sábado, 31 de dezembro de 2016

Vento que Passa

Os anos, como as horas, são uma sequência, vem um dia atrás do outro. Por isso, desejar um bom 2017 não é coisa que tenha jeito ou faça diferença. Que não faz. Os infelizes – começo por eles para ficar já descansada – vão continuar no estado de vítima. Podem atordoar, há substância no mundo para isso, mas fazem o movimento de volta, regressam à sua morada triste. Os felizes, tanta vez inconscientes de si e do mundo, também não passam a sofredores assim de repente – e ainda bem, que o mundo, por muito que custe a certa gente, precisa de seres sorridentes a quem a sorte bafeja. Ou que são felizes sem pensar nisso, ramo de flores alegrando a salsada da vida. E depois, entre os extremos pulsa um excesso de cambiantes, uma coisa assim de leque onde não há cão nem gato que não caiba, a revezarem-se contínuos. Está lá tudo. A lutar não se sabe para quê ou porquê, mas a maioria, arrisco, para ser feliz. Ou menos infeliz. Ou só qualquer coisa a que nem vale a pena dar nome, sobretudo porque o não tem e fica assim, inominado e misterioso, que os homens têm um fraquinho pelo mistério. Se insistem muito, pronto, talvez nos advenha dessa tendência inata para a sobrevivência, do apego à vida tão bonita e que vale a pena e é só esta. É verdade que, para quem acredita a pés juntos na outra, fazem-se ligeiras alterações; porque esta continua de facto a ser única e efémera; e a falibilidade torna-a mais sugestiva.
            E por tudo isto nada me dizem aqueles movimentados reveillons, apinhados de gente e rituais de boa disposição fabricada e rolhada em garrafas, as despedidas de ano velho, as entradas de ano novo com passas de uva que são uma bodega do pior que se pode comer em qualquer altura do ano, os brindes parvos com desejos da boca para fora e sorrisos meio tolos que tomam tudo e todos por igual, num friendship postiço. Estou mesmo em crer que passaria o ano a dormir como faço nos dias restantes, se por acaso as contingências da sorte não me tivessem vedado momentaneamente tal prazer.
Portanto, sou bem capaz de me deixar ficar ao quente, estúpida e bovina a olhar a tv que faz o seu papel para gente como eu que não gosta, mas vê na mesma (tem que se fazer alguma coisa).

Amanhã é dia 1 de Janeiro de 2017. E  Ano Novo Vida Nova é o quê senão a conversa do costume. Estou  fartinha de anos novos e velhos.  A vida apenas vai andando descompadecida e são os nossos passos a inventar a tão necessária esperança. 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Feminino Incontornável

Depois o tempo arrefece e traz a queda da folha e a lambedura de vassouras prestimosas. Acende-se o fogo. As noites alargam. E elas sonham com ver obra pronta, festejam-lhe princípios com olhos ternos e alegres, imaginando os finalmente. Enquanto isso, os homens papam notícias à velocidade da luz e engolem futebois de todo o feitio. E elas de viagem no comboio do tempo, a arredar livros e outras distracções, agora não posso, as notícias passando num corrupio e a ficarem para trás. Novembro encontra-as imersas em imbricadas  operações. A dois meses da Natividade, iniciam as listas de compras e marcam prioridades. Escrevem. Pensam na contabilidade. Riscam. Substituem. Repensam, lápis no ar e olhos em onde. Deixam uns pontos de interrogação para irem resolvendo, ou esperam que o tempo resolva. Não raro, levantam-se da cama em mordedura de ideia, riscam algumas linhas e começam de novo. A este ponto, algumas interrogações desaparecem da frente dos nomes.
Dezembro chega embrulhado em gelo e névoa. Friorenta, a natureza recolhe-se, involui. Manhãs de cama que apetece. Noites de ninho a chamá-las. E elas a resmalhar sacos, ainda não, tenho de adiantar um bocadinho neste pano, coser esta bainha, riscar este bordado. Ou, se a profissão muito as aperreia e são nocturnas em casa, ainda vou pensar no que quero comprar. E depois, porque sempre há um depois que é de comprar, adquirem as prendinhas com destino longínquo, os cartões que vão junto, as boas festas escritas. E, para quem mais se quer bem e há muito se não vê, uma carta cheia de palavras que nada dizem, mas são mais que coisa nenhuma e esperam vá aquecer o coração leitor. Porque no Natal as mulheres gostam mais de quem gostam. Não me perguntem porquê que não sei responder, mas é assim. O coração delas fica maior e abraça mais gente em simultâneo. É um fenómeno. Mas as mulheres, essas fadas feiticeiras,  são cheias de mistério.
Na semana que antecede o nascimento mais mediático do mundo – para elas o Cristo bebé nasce mesmo em cada ano -, atazanam a paciência dos funcionários dos correios. Entram atoladas de sacos e endereços, compram caixas e caixinhas, incham prendas em envelopes de almofada que mal colam, distribuem cartões e cartinhas por todos, esperançam no correio azul que agora esbranquiçou. E saem. Mais animadas que  soldado cumpridor. Deixaram tudo que trouxeram, mas guardam a bem-aventurança de imaginar o prazer de quem recebe. E isso, nenhum receptor sente. Só elas.
            Parece que terminou. Mas é que nem pensar. Consultam a lista e há o rol de gente próxima. Que recebe em mão. E alguns trabalhos por concluir. Fazem mais um périplo por lojas. Gastam mais tempo de agulha ou pincel. Percorrem a lista a riscar o adquirido e ainda a mudar prendas. Fazem contas novas que há mais duas ou três pessoas de quem gostam e que é sacrilégio passarem sem, ao menos, uma lembrança. E aí abrem mão daquele pecúlio que guardaram para os saldos e lá vão para o galheiro e sem pena ou hesitação, as calças que precisam, o etecetra que faz falta.
E, quase, quase na véspera, afinal aquela visita com que não contavam, confirma e vem mesmo. Traz a família. Então, hipotecam as contas do mês, levantam-se no cedo, entram em lojas proibidas e adquirem o último Menino Jesus.

E agora venham para cá com consumismo e época de prendas que se dão e ninguém quer, que logo vos digo. O meu Natal não é este, mas podia ser. É assim que o sei. Portanto, é sobre ele que escrevo. Também existe o outro? Ok, mas não o conheço nem quero ser-lhe apresentada. Rejeito-o solenemente.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Feminino Incontornável

Deitado aos ombros, o manto extenso de natais funciona como barreira protectora, é agasalho contra o bolor das invernias e terríveis frialdades. Natal é a bossa de H2O,  refúgio peculiar assumido, que os homens transportam no eu e existe sem contrapeso ou excesso de carga.
Em tirada de igualdade de género, que a moda tem destas coisas, pode até supôr-se que o Natal é de todos. Falso. O Natal português é sobretudo das mulheres. Feminino, portanto. Os homens – a maioria -  têm o efeito de pastores em presépio: curiosos, vão a caminho. E se não fossem?! Ora, paciência, a sagrada família estaria igualmente no estábulo, ensimesmada em si mesma, como compete  onde há nascimento de gente, quanto mais de um Deus. Ah! Mas então e as crianças...pois sim, pois sim...as crianças são o musgo do presépio. Sem elas, tudo perde cor, incluindo a trindade do estábulo a rescender santidade. É assim: presépio sem musgo é lugar desengraçado e meio triste. Enquanto que, sem pastores... enfim, por respeito à diversidade opinativa, deixamos a sua necessidade à consideração individual. Senão vejamos:
Para as mulheres, Natal é trabalho primordial, festa que, meses antes, se antecipa em afazeres e rituais que confluem na execução de presentes. Há as que se desunham na cozinha, ao fogão. Esmeram-se a encher afogueados boiões de compota apurada em pontos diversos. É ver morangos, framboesas, pêssegos, maçãs, cascas de laranja e limão, nadando por detrás do vidro, calda frutada que cai devagar, em grossas e peganhentas lágrimas. Outras, mais destras com agulhas, lançam-se a tecer um infindo de novelos de onde emergem em riste, peças quentes e amores de inverno prontos para a luta contra frios de realmente. As terceiras, rodeiam-se de pratos e travessas e as mãos afadigam-se a enchê-los de arroz doce, brinhóis, coscorões, azevias... que depois entregam aos amigos como se sejam nada, na leveza satisfeita que desconta tempo gasto e mais etecetras. Há ainda as que traçam no pano as suas maravilhas de horas em passo certo de agulha, cenários coloridos a mão própria. E as que pintam em tecido e no papel, que fazem quadros e enchem telas, que arredam canecas e chávenas e nasce-lhes um estúdio na cozinha. E depois há pássaros e flores a escapar-lhes das mãos, caminhos e veredas que sobem até ao encanto de casinhas com telhado vermelho e fumo na chaminé. E assim se gastam as mulheres, em recato e pacatez, a criar intervalos no seu imenso tudo, elas a afirmarem, naturais, não vejo televisão, não tenho tempo.
Entretanto, o que fazem os homens?! Pois, não sei, acho que têm um tempo importante cheio de tarefas e trabalhos urgentes – mas um de cada vez -, e não pensam ainda em natais. Natal antes do tempo, é coisa de mulheres desocupadas, devaneio. Por isso, deixam-nas andar entretidas, contentes porque não lhes mudam os canais da sport-tv nos intervalos do futebol com  a desculpa maníaca, “deixa só ver o que está a dar”. E, no íntimo, pensam que bem podia haver um natal só delas e de ano inteiro. Aí sim, seria o descanso.
Temos ainda de considerar as mulheres sem dinheiro, as fanáticas por compras. Essas temerárias vencem quilómetros de loja: palmilham ao centímetro bancadas de camisolas e meias; palpam cachecóis e boxers; passam a pente fino as miudezas das poucas lojas onde lhes cabe a carteira; espiolham o canto mais escuso, onde quiçá existe sei lá quê ao preço da chuva; perdem-se a despir e vestir peças que destinam a outrém, a moldá-las de cabeça a um corpo diverso, solilóquios de vestiário que deixam sorrisos em quem passa, aqui é mais estreita, tem o pescoço mais alto, é mais baixa, é mais alta...

E tudo isto, veja-se, é um nico da vida feminina, uma unha do dedo mínimo, nos dois ou três meses antes de haver Natal.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Menino Jesus fora do Presépio

Anualmente, escrevo um post que no meu íntimo, bem o sei,  é a minha árvore de Natal. À medida que enfeito e preparo o Natal de verdade para muita gente, dou-me conta que, cada vez mais, vou recuando no tempo. Chegou-me a velhice. Não que me demore em avaliações, a sopesar bens de outros tempos. Apenas aquele tempo se me impõe. Nostálgico, sim. E não foi um bom tempo. Mas, dele, todos recolhemos coisas boas que nos alisam o carácter e dão algumas ferramentas de viver. Hoje, precisamente há uns minutos, pensando nos presentes que preparo e no crédito de horas que me falta (e não me parece que baste que a minha vida não é só prendas, também tem outras coisas mais aborrecidas), ocorreu-me a imagem de minha mãe como ela mesma ma descreveu e permanece até que a memória deslace: teria eu uns esgalgueirados treze anos, corria a segunda metade dos anos sessenta, em dia tão frio e triste como este, deslocou-se à vila - de certeza por necessidade premente que a carreira era paga e meu pai um sovina -  e visitou o cemitério, então cena isolada a uma ponta da urbe.  No regresso fazia caminho contra o vento, o frio a querer despir-lhe o casaquinho leve. Seguia cabisbaixa e enregelada, em labuta com o vendaval, a remoer a tristura de não poder comprar-nos as sombrinhas de chocolate que nos encantavam. Porém,  antes das bombas da gasolina que inda existem, veio-lhe de encontro aos pés uma nota de quinhentos escudos. Ela parou, olhos arregalados, o coração num baque. Nesse ano, minha mãe não tinha que dar-nos, meu pai, um ali babá que não abria mão da gruta, surdo de todo ao seu pedido de menino jesus para nós. A minha incrédula mãe  e  a nota. Uma nota empurrada pela ventania e parada no bico do sapato, a contorná-lo, as pontas agitando-se como asas. Não se baixou a apanhá-la, antes olhou receosa para todos os lados. Mas, no meio do frio, ninguém. O largo das bombas, deserto. Uma oficina próxima laborando, barulho de maçaricos, o cheiro do metal em fusão, faúlhas azuis a chispar em estrela, fatos-macaco debruçados, atentos. Minha mãe indecisa, não é meu. A pensar, Deus queira que não seja dinheiro de pobre, que seja de um rico que encheu o depósito de gasolina e ao pagar deixou cair esta nota que veio vindo com o vento e ele nem dá pela falta; a convencer-se, foi ajuda do céu, as minhas filhas podem ter Natal. Baixou-se e, numa alegria decidida, apanhou a nota e colocou-a dentro do saco de quadradinhos verdes e pretos que era saco de ir à vila. Minha mãe sem dinheiro e que nunca teve carteira a estugar o passo, ainda tenho de ir às lojas antes da hora da carreira. A destinar: cem para aqui, cem para ali, no gozo celeste e maternal de nos comprazer.  
Não houve Natal assim. A cada uma couberam três ou quatro embrulhos além das sombrinhas que desta vez vinham com gatinhos também de chocolate, os mesmos que invejávamos de nariz colado à montra da pastelaria. Manhã de alegria retumbante e ruidosa, gargalhadas, exclamações de surpresa em surpresa. Mas o que pensei mesmo à bocadinho não foi isto que até já contei noutros lados, quem sabe até melhor. Foi assim: com aquele dinheiro, minha mãe não comprou um alfinete para ela. Nada. Gastou tudo connosco. Contudo, nunca teve uma prenda de Natal. De ninguém. Mas plantou em nós a ilusão e alimentava-a contínua, sempre tivemos   alguma prendinha no sapato.
Eu sei, a vida não é justa. Mas, tanta vez, é injusta demais.

Pronto. Eis a  árvore. Tem luzes, brilhos, estrela e tudo.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Pensamento Musical

A música não é apenas um arrebatamento de alma. Ela tem  efeito de chuva: lava e recupera fulgores de brilho originário, mata os mil seres nocivos e minúsculos que zanzam em volta de cada um e comicham o âmago. É nutriente essencial,  água que cai na terra a ensopar.
Somos barro que se reavê na música. Encarnado o verão áspero e seco, chegamo-nos a ela rotos e de fendas escancaradas. E a música invade docemente, toma-nos sem pedir licença, insinua-se como amada coleante. É bálsamo que apazigua os males de viver e  unifica os homens, a devolver-lhes plasticidade. A harmonia musical tem a suprema virtude de entranhar sem peso, dilatando o espaço. Quem sabe, somos apenas a amplitude onde paira.
Gosto dos concertos de domingo na Gulbenkian. Parecem-me mais caseiros, as crianças acompanham pais e avós e há um burburinho de vida no início e no fim. Os perfumes fortes estão mais atenuados (não sei que dá às velhas senhoras para usarem odores tão terríveis), as poupas de laca são menos poupas, as peles e jóias existem em comedimento recolhido, os “olhem quem ele é”, ausentes ou em pacatez de laços famíliares. Somos anónimos uns dos outros e só a música sobressalta, é esdrúxula.  Que, de ouvido, sou criança: não entendo nada e só gosto. Ora estes concertos para famílias são breves – cerca de sessenta minutos sem intervalo – e, no início, alguém explica às crianças (e a mim) o que vai acontecer – conta a história do que se vai ouvir -, identifica alguns instrumentos e ensina pelo menos uma particularidade da música clássica. É claro que escuto em esponja e as explicações me deleitam, é um admirável mundo estranho. Bom. Cabe-me divulgar outro factor agradável, são concertos mais baratos. Desta vez, a orquestra tocou três peças distintas, a primeira, de Mozart, sonoridades com ar travesso e saltitante a fazer lembrar o garoto irrequieto do filme Amadeus; A segunda, de Stravinsky, pareceu-me ainda com poucos traços russos, mas posso estar enganada que sou leiga; e a terceira de Mendelssohn, inspirada numa viagem a Itália cuja beleza o impressionado compositor musicou e é um esplendor soalheiro. E não sei qual prefira, em todas me senti ungida de divindade. Tinha um resumo de cada que já perdi e estou incerta quanto ao solo de violoncelo com o violoncelista de Matosinhos (Talvez em Stravinsky).  Amei. Se for para um céu, qualquer que ele seja, prescindo das harpas e da plangência dos violinos que sempre me parecem muito cheios de nuvem e sonho, duas belezas frágeis por contacto com a invariância tosca da matéria. Antes prefiro a afirmação melancólica e arrebatada dos violoncelos que mais me parece perdurar e a evocação campestre das flautas pastoris.

Que o meu céu é espaço aberto, respira-se. E ox-Alá.

domingo, 4 de dezembro de 2016

No Tempo da Escola

Pouco me durou a quietude amuada. Morta de curiosidade, pendurei-me no janelico sob o toldo e, na divisão escura vi minha mãe de costas e, de frente para mim,  uma mulher gorda, carrapito mal feito, a limpar o balcão corrido com um trapo. A mulher mexia os lábios sem expressão e o ruído do vento abafava a conversa. Quando minha mãe se voltou regressei aos sacos numa pressa, os olhos da mulher fixos na janela sem um sobressalto, peixes mortos num aquário. Minha mãe pegou nos sacos e levantou-me a rede, entra, vamos ficar aqui um bocado, as visitas são só à tarde e estamos perto. Satisfeita, transpus o umbral e chegou-me o cheiro tão conhecido de taberna de pobre. Não de café com cheiro a galões e garotos, onde senhoras perfumadas e com laca levam os meninos a comer um bolo de arroz ou uma sandes de fiambre fresquinho em pão tão branco de fazer inveja à gente que entra a pedir um copo de água para um filho. Gente tanta vez mal recebida por quem serve como ela e cumpre ordem restrita, é enxotá-las, isto é café de gente fina, temos o doutor  e senhora,  a D. Claudette, os coronéis na reforma. E em violento repúdio, essas pobretanas não deixam tusto e só me afastam a clientela, se as vejo por aqui, você é que paga.  E a obediência dos casacos brancos, lacinho preto na camisa, a emproar em sisudez peremptória, se quiser uma água senta-se à mesa e paga. E elas desandam humildes, a agradecer como quem se desculpa por entrar onde não deve, obrigada.  As crianças vão atrás, sedentas e a fazer beicinho, em fome arreganhada e olhos em alvo para os galões de bom cheiro e as sandes de fiambre fresco. Aspirando o ar quente e confortável do café onde nunca se sentarão. Ao invés, na taberna impunha-se um cediço compacto, feito de dias atrás de dias,  mistura de expirações avinhadas com o fedor entranhado a suor e sujidade, consubstanciados nos dois bancos corridos de madeira, encostados nas laterais do balcão. Atrás do balcão de parede a parede e rematado num dos lados  por levadiça de madeira, nos dois alguidares de lavar os copos, um líquido escuro e indistinguível do próprio vinho, decretava uso e abuso sem renovação. Ou, para os mais ligados a milagres, eram testemunhos da mudança da água em vinho. Acima deles, a prateleira de garrafas escalavradas em pose de dentadura com falhas e sem higiene. Coisa não apreciável. A um canto, uma abertura tapada com uma saca aberta de meio a meio, decerto a ligar a taberna à zona de habitação. Mas o interior da taberna estava quente e sem vento. E  após adaptação de olhos e pituitária, minha mãe limpou um bocado do banco com o papel pardo que resguardava a comida dentro dos sacos e sentámo-nos. Sem freguesia, a taberneira içou a ponte e veio sentar-se silente na outra ponta do banco, a amassar no colo o trapo tão da cor do vinho que quase se podia torcer, e minha mãe entendeu-lhe a mensagem. Puxou das nossas sandes de pão com ovo mexido, retirou quase metade a cada uma e estendeu o braço. Ela largou o trapo no regaço, assim como assim era mais nódoa menos nódoa, avançou uma mão em garra e mastigou com tanta avidez como eu nunca tinha visto. É que nem o Luís quando era apanhado pela mãe a comer-lhe nabos e cenouras, conseguia ser tão veloz. Pensei que tal voracidade ia acabar às dentadas ao nosso pão já tão curto e desatei também a mastigar. Não se ouviu palavra durante o acto. Eu comia e olhava disfarçadamente o  vulto das duas mulheres e o seu ser diverso, as mãos, a forma como pegavam no pão e mastigavam, o perfil de cada uma e o que sugeria. Depois de comermos, e enquanto minha mãe puxava da eterna garrafinha, a taberneira foi ao balcão, tirou um copo, abriu o pipo, encheu-o e bebeu de seguida. Fez um sinal a minha mãe com o copo vazio, mas ela negou. Então deu-nos as costas, puxou a saca e desapareceu no que me pareceu uma desarrumação geral. Voltou com três maçãs riscadas. Tão bonitas e apetitosas que me pareciam impossíveis naquela miséria de mãos enegrecidas e bandalhice. Foi então que falou, estendendo o braço para mim, escolhes tu primeiro, são da minha macieira. E perante o meu ar indeciso, não tenhas nojo, lavei-as com água do poço. Estavam guardadas para uma visita, mas ninguém me chegou e hoje é dia de Natal. E pusemo-nos as três a roer as maçãs até ao caroço.  Depois, e para fazer tempo na taberna solitária, entretive-me com o chinquilho encostado atrás da porta, enquanto as duas conversavam baixinho.

Quando se fez tempo, despedimo-nos até uma próxima e a última coisa que vi da mulher foi a pressa com que retornava ao balcão, descia a ponte de madeira e enchia mais um copo. Quando larguei a rede de pesca e lhe fiz um último adeus com a mão nem respondeu. Pensei que as taberneiras eram esquisitas. Mas ia rever meu pai, estava já perto do sonoro mar, ia conhecer uma prisão... e minha mãe remoçava apesar do frio. Mirei-a de novo, cabeça ligeiramente inclinada para trás, tinha o copo à boca e um fio roxo alongava-se pescoço abaixo. Aquela visão  lembrou-me a condenação das galinhas presas pelas asas debaixo dos pés de minha avó,   penas do pescoço arregaçadas, campo aberto à lâmina. E antes que uma hipotética faca viesse cortar-lhe a goela, virei costas à mulher e corri atrás de minha mãe. Caminhei a seu lado com todos os sentidos despertos, a imaginar um grito descomunal que nos apanhava mais ou menos a meio da rua, nós a estacarmos de susto e só eu conhecendo a causa, sabendo da faca a cortar pele e veias, e do sangue em esguicho sem uma tigela com vinagre a apará-lo.
 . Mas nada aconteceu. Depois de meia rua aquietou-se-me o coração e os meus passos normalizaram. Então, escondi o pesadelo da taberneira, fechei-o dentro de mim e retomei o acervo de perguntas e comentários enquanto, em fundo, o mar surdia. Minha mãe, escuta, é o mar.   E apressámos o passo.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

No Tempo da Escola

Ficámos a olhar a camioneta até a perdermos na dobra de uma esquina. Com ela partia o resto do meu mundo conhecido.  Estávamos as duas junto ao sinal de paragem idêntico ao da nossa terra: o mesmo fundo preto e uma camioneta branca desenhada no interior. E tudo, excepto ele e a caixa do correio, nos era estranho. Peniche recebia-nos com um amontoado de castelos cinzentos, sacudida de vento. Quedei-me choramingando, o lenço de mão de minha mãe contra a boca a estancar o sangue que ainda corria do lábio, o casaquinho curto desatado e sem laços que me valessem contra a nortada. Ela, em corpo, rodeada de sacos, a saia do vestido num badanal indelicado e promíscuo que a aflição dos olhos ignorava. Agarrei-lhe na mão e murmurei a medo, e agora, mãe, vamos por onde? Mas ela curvou a preocupação para mim, deixa ver como tens o lábio, e retirou o lenço. Depois, puxou da garrafinha de água que usava para matar a sede  no trabalho, ensopou uma ponta do lenço, disse, está quietinha para doer menos, e lavou-me a ferida com cuidado. Em seguida, beijou-me a bochecha de leve, ajeitou-me a franja e garantiu, vai deixar de doer, já está a inchar. E eu que tinha vindo a mirar-me desde o Terreiro do Paço,  esqueci o pavão e o resto. Dispensei as roupas novas manchadas de sangue, o cabelo aos canudos e que ficara outra coisa, a gengiva a doer e o golpe que me eriçava o lábio superior.
Mal nos percatamos, a vida vira-nos os intentos: num ápice, esquecemos propósitos e decisões com que sonhámos dias a fio e de que antecipámos a figuração real. Foi assim que me esqueci de mim, a dor em fuga depois que minha mãe lhe certificou rumo. Esperei a decisão a aglomerar, corpo contraído, apertando-lhe a mão quanto podia. O desconhecido impunha-se-me com tal sonoridade que me ensurdecia qualquer intento.
Olhámos em volta e não havia vivalma. Nas ruas desertas, cães sem dono, rabo murcho entre as patas, deambulavam uns atrás dos outros em vagar e tristeza como acontece a todos os seres sem caminho definido. Éramos nós duas, os cães e o vento que encanava a assobiar, as copas das árvores numa espécie de viuvez lamentosa, ai que desgosto. Eu transida com o  sofrimento delas em choro convulso que dobrava ramos e folhas só para um lado. E a insolência vociferante do vento  a sacudi-las. Ouvi os troncos aos gritos de aguentem-se, tem de passar, vai passar como aconteceu de outras vezes. E as folhas a derrubar, algumas em estertor de velocidade destrutiva, o corpo a escalavrar,  embatendo de chapa nos refegos de parede, ombreira de porta, quina de janela; ou sugadas por um esgoto, um buraco a céu aberto, um rego de água que até podia ser do mar, mas as afogava na mesma. E enquanto eu assistia este filme, minha mãe em solilóquio, é dia de Natal, quem é que anda nas ruas com este gelo? Só quem precisa. Como a gente. E depois de uma hesitação, anda, lá à frente há um toldo, deve ser um café ou uma taberna. Se estiver aberto, perguntamos para que lado é a prisão.

Olhei a correnteza de casas e, já na segunda metade da rua, mais revolto que as camisas que ela sacudia antes de estender, o toldo torcia-se como criança sob vergasta. Observei-a com orgulho. Minha mãe era tímida, de parca e sábia conversa e tenacidade inquebrável. Num acordo sem palavras desatámos as mãos, ela pegou os sacos e segui-a a acertar o passo pelo seu, pesado do carrego. O vento empurrava-nos e, assim ajudadas, o abalo da friagem pouco nos tolheu. O meu lado infantil entrou resoluto ao barulho e desfazia-se em riso e diversão, eu quase levada ao colo pela ventania, cabelo  a cegar-me e fazer tropeço nos calcanhares de minha mãe que avisava, com essa palermice toda, ainda me descalças e cais. Nesse momento, pensei no Luís e em Lídia e como seria bom estarmos ali os três, conversarmos a viagem inteira e talvez virarmo-nos para o vento e andar de recuas a ensinar o caminho ao diabo. À medida que nos aproximávamos, enrijava o ruído do toldo a sacudir-se de vento. Avancei numa corrida e depois de uma espreitadela gritei a minha mãe, está aberto. E deixei-me ficar de cara ao vento, o cabelo a voar por junto para a nuca, roupas desfraldadas. Sem alterar a passada, ela veio chegando, ralada de rins e mãos. Pousou os sacos e pôs-me a guardá-los. Depois, levantou a pesada rede de pesca que resguardava a porta de insectos e coscuvilhice avulsa, e entrou. Contrariada nos meus intentos, amuei junto à bagagem.