terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Perecíveis e Contingentes

Há nos dias uma ordinária sequência que não comove mas nos vai movendo, que reacende a cada alvorada. Por vezes, vindos de um pesadelo dolorido,  acordar é alívio. Constatamos a ilusão e damos por nós a descomprimir, já meio alegres das lembranças macabras, aliviados no sem motivo da aflição que pesava. Fechado à manhã em botão, o quarto assiste-nos em silêncio escurecido, os números no relógio rebrilhando em vermelho digital, a fazer viva a mesa de cabeceira. Casulo. Protecção.
Num emaranhado de pontas soltas, em passinho de bebé, o pensamento evolve, caminha aos soluços,  desentorpece na leitura das horas sacudindo nuvens de sono. O olhar descongestiona o fogacho de algarismos franzidos, alisa-os, torna-os eles um a um, ainda assim não saiam baralhados o dois com o cinco, o três com o nove. No esforço de observação, sonolência a dissipar, surge a dúvida, será que uma hora adiantada ou atrasada, ou bastará conferir; deve-se este cálculo a não haver mudança horária automática nos relógios digitais e existir gente que lhes limita a pontualidade à alternância de seis meses.

Depois, quando enfim as horas se entranham e entrelaçam no dia que aguarda, parece que se há-de estender uma perna e ela a assomar por entre os lençóis com um pé todo esquisitices na ponta, desejoso  de voltar à sanduíche dos lençóis. Mas nem sempre. O facto é que há pés resfriados, despertos em desconforto. Haja quem saiba  de pesadelos, que por certo nascem de um défice de calor nos pés - há no mundo relações tão estranhas que esta nem me parece desconchavada. Pois bem, sentamo-nos de salto,  um pé desconsolado - o mesmo que ansiava lençolar mais um pouco - em palpação de chinelos, dedo grande esticado a acertar direito e esquerdo. De seguida, as manobras. Depois, de estacionados e metódicos, os pés ocupam-nos sem hesitação. 
Não é assisado movimentar-se uma pessoa no escuro; experimentar é dar azo, por exemplo, a rolar escada abaixo. Ou outros perigos. Que o breu confunde. Quem garante que no escuro os objectos não mudam de lugar. Quem pode afiançar que a escada, que era sempre em frente, não deu uma guinada para a esquerda ou para a direita. Quem jura a pés juntos que aquele passo em vão não era o buraco aberto de um degrau. Ninguém. Há uma perversidade latente nos objectos, manifesta na sua quietude quando queremos e tanto desejamos a sua intervenção; ou mesmo quando mudam de lugar, saem do hábito e se escondem sem aviso. Não há dúvida, vivemos à mercê da contingência. 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ler na Escola

Li há tempos – no jornal Expresso do dia 8 de Dezembro de 2017 – que, em mais uma avaliação internacional em educação, os alunos portugueses do 4º ano de escolaridade desceram na capacidade de compreensão de leitura.  Ou seja, lêem mas não sabem bem o que lêem porque não o compreendem.  Mas, refere o mesmo estudo, as nossas crianças do 4º ano são as que mais gostam de ler. E em seguida o artigo do expresso expunha considerações e críticas de um a outro governo. Deste ao antigo porque o estudo data de 2016 e, sendo assim, os quatro anos de escolaridade a que se reporta dizem respeito à reforma do então ministro, Nuno Crato, que propunha  - ainda segundo o artigo – um sem número de conteúdos em lugar de definir competências e que privilegiava a leitura escorreita à compreensão. Do antigo governo e dos autores da dita reforma que se defendiam aduzindo que a obrigação de leitura corrente no quarto ano é fundamental e não pode nenhum programa prescindir dela, a bem do ensino democrático. E bla bla bla dos dois lados da barricada.
            Ora bem. A primeira coisa que me soe dizer sobre isto é que, ao contrário das expectativas elevadas dos inquiridos no artigo, que partem do princípio que as nossas crianças foram sinceras e gostam muito de ler, e portanto basta pegar-lhes no gosto e andar para a frente, eu desconfio amplamente da resposta das crianças do quarto ano que afirmaram gostar muito de ler (em cinquenta países inquiridos, estamos em primeiro lugar, gente. As nossas crianças são, a nível internacional, - 50 países! -  as que mais gostam de ler). Eu, se fosse esses senhores tão sábios e cheios de estudos, não faria muito caso de tais gostos infantis. Toda a gente sabe que as crianças – e até os adultos – mentem para agradar; basta-lhes pensar que fica bem dizer que gostam muito de ler e logo todos fazem ali a cruzinha. Ó gente, é que dizer que não gostam de ler é defeito, uma espécie de nódoa, fica mal, rara é a criança que o afirma num inquérito; isso é coisa dita lá em casa, se a obrigam a estudar a lição. Não sei mesmo por que razão os tais espíritos iluminados não desconfiaram de nada. É que fui reparar melhor e os países que estão em segundo e terceiro lugares – os que nos acompanham a ler mais - são o Cazaquistão e o Irão (calculem vocês). Portugal ocupa o trigésimo lugar na compreensão do que foi lido, não sei por onde andam o Cazaquistão e o Irão, mas dos dez primeiros não constam. Para mim é limpo, os garotos mentiram. Ou, como agora se diz, faltaram à verdade e assinalaram o que pensavam que lhes beneficiava a imagem. E os do Irão e Cazaquistão? Pois, não sei, mas devem ter tido um pensamento semelhante que as características do pensamento infantil não divergem assim tanto de cultura para cultura..
            Mas há outra incongruência. Porque, senhores pedagogos do “se o gosto existe, vamos trabalhar para que se transforme em resultados melhores” (Teresa Calçada do PNL).  Então as nossas crianças não compreendem bem o que lêem, mas ainda assim gostam muito de ler... gostarão de papaguear?! Não conheço uma única pessoa que sinta prazer  na leitura de algo que não entende completamente, a quem, quiçá, escapa o sentido do que leu. Mais me parece que seja isso razão para desgostar de ler. O que a experiência nos ensina é que quem gosta de ler compreende muito melhor qualquer assunto escrito e sabe, mesmo oralmente e por comparação com quem lê pouco, esclarecer melhor as suas opiniões.  Portanto, mais uma razão para duvidar do gosto deles. Mas quem será a alma que inventa inquéritos sobre gostos infantis desta natureza?! E as que os valorizam?!

Qual será o remédio para este mal de ler sem compreender?! A educação, no seu aspecto informal e formal não tem receita única. Mas sempre vou dizendo que escolher um livro para ser lido em aula, resulta. Instituir uma pausa para leitura que se continua dia a dia, resulta. Os alunos gostam de ouvir a professora ler uma história, esperam mesmo por esse bocadinho de tempo. Mas uma história longa, que os agarre e não seja da carochinha. Que eles já têm muita coisa a distraí-los, não precisam acrescentos.