terça-feira, 28 de novembro de 2017

A Terceira Irmã

        E as mulheres bichanaram escândalos sobre o abuso e a possível paternidade. Desandei estupefacta, imersa em tal murchidão que minha mãe, então filha, gravidez não é doença, era pior se fosse doença grave. Mas nada me consolava. Que o processo da gravidez não me atazanava, pouco entendia do mistério de uma vida a crescer na barriga e nem me interessava tal assunto. Moía-me, isso sim, que houvesse homem ou rapaz tão tortuoso capaz de abusar um ser como ela. No meu íntimo crescia o vómito, não acreditava que rapaz, avaliava que o animal era homem casado e malvado. Homem feito só de corpo; que no resto, monstro. A rapariga não era uma oferecida, apenas não tinha juízo, pensava como criança e todos o sabiam. E, a cada domingo, à medida que o tempo passava, a tristura do pai mais me arraigava a má vontade contra um desconhecido que, se dependesse de mim, seria sovado em hasta pública. A descansar-me, imaginava-o a ser castigado com chicote, preso a um poste no meio do adro – que nem tinha poste nenhum – rodeado a toda a volta pela gente da aldeia. Suponho que a raiva me acordou imagens dos poucos filmes que tinha visto.  Mas nada disto aconteceu e o pai continuou incógnito. Ao invés, à medida que as visitas do médico a casa do Vicente se faziam menos espaçadas, começou a correr que havia problemas com a gravidez. Depois, disse-se quase a medo que a futura mãe, que jamais alguém viu grávida, ia morrer quando desse à luz por sofrer de epilepsia. Sabedora de exageros e cuscuvilhice de aldeia, ignorei. Os nove meses passados e a minha amiga voltava aos lugares de sempre. E íamos gostar de vê-la com um bebé. Era assim que eu pensava.
Mas quando os nove meses passaram e o parto se consumou, ela morreu. Deus revelou-se-me de uma injustiça terrível. Hoje demoro-me a pensar quanta coragem foi necessária àquela gente para aceitar a antecipação da morte, viver sabendo que a filha lhes morria no final. Nove meses de dor e inferno. A assisti-la. Não fomos feitos para saber quando morremos. Em que dia. A nossa amiga era criança, gerava um ser que a consumia e lhe diminuía o tempo de vida à medida que se formava dentro dela. Facto que, por fortuna, desconhecia.
Ora um dia observei na mercearia umas perninhas vermelhas que corriam atrás da mulher do Vicente. A bebé que ficara. Uma garotinha de nada, magrinha, que da mãe tinha apenas o azeviche do cabelo. E as mulheres umas para as outras num alívio, é espertinha...
Estranhos são os caminhos que a vida toma.
            Entretanto, saí da aldeia. Quando voltei, Vicente mudara de emprego e de lugar. Nas cidades e vilas que também eu percorri, não encontrei qualquer membro ou referência à família. Perdi-lhes o rasto. Esqueci-os. Quando enfim assentei arraiais, soube que Vicente se reformara e vivia na mesma terra com mulher e neta, as filhas casadas algures. Que a garota era luz nos seus dias e desejava vê-la casada antes de fechar os olhos. Nunca sequer os vi. Soube que a neta casou e alegrei-me por ele que devia a essa altura ser bem velho. Não muito tempo depois, morreu.

Decorreu um ano. Talvez dois. E comecei a cruzar-me com uma jovem desconhecida. Trazia um cão à trela. E os dois a passear estrada acima e abaixo. Desde o primeiro olhar soube que era ela, a garotinha de pernas de perdiz que corria atrás da avó. Hoje, passam-me à porta. Ela e o cãozito. O casamento falhou. É ainda jovem e bonitinha, nada semelhante a sua mãe. Se a vejo passar ou encostar no muro tenho vontade de chamá-la e trazê-la para dentro. Contar-lhe coisas boas que sei. Mas nada faço. Apalermada, deixo-me ficar ao vidro num desperdício de ternura. Podia quase ser minha filha. Está só. Nunca lhe vi sorriso, que nem isso a mãe lhe passou. Caminha átona ao mundo, atenta ao animal e ao saco das compras. Talvez afinal tenha herdado alguma coisa mais por via materna, alguma coisa que não lhe dá benefício. A identidade do pai permanece em mistério. E hoje que conheço um pouco mais da vida e das famílias,  sei que há podres demasiado podres só de pensá-los.  

sábado, 25 de novembro de 2017

De Pequenino....

                 Muito se fala sobre a igualdade entre os sexos e o fim da discriminação feminina. De, como quase toda a gente aceita  - ainda há quem viva na idade da pedra e faça gala na prepotência -, homens e mulheres serem iguais em direitos e deveres, embora diferentes na sua anatomia e particularidades de género. Mas afirmar a aceitação não é igual a proceder em conformidade. Quer isto dizer que muito há a fazer. De vez em quando, soa um gongo nos jornais: as actrizes de Hollywood queixam-se de que os homens recebem um cachet muito superior ao seu. E nós pasmamos, então até nos USA o costume se mantém?! Ou, como há pouco tempo, vêm queixar-se de produtores sem escrúpulos que as assediaram e exigiram favores sexuais em troca de papeis e pedacinhos de fama. E nós todos a condená-los, a julgá-los uns imorais. Congratulo-me por mulheres conhecidas em todo o mundo terem tido a coragem de os apontar e revelar a peçonha que escondem. Mas pergunto-me por que esperaram tanto ano. Têm razão, pois claro. Mas a queixa e a condenação perde força quando soa assim ao retardador. À época, eram jovens desconhecidas e sem tarimba, não o conseguiam fazer: por vergonha, por necessidade, porque ninguém as ouviria, por medo de represálias. Mas precisavam esperar tanto ano?! Além disso, sou forçada a reconhecer: escândalos deste teor não mudam mentalidades. Escandalizam. São notícia. Maldiz-se o indivíduo em causa. Ostraciza-se. Fazem-se cair do pedestal alguns homens. Concretizam-se vinganças. O mundo digital explode, somos todos pela moral e igualdade de género se não dá trabalho e é só dizer ámem. E tudo passa.
Acontece que a desigualdade começa na forma como somos educados. E, desculpem-me todos os ministros de Portugal e mais todos os secretários e secretárias da educação, mas nenhum fez a coisa como deveria. Supõe-se que a teoria leva à prática. O que não é verdade. Como atrás referi, há um fosso aberto entre dizer e fazer. Portanto, meus senhores, estes preconceitos só têm uma forma para desaparecer, agir sobre eles. É o que fazem as sociedades nórdicas, muito mais avançadas que nós na igualdade de género. Aprende-se em família? Sim, também. Mas está institucionalizada nas escolas, faz parte da educação dos jovens.
Na Suécia, por exemplo, em vez das teorias da batata que pululam por aí e não levam a lado nenhum, todos os jovens entre os onze e os dezassete anos têm aulas de, digamos, economia doméstica, que contam para avaliação e incluem trabalho de casa e tudo (os tais TPC com que muita gente não concorda, mas eles fazem). Aprendem a organizar-se em casa. Por exemplo, têm aulas práticas de culinária e confeccionam refeições, aprendem o valor calórico dos alimentos e a sua gestão económica – o que é mais caro e mais barato e os componentes nutricionais. E depois almoçam ou lancham o que confeccionam.  Mas não se pense que ficam por aqui. Nestas aulas, aprendem a funcionar com os electrodomésticos: máquinas de loiça, de roupa, aspiradores e o mais. Aprendem ainda a lavar a loiça manualmente e quais os detergentes e formas de lavar cada peça, das mais às menos sujas. Aprendem rudimentos de carpintaria, a coser botões e fazer bainhas, a passar a ferro e tricotar. E isto, meus senhores, não é o antigo Curso de Formação Feminina, é uma disciplina com avaliação e comum a todos os alunos, escalonada por graus de dificuldade em cada ano. Portanto, à beira dos dezoito, não há jovem que não saiba como fazer as tarefas domésticas. E a nenhum passa pela cabeça, suponho eu, dizer como é tão vezeiro em Portugal, isso é trabalho de mulheres.

Vendo bem, não há razão para tal desigualdade na distribuição de tarefas. Se no mundo exterior as mulheres trabalham como os homens, ganham o sustento como eles - algumas até mais que eles -, qual o motivo de, dentro de portas, ser ela a trabalhar, ou, em situação mais benévola, ele a “dar uma ajuda” como se lhe fizesse um favor?! Todos somos humanos, temos um corpo com dois braços e duas pernas, uma mente pensante e mais o que falta. Também não consta que as diferenças anatómicas entre os dois sexos tornem alguém menos apto para este tipo de tarefas (diria mesmo que elas nem contam). Haverá quem, devido a características pessoais, seja menos hábil a realizar uma ou outra, mas não podemos atribuir  “a culpa” ao género a que pertence. Conclusão: parece-me que, se os jovens forem institucionalmente educados no exercício prático das tarefas caseiras, não há como fugir à igualdade de género, pelo menos no campo da economia doméstica onde tanta mulher portuguesa vai morrendo à hora. Mas será que essa igualdade interessa?!

Da Memória...

Sexta feira, vinte e quatro de Novembro do ano de dois mil e dezassete. Madruguei. Passava das cinco quando tudo que a seguir conto se me fez presente. Seria alguém  talvez ligado à memória vívida que me despertou. Anseio que seja um chamado, transmissão da força do pensamento, desejo puro de um tempo em que fomos “for ever young”. Que não um sinal de perigo, urgência a que não posso nem sei atender, apelo instante em situação limite. Porque claramente distingo o chamamento da simples lembrança. É outra intensidade e outra natureza. A segunda, é apenas memória afectiva e morna que sucede em consciência. O primeiro, acorda-me em clareza e precisão, numa supraconsciência inexplicável que se particulariza em qualidade e grau; supraconsciência que é portadora de natureza própria e para que não encontro palavras. Temo chamamentos. Se é verdade que os separo da lembrança, também é verdade que não sei destrinçar o desejo instante de presença, da necessidade que se expressa no apelo irredutível e último em urgência vital. Os chamamentos são gritos na noite. Gritos que só eu oiço, sem lhes conhecer proveniência. Mente que me chama com força inusitada e única e que, milagrosamente, chega até mim. Nem sei se de mortos, se de vivos. Que os mortos também nos chamam e falam e têm força.
Quem sabe não eram senão eles, os mortos,  a lembrar-me esse período difícil da vida em que fui bafejada pela sorte de um projecto comum tão salutar quanto contrariado pelo poder. O volume de trabalho e escolhos a ultrapassar. Primeiro, a escrita da peça de teatro (que já perdi); de seguida, a leitura para escolha de actores, todos a escolher todos; e logo, os ensaios. Sem sala, ensaiávamos nos átrios de corredores, no intervalo entre aulas diurnas e nocturnas, perturbados por aspiradores e vozes de empregadas. Ou em casa de um ou outro. No final, eu a carregá-los para os autocarros. Gente que se levantava às cinco e ainda assim entusiasmava com os extras; Do meu lado, nem verba, nem horas disponíveis. Era a nossa carolice sempre rechaçada. A pior turma em comportamento. Mas, no dia, enchemos a casa. O temor, tanta gente (era quarta à tarde, não havia aulas, o auditório à cunha, gente sentada pela coxia), e se não gostam, e se...E eles, mais de trinta, já metamorfoseados, o do acordeon a puxar-lhe as alças para o ombro, vai correr bem. Um lá em baixo, amarfanhado junto às casas de banho, mãos na barriga, não consigo, não consigo. Eu a levantá-lo do chão, consegue pois, entra e esquece-se de tudo, vai ver. E ele, tenho de ir vomitar, eu não devia ter vindo para isto, foi só por andar atrás daquela miúda loira que está a apresentar. E eu, deixe-se de paranóias, você é um actor, quando pisar o palco passa-lhe tudo. E ele a olhar-me em dúvida culposa, e se eu me fosse embora agora... Eu séria, olhos de ácido sulfúrico, deixe-se de parvoíces, vá lá vomitar que eu espero aqui e vamos os dois para cima, ouviu? E lá em cima o do pano de cena, tenho que ir a casa num instantinho, eu não me demoro; - e a dar-me palmadinhas no ombro - mas olhe que o bombeiro ainda não chegou, ligou-me e vem a caminho, teve que acompanhar um doente a setúbal. Eu aflita, e agora? Ele, agora começamos que entretanto chega, diz que já ligaram a sirene e vêm a toda a mecha, como não tem que se vestir...Eu, ai valha-me Deus, temos a casa cheia e falta-me uma pessoa. E daí a pouco o funcionário do auditório, temos de começar que eu não saio daqui depois da hora; ok, ok, onde é que está o nosso homem do pano de cena? Alguém a medo, ainda não voltou. Mas não voltou como? Então, foi a casa e ainda não veio. Com franqueza, mas o que é que aquele rapaz tem em casa de tão urgente? Ora,  então não sabe, é a namorada. Eu a desmoralizar, esta gente é toda maluca. Merecia era umas porradas, aquele irresponsável. E as garotas vampirescas, capa e lábios pretos, a estenderem um lençol de compreensão, é só mais um bocadinho, eles vêm todos. Na régie, o funcionário de braço no ar, um dedo todo nervos a apontar-me o relógio. E eu que não ouvia o barulho, a imaginar a unha a bater no vidro, tic, tic, tic. E entretanto o bombeiro-actor, acabadinho de chegar, agarra o namoradeiro logo na entrada, és maluco ó quê, pá. Desato a rir e empurro-o para a régie, se se engana nas aberturas do pano dou-lhe uma surra. E começamos.
Gostam. Temos de parar várias vezes porque riem e batem palmas a meio. E no bocadinho de jogo do benfica em que gravámos um golo, a plateia levanta-se em peso como se no estádio, a gritar gooolooo!!! E o goooolooo!!! do nosso actor fica elidido. Mas também nós gostamos.
À noite, na sessão para encarregados de educação, os filhos bisaram e a sala à cunha. Lembro-me da voz da Gisela numa canção da Ala dos Namorados e de toda a gente a bater palmas; de as danças serem um primor; do meu actor das dores de barriga se ter transformado em palco; e a Rita tão miúda e pacata, tímida, a crescer desmesurada declamando o Cântico Negro num lampejo de eternidade que electrizou a plateia e arrepiou gente. E de estarmos tão contentes e nos abraçarmos uns aos outros no fim de cada número. E lembro-me dela a declamar no ensaio geral e de um garoto que por ali andava ter mofado da ênfase. E logo o Carlos que tinha fama de ser (e era) arruaceiro, o levou para um canto a avisar, eu até nem gosto de poesia, mas aquilo é qualidade, ouviste. vê lá se respeitas o trabalho da miúda, porque se te ris outra vez levas um ensaio de murros. Chaparro!, chasquinou; e deu-lhe as costas displicente, andar desengonçado, o boné com a pala para trás, satisfeito consigo e sem ideia de que eu o ouvira. Apeteceu-me abraçá-lo. 
E depois as pessoas a saírem agradadas, imbuídas no espírito dos Alphaville, “Forever young”. Música tão bonita, alegre e jovem. Que eu desconhecia. Escolha do colega e ex aluno, também professor da turma, que nos ajudou  nos finalmente. Ensaiámos algumas vezes em sua casa, sugeriu a música e propôs fim mais realista e menos happy end. Há pessoas extraordinárias e extraordinariamente humanas. Insubstituíveis.
Fomos um grupo. Na memória, ainda somos. E seremos. E os Alphaville cantam-nos  a nós eternamente. 

domingo, 19 de novembro de 2017

Olívia

Estamos a um mês do Natal e vou, como sempre, comprar-te uma prendinha que tu agradeces com um telefonema que só fazes por essa mesma razão. Sem prenda, não te lembras de me ligar. Há gente escrava de causalidades necessárias. És como és, sou como sou.
Quando os achaques me percorrem o corpo e parece que tudo em mim sossobra, penso em ti. Também por seres mais velha. Como te darás com a velhice, que órgãos te ameaçam de dentes arreganhados, dores como cães de má fila. Quem te socorre. Talvez a prima te mime na doença. E chego mesmo a julgar-te mais acompanhada que eu, o que nem é difícil. Nas famílias há uma inadvertida distribuição de papéis e no meu a doença pouco conta. Na verdade nem tenho ideia do que conte. Será talvez a certeza da disponibilidade, coube-me aplanar o caminho de todos. Cada vez mais sou uma árvore. E olha, nem sei onde encontrar forças para mais um Natal. Não faças caso, é apenas a doença a falar. Quem sabe em Dezembro estou boa e tudo se faz e passa como sempre. Que não é bem.
Como sabes, a morte não é estado que tema por aí além (aquele momento da passagem, sim, deve ser difícil). Como Sócrates, julgo que seja um apagar definitivo. Um nítido nulo sem ponto de nitidez. Que me agrada, viver cansou-me demais. O eterno nada parece-me seguro. E não julgues por isso que o desejo. Não. Estou disponível para ele quando queira vir. É só.
Não tenho forças para mais mudanças na minha vida. Não que ela me seja fácil ou agradável, mas é a que me pertence. Já vivi a desejar um emprego, alguma coisa que me tirasse do buraco, me desse uma hipótese de pensar em mim de outra forma; a desejar uma casa em qualquer lugar do mundo. Mas hoje tudo que pretendo é continuar a sobreviver sem depender de ninguém. Não pesar. Se possível, ser leve até na morte.
Sei, não estou natalícia. Mas hei-de. E oxalá te sintas bem, que o bem estar dos que amamos ajuda a compor o mundo.

Um beijinho doce

sábado, 18 de novembro de 2017

Oh, a Insustentável Leveza

Tanta coisa de esguelha neste meu mundo pequeno. Tanta coisa onde a  humanidade se apouca. Não a humanidade deles. A nossa. Tanta coisa a deixar um lastro de baba gomosa, rasto de ranho escorregadio e excrementício que não era suposto, mas nos existe. Que se vê na mesa onde todos os conferencistas usam óculos de massa preta, ademane por certo muito in; ou no afã da palavra escrita, das actas que depois darão um livro, um volume de papel (mais um) sobre o futurismo. Ou, no como de se medir e saber o sucesso de um congresso quase sem assistência, eivado de comunicações que, na maioria dos casos, foram leitura apressada  feita em quinze minutos, sendo que, mais de um terço eram em língua estrangeira e sem tradução. Mas chega-se ao fim e a avaliação é de grande sucesso. E sem um senão. E não podia faltar a referência contínua à colaboração da nossa sumidade, Eduardo Lourenço. E a tristeza que é ver e ouvir a voz quase inaudível de um homem a deixar de ser ele, que se desculpa por não ter colaborado, por, ipsis verbis, “corpo e mente já não lhe obedecerem”; que se engana em alguns pontos - estará a perder a audição? - e ainda assim tem razão. Que eu vira-o na véspera, sentado na primeira fila. E o quadro diferia. Estava só. E só ficou quando, sem abraços ou palmadinhas, todos se deslocaram para o bar. Depois observei-o a subir os degraus da saída. Penosamente. Sem ninguém. A vontade que tive de ir ajudá-lo. Eu que me encolhia por ali, mais estrangeira que os conferencistas italianos que circulavam em bando. Julguei que talvez não apreciasse. Há pessoas que prezam muito a sua autonomia e se esforçam por mantê-la. Para mim, naquele momento, era apenas um velhinho a precisar ajuda. Talvez tenha feito mal em tolher o ímpeto. Não há dúvida, a utilidade comanda a vida. Se és uma inteligência brilhante e internacionalmente reconhecida, a tua presença é desejada, disputada, requerida. Mas quando o mundo percebe que passaste, que o embaraças e já não dás mais, fica-te o nome que ele usa e abusa; porque tu, pessoa x ou y, talvez nunca tenhas importado. É nesta baba que crescemos e somos. É nela que nos movemos e vamos escorregando.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Dever e Haver

Há demasiadas coisas neste mundo que não entendo. É certo que a maior parte se deve a ignorância, mas há outras que me perplexam, não sei como as deixam acontecer.  Em rigor, não são coisas que aconteçam. O que acontece atinge-nos sem apelo, não está nas nossas mãos evitá-lo. Ora, o facto repetido com que me venho deparando é evitável. 
O ponto é que reparo cada dia mais que, colóquios, conferências, congressos, não têm público. Os congressistas e oradores são público uns dos outros. À vez, são oradores, público e perguntadores de serviço. Parece-me um trabalho viciado. A maioria lê a sua comunicação sem levantar os olhos do papel. Meus deuses, se um professor normal desse aulas assim, os alunos fugiam-lhe da sala. Será por isso que não têm público senão eles mesmos?! Já estive mais reticente quanto a esta hipótese.
Bom. O acaso fez-me assistir a um congresso todo entretecido de gente estrangeira. Pois meus amigos, vieram aquelas alminhas de tão longe, um discurso preparadíssimo. Para quase ninguém senão eles. E segundo ouvi enaltecer pela mesa, vai constar em acta (as actas devem ter passado a dar estatuto e por certo propiciam subidas de grau). Mas o que querem, sou antiga, acho triste tanta cadeira vazia, parece-me um desalento falar apenas para os pares. Lembra-me um certo cão que tive que mordia o rabo e gania para que eu o fosse salvar. Ao cão eu libertava da autotortura, a esta gente, confesso, não tenho maneira. Mas é verdade que eles não se queixam.
E no entanto continuo a julgar puro desperdício que muita gente não aproveite aqueles sábios ali tão à mão e o benefício de óptima logística (estive malzinha mas isento a cadeira). E tudo grátis. Até os lanches com bolinhos e café mais sumo e chá, (logo agora que não me apetece nem o cheiro de comida). Pergunto, o que é feito dos reformados santo Deus. Não foi há muito que estive num auditório cheio deles e todos muito interessados. Ali mesmo, na Gulbenkian. Mudaram-se para os concertos de música clássica, está visto.
Portanto, concluo que ter público é, hoje, supérfluo. Que vida estiolada têm os sábios. E no entanto, alguns são, em demasia, iguais à outra gente. Senão, reparem nesta flor. Um dos temas abordados foi a biblioteca de Pessoa. Influência de leituras, se sublinhava, anotava, onde, em que obras, o quê. Constatação de um personagem que na altura fazia de público, reparou que ele tinha o Kamasutra... - e em ar suspeitoso e meio malandro para a jovem oradora - ou não viu?! Perante o assentimento, viu o sublinhado, aquele sublinhado era diferente, muito mais suave... E tal e tal. E a oradora que nem tinha feito referência ao livro, pois, mas não tinha anotações, era um sublinhado curto num livro inteiro... E ele jubiloso, triunfante mesmo, pois eu dei três voltas ao livro a ver se descobria uma nota ou mais alguma coisa – e num aparte -. Que nem era um Kamasutra de jeito.

Meus senhores, eis um artista português.

domingo, 12 de novembro de 2017

A Terceira Irmã

Nesse tempo, morávamos isolados. Para chegarmos a casa havia  que atravessar um pequeno pinhal onde, apesar da estrada de terra que o ladeava, talháramos vereda serpentina e para nós mais agradável. Foi na peugada de minha mãe, por entre curva e contra curva, a perscrutar as copas altas dos pinheiros bravos, que assimilei a informação. Aprendi que a falta de juízo modifica o aspecto das pessoas. Compreendi a constância do sorriso, os pais e as irmãs a guardá-la de estranhos, a possível revolta materna contra Deus. E gostei dela assim inocente e crescida. Por outro lado, enquanto os meus irmãos corriam livres pinhal fora, no intuito de montarem cavalos imaginários em troncos flexíveis que eles mesmos tombavam em uníssono de forças, ela estaria em sua casa, saía pouco e sempre vigiada. Mas, como dizia minha mãe, por dentro era criança. E as crianças gostam de rir e brincar, de correr sem destino. Tinha um corpo desaustinado e descompadecido da mente, que enchia costuras afirmativas, facto que não nos incomodava. Depois da missa, a sua figura alta e enformada destacava rodeada de crianças. Em seguida, as irmãs tomavam-na pelo braço e conduziam-na ao automóvel onde um pai paciente e risonho as esperava ao volante. Ela entrava para um dos lugares traseiros e virava-se para nós a sorrir e acenar ao vidro até o carro desaparecer. As mulheres desandavam para casa comentando, coitadinha da rapariga, mas que desgraça que ali está; ela até é boazinha, mas coitadinha falta-lhe o tino. E rematavam a estugar o passo, Deus nos livre de uma desgraça assim, o que vai ser daquilo quando os pais morrerem. E eu tinha certeza que nos domingos ela era feliz e talvez também nos outros dias em que a não víamos; parecia-me que as mulheres agouravam demais. Falar na morte dos pais era chamar um facto longínquo, ainda havia muito tempo de bem viver.
Um certo domingo, as manas sozinhas. E nós num susto.  Era sobejamente conhecido o seu gosto pelos dias em que toda se enfeitava e saía de casa. E quando perguntámos, que estava doente e não era conveniente sair. E foi assim domingo atrás de domingo. Até que num dia mais impaciente as manas nos responderam lacónicas, ela não vem mais, parem de perguntar.
 Correu que sofria do coração e não se podia mexer, que estava tuberculosa e tinha contágio, que os pais eram afinal muito maus para ela e a tinham proibido por qualquer sua desfaçatez infantil. E logo houve quem tivesse passado de largo e ouvisse gritos; quem tivesse visto o médico a sair de casa e mais do que uma vez; quem soubesse de pés juntos que fora sova e enquanto durassem as negras não via a luz do dia. Na dúvida, as mulheres juntaram-se  e resolveram fazer queixa ao padre. O Cura recebeu-as na sacristia onde um Cristo todo de roxo vestido jazia ano inteiro num caixão de vidro, as mulheres a rodeá-lo com respeito bichanando, parece mesmo um morto de verdade, olha lá o sangue que corre da coroa de espinhos, quem é que diz que aquilo é tinta. E depois, fixas na alvura das mãos do padre emergindo do luto da batina e enlaçadas sobre a secretária. Ou de olhos a saltar para a pilha de papéis no canto esquerdo, matrimónios e baptizados em confraternização de acaso, e outros que não sabiam ler. As mãos em espera. Quietas. E a mais foita, senhor padre a gente vem por causa daquela rapariga que é poucochinha, a filha do senhor Vicente que ajuda na igreja, é que a mocinha tem alguma coisa séria que nunca mais veio à missa. E o padre, fica-vos bem o interesse, mas têm de perguntar ao pai. Só ele pode responder. E num frou-frou de saia comprida deixou-as na sacristia com o Cristo morto. Saíram temerosas do defunto de louça, a benzerem-se às recuas que não é bom virar costas a um Deus morto, mesmo de faz de conta.
No domingo seguinte, puxaram o pai Vicente de parte, serviram como entrada o goro na sacristia e perguntaram. Ele, chapéu de feltro na mão, para cá, para lá, triste de dar dó, respondeu: está grávida. Não sabemos quem é o pai e nem ela sabe dizer. E rematou de lágrima no olho, já vai para seis meses.

(continua)

A Terceira Irmã

O imaginário dos escritores é um mundo que hoje tem gosto pelo lado escuro do homem e se ergue muito cheio de não prestas e do que de mau temos dentro. Será por comungarem do sentimento dos actores e ser sensaborão criar personagens normais, razoávelmente bons e que, parece, desentusiasmam a leitura. Que também os leitores preferem ser triturados por mázura e canalhice. Contudo, a vida tem enredos que podem ser tomados por ficção. Hoje, no poiso solitário da minha janela, vi um. Já o encontrei de outras vezes. Variadas vezes. Para ser exacta, ao longo de anos. A rapariga de que vou falar, é ela o meu enredo, encostou nas grades de minha casa e, quase ao alcance da mão, ocupava-se a desenlear o cãozito que a acompanha. Não me fez caso, não sabe tanta coisa que me vem quase do berço, do tempo em que ela não existia. E juro que, se numa intuição sem préstimo lhe adivinhei a proveniência, jamais os meus verdes anos lhe sonhariam a existência. Julgo mesmo que ninguém sonhou o seu existir. Vou contar a história do princípio.
Aos doze anos eu era uma menina de boa índole que frequentava igrejas e catequeses, fazia novenas e tinha um terrível medo de ser santa. Por esse tempo, lembro-me de admirar na igreja um forasteiro que se mudara de armas e bagagens para a aldeia, com mulher e três filhas casadoiras. A minha admiração tinha raiz dupla. A primeira, devia-se ao anómalo facto de o homem não falhar uma missa e participar activamente, cantava com entusiasmo, oferecia-se para as leituras e não desanimava por ser o único varão na igreja. A segunda, era apenas intrigante. Se comparecia com pontualidade dominical na companhia de duas filhas, a mulher e a terceira filha continuavam incógnitas. Na mercearia, o mulherio falava à boca pequena do mistério na família do senhor Vicente, e por que é que a mulher não ia também à missa, e por que motivo as filhas não iam as três, e por onde andaria a incógnita terceira filha. E patati, e patatá. Mas ninguém sabia.
Quando o verão se apresentou em seus ardores e os braços arregaçaram a suar limpezas, o senhor Vicente, não querendo ficar atrás na febre da brancura pincelada, contratou duas mulheres para a caiação do monte. E o segredo desfez. Foi como o esvaziar de um balão a meio gás, um som manso, quase despercebido. O povo tem destas coisas, corrói na curiosidade que depois maldiz. Mas, se a mulher nunca pisou na igreja (dizia-se na mercearia que era contra os padres e quiçá seria mesmo comunista), o mesmo não sucedeu com a terceira filha, por sinal a mais velha; depois da caiança, a rapariga passou a frequentar o nosso lugar de culto. No primeiro domingo em que, ladeada pelas irmãs, marcou presença, concentrou as atenções. As mulheres esqueciam-se de responder ao padre, e, durante o sermão, voltaram-se repetidamente para trás e provocaram um ralhete do cura. Intrigou-me mais a presença da terceira filha que a sua ausência e também me virei para trás em ocasiões pouco próprias. Em geral, os mais novos foram tão incómodos que as duas irmãs se agastavam e faziam sinais para voltarem a olhar o altar. Quanto a mim, fiquei positivamente siderada pela expressão da moça. As duas irmãs que conhecia eram risonhas e superiores, troçavam de nós e dos nossos hábitos aldeões sem qualquer pejo. Além disso, eram amazonas de respeito, víamo-las passar ao longe, cavalgando muito direitas na Azinhaga do Valado até sumirem por entre o arvoredo. O pastor com que por vezes cruzavam, comentava posto em admiração, aquilo é que são umas mulheres, andam melhor a cavalo que eu a pé. Eram meninas finas. Não misturavam com a plebe, tinham lugar marcado na igreja e as únicas a usar mantilha. Nós de cabeça cingida por triângulos de tule sem graça; elas, virgens sem pedestal, a ajeitar a brancura florida das mantilhas. Mercê destas casualidades, a aldeia uniu-se em comum sentimento de inveja mal disfarçada e lembro-me de estar ao espelho a imaginar-me com mantilha, adereço tão bonito que julgava pecado confiná-lo à igreja.

Porém, a terceira irmã divergia das expectativas, tinha uma marca de diferença. Desconhecia alguém assim. Era mais alta e musculosa que as manas, tinha dentes grandes e brancos e sorria sempre. Sorria para o padre, para nós, para as mulheres que a miravam em alarme. Sorria. E faltava-lhe a beleza e garridice das duas. Era um tronco de árvore ladeado por flores. Quando saiu do templo, as irmãs davam-lhe o braço como se ela criança pequena. E no entanto, no adro, sorria e beijava todos. Indiscriminada. De boa mente. As manas puxavam-na em impaciência discreta, vamos, para a semana voltas. E ela feliz, que bem se via estar feliz tão rodeada de gente. Pensei que era esquisita. Reparei-lhe os olhos, a boca, o nariz. Cada um, isolado, era sem defeito. Mas a mistura resultava estranha. No caminho para casa falei a minha mãe dessa irregularidade e daquela satisfação sem nome que lhe latejava à vista das pessoas. E minha mãe em tristeza condoída, desflorando palavras-pétala, coitada, tem falta de juízo, parece uma criança. Que tristeza!
(continua)

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O Fogo da Nossa Desgraça

No rescaldo dos fogos de 15 e 16 de Outubro, ainda movida a sentimentos e emoções, não consegui escrever. Talvez por me antever no papel dos desgraçados, entraram-me uma tristeza e revolta monstras. Pelos que morreram ceifados pela calamidade. Sozinhos contra o fogo. Impotentes. E por quem ficou, desamparado de tudo. Conheço esse desamparo de viver de empréstimo, sem que nada seja nosso, à mercê de bondades estranhas e boas vontades tanta  vez apenas iniciais, que ser bondoso durante muito tempo cansa, e, a breve trecho, familiares e amigos desejam voltar a lugares marcados e a sentir que a casa é apenas sua. Mas não sei o desespero de “Tudo perdido”. E não contabilizo a dor pelos mortos que é dor por faltarem e dor pelo horror que viveram e que ninguém, nem o ser mais vil, merece. Penso nos que ficaram porque o futuro se faz com eles. Nos pobres desalentados, mãos a abanar, incrédulos do infortúnio. Gravou-se-me o olhar sonâmbulo daquele homem pegado aos escombros da casa e dos barracos, tudo negro e informe em seu redor, mal acreditando no absurdo, como num pesadelo, nem um martelo, nem uma enxada, nem um trator; ardeu tudo, não tenho nada. E a gente a ouvir e a saber que estava a auto convencer-se da extensão de vazio.
À medida que os anos correm sobre nós e que a vida e os homens nos contrariam, vamos aprendendo que o pouco que temos nos é tudo: a cadeira de sentar, a cama que o corpo deseja para o repouso, a chávena do chá ou o café da manhã. E há a janela de espreitar os avanços do dia que se espreguiça ou corre em lufa lufa, as manias da porta das traseiras, o som dos passos que são distintos nas diferentes partes da casa. A história de cada um enleia na de todas as coisas que são suas e lhe fazem falta.  São os pequenos nadas que os olhos necessitam, objectos comezinhos que têm lugar de anos no cenário. E assim acontecia antes do fogo. Também eles tinham a sua casa, animais domésticos e de trabalho, alfaias agrícolas que compraram a juntar as notas umas atrás das outras, a guardá-las semana a semana, mês a mês, sacrificando sabe deus o quê, porque um trator faz falta, porque o reboque, porque a segadora mecânica, a tratorinha que baptizaram com um nome terno por ser maneirinha e caber onde os tratores não entram. E perderam família, a casa, os haveres.
Neste oceano de desgraça, o Estado fracassou humanamente. No vigor da calamidade imprevista, tratou todos com desrespeito. Quem fala assim do seu povo trai a sua confiança. Em situação de desgraça, não se atiram razões e culpas, oferece-se compreensão e ajuda. O que se ouviu foi indigno de representantes do povo, gente eleita por ele e que lhe deve protecção. São os portugueses quem lhes paga o ordenado, mereciam o seu apoio incondicional desde o início. Mais tarde, o governo emendou a mão, pediu desculpa, mexeu-se para trazer futuro a quem dele precisa. Mas é no ardor da provação que conhecemos as pessoas. 
E há as árvores. Hectares e hectares ardidos. Muitos milhares de hectares de floresta sacrificada (quinhentos mil). Uma razia que nos trará consequências nefastas e a vários níveis e de que nem é bom falar nesta hora que tem de ser de reconstrução.  O fogo quase extinguiu o pinhal do rei. Mandou plantá-lo o rei poeta e de vistas largas, para segurar areias marítimas, assim o estudámos nós. O pinhal de Leiria era de todos os portugueses e não apenas dos leirienses. Oitenta por cento, ardeu. Não veremos formado o novo pinhal. Mas que o plantem. Que o plantem! É incumbência nacional. Que a história se recrie. E os portugueses, senão estes outros serão, o olhem lembrando ainda esse D. Dinis de grande alcance e os versos dos poetas que o cantaram, imaginando no rumorejo dos pinheiros o som futuro das caravelas velejando.

 Não queremos ficar encalhados e ajudamos no que podemos. Essa gente martirizada há-de navegar. É dever nosso interessá-los, trazê-los de volta ao mar da vida.