par merecia reparo de outra gente. Ninguém os notava. Mas ela presa ao inédito magnetismo dos tornozelos de varina. Porém, a jovem destacava-se pela postura, costas certas com o espaldar, cabeça erguida. Ninguém na fila detinha a mesma graça perfilada. Que estúpida, por que razão pensei em pernas de peixeira, é bailarina, concluiu. Avaliou-a de novo. E reconheceu-lhe uma vivacidade entusiasta com brilhos de alegria intensa.
Subitamente, ela riu; atirou a cabeça para trás e o cabelo, em roda livre, envolveu todo o espaldar da cadeira e ficou a ondular, acima-abaixo, acima-abaixo, ao ritmo das gargalhadas. Magia inconsciente de si. Voltou-lhe a surpresa, que bailarina tão sui generis. Reparou-lhe os calcanhares acima das sabrinas dardejantes. Sorriu de novo, bailarinas são pessoas únicas, pensou, têm pés irrequietos. Mas, tal como rira, eis que se levanta num rompante do vestidinho laranja, uma fina tira preta a circundar a brevidade da cintura. Inexacta ninfa, cabelos pela cintura e pernas de bailarina a desdizer. Teria entre dez e treze anos e o moreno seria o pai. Embeveceu. O espectáculo ainda em suspenso e já o mais belo da noite acontecera.
Quando o pano subiu, a garota rígida, em hipnose. Mas a ela o bailado Romeu e Julieta não convencia. O Ballet Russo confirmava a desilusão inicial, em versão bafienta e muito teatral. No ar, um vago de impreparação. Talvez fosse uma companhia decadente e com falta de verba, ou tivesse apostado forte em gente muito jovem, insuficiente na exigência. Ou ambas. Porém, a ninfeta de olhos no palco. Alheada. Dissolvida. O moreno às voltas no assento, pernas e braços a cruzar e descruzar.

De repente, ardis do destino, num tempo de bailado a par, a Julieta desamparou e caiu sem ruído, qual pássaro que perde o vôo. E a ninfa de lábios redondos, um oh que não se ouviu. Ela certa no seu lugar, a olhar as duas, compungida da bailarina que se levantara num relâmpago, a perguntar-se, como é que consegue continuar, falhou ou terá caído porque o Romeu não lhe assistiu no tempo certo. E, enquanto Julieta ondulava inseguranças assistidas palco adentro, um silêncio de pés audíveis, dramático, expectante, sobrepunha-se à música.  Ela em desequilíbrio, a  apetecer-lhe segredar aos vizinhos do lado, “Ó Cristo, o coxinho caiu”. Mas os vizinhos estavam pelos cabelos com o mastodonte que se lhes sentara na frente, não tinham idade para entender a graça e era possível que a olhassem meio espantados, os olhos, é maluca. Que mau gosto, admitiu em desolamento. E dedicou-se a admirar os efeitos musicais nos pés da ninfa que, soltos sobre os sapatos, ensaiavam passos involuntários. Ela sim – concluiu -, é linda.
Colocou as botas lado a lado. Simétricas e mortas. A vida era aquela garota, sapatilhas brilhantes  aflorando a humidade do empedrado, mãos mágicas e palavrosas, o pai num sorriso liquefeito, entre a ternura e o alívio.  E os dois a perderem-se numa esquina, como quem sabe onde vai e tem pressa de chegar.

Deu um pontapé nas botas a desfazer-lhes a simetria. Tão triste ser coisa!

sábado, 7 de junho de 2014

Aniversário e Outras Coisas

Fizeste anos. No desconchavo dos dias, o teu aniversário apetecia-me. E tudo se renovou. Um Dia do Pai paralelo. E tu, contente. Porém, a tristeza misturou-se-me com a noite. Demito-me de porquês, desisto de presságios, tenho raiva a pressentimentos, não estou nem aí para sentidos que acenam sem existência. Por isso, descansa, guardei-te contente, feliz na tua eternidade grata.
Quando os pais se ausentam, há uma solidão agoniada, a estrangular. Por vezes penso como será quando não estejas de corpo, não haja uma casa tua que foi nossa e mores definitivo no lugar que alindaste a gosto. Não sei de outro sítio que me receba, onde consiga espairecer de mim. Nós dois somos tagarelas, mas não nos perdemos em confidências mútuas, alienamos queixas disto ou daquilo, mas ainda assim fazemo-nos companhia a contar palermices. E penso em Lobo Antunes a garantir que as conversas com o irmão João são silêncios. Conversam sem lábios, pálato, dentes, língua, bochechas... Um junto do outro, comunicação das almas em proximidade neuronal, corpo do mesmo corpo, mente da mesma mente. Não é assim connosco, temos uma geração de permeio, espumantes zaragatas com decibéis insanos de travo odiento. E outros intentos. A verdade é em ti interior e secreta, os medos perpassam-te na força dos pesadelos e cresceste num mundo de trabalho. Não aprendeste o sonho acordado. Sei tão pouco de ti…e nem tu te saberás o suficiente. Não pensas nessas bagatelas.
Porém, nestas horas em que o sumo roxo das violetas me escorre lassamente, vê tu, apetece-me contar o engraçado de ti. Apetecem-me os teus involuntários: erros de gramática, hábitos que não questionaste nunca, distracções hilariantes. São antídoto caseiro contra o lado venenoso de viver, pedras de um colar de leveza. Uma espécie de amuleto que acorre ao chamado da memória. Sempre lhes resisti como pude. Talvez pudor sentimental ou respeito. Mas a memória, como tudo que em nós existe, é incerta. E, em nós dois, o efémero acelera; em qualquer mínimo momento pode devir efeméride.
Lembras-te? A luz eléctrica chegou a Bombel já eu tinha 26 anos; era professora primária há seis e frequentava o 3º ano do Curso de Filosofia. Ora, no terceiro ano de trabalho, hospedei-me em Setúbal em casa de um amigo teu. E comprei uma televisão pequena, ainda a bateria, para ter no quarto e ver as aulas do primeiro ano do curso propedêutico, na mira de a poder levar para casa, lugar onde morreu. Nas férias, carregava a televisão e a bateria  para Bombel - não me lembro como podia com aquilo tudo – e víamos televisão na cozinha pequena que eu mobilara com uma camilha e a toda a largura um sofá castanho de napa chiadora que fazia o nosso encanto, oferta de uma prima enfastiada de ruídos. Dormias cedo. Madrugavas para regar, semear, tratar das coisas da quinta. E nós poupávamos a bateria quanto podíamos porque tínhamos de a pôr a carregar na oficina do Chico – nessa noite não víamos televisão - viajando no nosso carro de mão que forrávamos com as sacas do cimento ou das batatas para não estragar o apetrecho. Numa dessas noites, televisão ligada e já sentados à espera provavelmente de um filme, a Maria Adélia deslocava a antena para eliminar a chuva do écran enquanto nós três íamos orientando, “tá pior, tá pior” ou “ parece que desse lado tá melhor, levanta mais” e outras indicações. Entretanto, de tanta mexida, havia posições em que a antena já não se sustinha de pé e caía em vôo picado com baque surdo, “ploc”. E nessa noite foi assim. A Maria Adélia estava a pôr “coisas” atrás da televisão para fazer uma muleta à dita e nós calados e atentos, ainda assim a palerma da antena não descaísse um nadinha e nos privasse de novo da nitidez da imagem. Tu já estavas no quarto. Atentos à antena e a temer que começasse o filme antes da operação terminada, ouvíamos-te despir em ruído de fundo. Sons habituais que não desmanchavam a nossa atenção primeira, o barulho das botas a despedir no chão uma a uma e tu descalço a pô-las no corredor; o ranger breve da cama, sinal de que te sentavas; o tilintar que agitava as maçanetas quando penduravas as calças  na grade. De súbito, parou tudo. A tua voz, claramente articulada, um fundo de queixa a tracejá-la “eh, poças! este sutiã tá-me apertado.”
Esquecemos as orientações, o filme, a Maria Adélia parou a operação e a antena caiu de imediato e nós quatro em silêncio de riso, escancarados à gargalhada, olhos esbugalhados. E antes que um mar de gargalhadas nos invadisse parvamente, um de nós, “o sutiã, pai?!” e logo tu a frisar a emenda, “Oh, o sutiã! Maluqueira! As cuecas.”, e a repetir por via de dúvidas que subsistissem, “As cuecas tão apertadas”. E aí nós quatro rimos até não poder mais, chorámos de tanto rir, eu, como sempre, engasgada de tosse. Foi um alarido até tu, já deitado e com o lapso digerido, “vejam lá mas é se se calam que quero dormir.”

Voltámos à antena e ao filme. Mas toda a noite rimos. Ainda hoje.