sexta-feira, 27 de novembro de 2015

As Mãos


Dói nos olhos a ternura das mãos escorrendo sobre o mundo
 As mãos são bálsamo que arrasa o vácuo dos abismos
 E à boca das mãos existem os gestos 
A desligar o espanto 
Nos olhos dos afogados. 
As mãos pegam, desfazem e fazem. Refazem.
Tocam. 
Recolhem-se em brusquidão de ouriço. 
Armam-se
Rendem-se como folhas em descanso
E voam-lhes libélulas por entre os dedos. 
Às vezes, a vida das mãos destila cansaços murados
 E as unhas são janelas de prisão.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Estranhezas Pessoais

Nas insónias nocturnas raciocino demais. Escrevo de cabeça sobre factos que me acodem repentinos e construo, sem que o deseje, posts inteiros de razões encadeadas. Ou textos. Ou argumentos. Não sei. Estranhamente,  naquela hora de roda dentada que engrena mal, rr,...rrrr...rrrr..., as ideias fluem e jogam umas com as outras; conjugam. Porém,  na manhã seguinte, esqueci o completo de tudo: tema e razões que lhe assistem. Portanto, do  molho de elucubrações, nada me é devolvido e, se não fora a certeza de haver pensado em alguma coisa, julgaria que foi sonho. Assim esta noite. Não me ficou um átomo de ideia. Escreve, pode alguém aconselhar. Ora bem, a insónia – a minha – não quer nada com a escrita que, a haver, arrasta a noite branca. Inconveniente, portanto.
Havia um poeta - António Ferro, julgo - que comparava a sua alma a um relógio que parava de quando em quando, provavelmente por falta de corda. (se o poeta tem vivido na era digital, adeus poema). Não diria que o meu pensamento pára (parece que só a morte tem esse poder), mas a minha memória, sim. Aprofundo-me em mistérios a que chamo “coisas esquisitas” e que me acontecem desde que me lembro. Por exemplo, enquanto as outras crianças tinham medo do escuro, ladrões, velhos do saco, feiticeiras, lobisomens e bruxas em geral, eu temia cheirar e mexer em moedas e era-me terrífico subir escadas. Se agora se me pára a memória, nesse tempo, à vista de um lance de escadas, entravam-me as pernas numa letargia paralítica que nem a ameaça de pancada as demovia. A questão das moedas era resolúvel: sendo-me raras, quase não necessitava pensar no cheiro que destilam. Hoje, a perfídia olfactiva ainda me atraiçoa no entreabrir da carteira, mas disfarço melhor a agonia táctil. Por via destas chinesices, fui desde cedo vaticinada como futura virtuosa, único ser conhecido no lugar como “aquela que não toca em dinheiro”. Esclareço que, embora não tenha coração maléfico, eu e a virtude altercamos com frequência e tive de socorrer-me de profissão mais vulgar, gorando os presságios das tias-avós. Paciência.
Quanto às intermitências da memória, a coisa começou mais tarde. Tinha eu uns míseros quinze anos quando, pela primeira vez, ela parou onde quis. Num exame. Sim, que a minha memória, se é para fazer dano, não se coíbe. Muito selectiva, só me dava as páginas onde estava o que precisava escrever, as linhas que ocupava, se estava a meio da página ou no princípio, se na frente se no verso...e o assunto, nada. Zero.
Podem dizer-me que não há Deus. Penso mais vezes que sim do que não. E nesse exame fatídico, em que, claro, não escrevi quase nada e ia ter de zero a cinco numa escala de zero a vinte, penso que sim, que Ele me pôs a mão. Ah, podem desdenhar, então só há Deus quando te convém. Não é isso. Deus existe sempre, mesmo se não o noto. Um Deus não é conveniente e não pertence a ninguém. Também não creio que seja solitário, que a solidão tem raiz humana. O que aconteceu foi o acaso de termos de repetir a prova escrita de todos os exames. Para mim, divino e providencial. Como a memória reatou funções, não me demorei a pensar no caso e atribuí a desregulação a factores variados. Porém, no princípio de uma doença – que ainda desconhecia que tinha –, saltou-me em cima a pés juntos: num teste, esqueci a matéria da minha disciplina preferida; não só a de teste, toda. Dois anos de estudo olvidados num ai. Preocupei como se preocupam garotas de dezoito anos: em brevidade e pouca urgência. Mais tarde, na faculdade, tive uns apagões a que chamei nervos de oral e desliguei.

E agora isto. Terá a diva alguma coisa contra a hospedeira. Lamento se não sou quem ela queria. Mas se nem quem eu queria sou...Ora esta. 

domingo, 22 de novembro de 2015

Um Verão em Itália

Se duas pessoas se juntam e a conversa gira à volta do clima, quase sempre é sintoma de mútuo embaraço. Falta-lhes assunto, desconhecem-se e fogem a “pôr o pé na argola” por abordagem de tema que mais exija. O estado do tempo passa, neste caso, de mera condição meteorológica a entretenimento de minutos que se arrastam, lesmas peganhentas e babosas que pegamos com a pinça climática.
No entanto, conversar sobre o tempo pode ser assunto sério. A verdade é que não será apenas a mente a tornar-nos humanos. Por via dela, temos conhecimento da nossa sujeição à temporalidade, cuja não existência  nos escandia de sermos homens. Portanto, o tempo, nas suas três instâncias, integra e categoriza-nos: anjo com pés de barro, infinitude limitada, eternidade finita. Expressões bonitas de dizer mas difíceis de viver.
Mas, a condicionar o quotidiano, há ainda a questão temporal de ordem prática e comezinha. Por ela, o dia-a-dia dobra e faz mesuras, encurta por medida, torna-se um rasgado sorriso ou um contrafeito esgar. A existência está polvilhada de meteorologia e é escusado negar-lhe efeitos que dão  pelo nome de “pequenos ajustes à realidade”. Ora, as férias não se eximem a tais  acertos desacertados. Para mais em Itália, país de telha, que a descaso se enche de relâmpagos e trovoadas sem destino, anteparo de rebentamentos líquidos em catadupa. Foi assim, impreparados, que nos encontrou a tempestade do segundo dia na Bienal de Veneza. Felizmente, algo no semblante da manhã me fez voltar a casa, em busca do corta-vento. Ainda a caminho do celebrado vaporetto, a chuva fez a sua entrada. Pé ante pé, em gotas grossas que breve adquiriram velocidade de atleta, um ventinho cortante em passeio, a desmanchar-me a sombrinha de bolso que coabita com o leque. E logo Veneza numa tristura de dar dó: os canais sozinhos e a escorrer, lonas rápidas sobre as gondolas, corridas de turista sem aviso. No cais de embarque, gente esfriada, pés queixosos em sandália aberta, olhos de inveja nas poucas senhoras avisadas, prováveis venezianas, de casaco, cachecol, guarda chuva e sapatos; no frio do canal, crianças em corpo de verão, molhadas e aos berros soluçados, nariz a escorrer, pegadas às pernas de mães carregadas de malas, que surdinavam comentários a companheiros aselhas e desasados enquanto as assoavam, inermes à sirene que pedia colo, bracitos ganga acima, exigindo guindaste. Fixei a indiferença enlameada do gran canale e o vaporetto a aproximar. Entrámos e à viagem desanuviada de outros dias sucedeu o desconforto das correntes de ar, do choro infantil, de uma mãe benfazeja, transpirando restos de woodstock, que cantava em afinado francês e profusão de gestos, uma canção que metia galinhas e números em repetição acrescentada que calaram a chorinca de serviço. A garotita foi mesmo até ela, qual ratinho perseguindo a flauta mágica. A jovem mãe sentou-a a seu lado no chão do barco, talvez sobre a sua saia larga, e continuou a actuação com a criança que tinha no colo. Abençoada seja ela e a infinita paciência que tomou para si. Esta mulher, mais ou menos despenteada, foi um sol na agonia da manhã.

E porque uma desgraça nunca vem só (e uma sorte também não), mal saímos do barco, o alarme do Luís a palpar o bolso, “ roubaram-me a carteira, merda”. Um palavrão a desábito. Logo, um facto insofismável.

sábado, 21 de novembro de 2015

Olívia

Olha garota, tu desculpa, mas é que tenho pavor a descobrir que morreste mesmo. À séria. Assim uma coisa de não estares em casa nunca mais e haver outras pessoas a morar no lugar que foi teu; de eu te procurar na rua de sempre que a minha baralhação não alcança; de os  alentejanos à beira do carro, a coçarem a cabeça por cima da boina, embatucados na resposta, uma fixidez mórbida aguardando reacção, morreu já vai para um ano.
E depois chego ao teu portão que dá sinais de sim e de não. Para que duram as coisas mais que nós, se depois levam que tempos a despir-se de hábitos, a despegar de cheiros, a entretecer a realidade. E pode que não. Sabes tu, na casa da minha avó, morta há que séculos, ainda uma flor ou outra plantada por sua mão. Palavra. Bom, as flores não são objecto de comparação, fazem o que querem. E aquelas, pelo visto, querem florir, renascer a cada primavera. Passo lá e os pés abrandam nos pedais, o guiador feito parvo a querer virar, dar a volta à casa e encostar no pilar do alpendre; e tenho de contrariar a minha vontade de anuir - até porque alguém a murou. Por entre o folhedo das árvores, espreito a selha onde lavava os pés, vestido e combinação a escorrer. E o meu avô, juro, está lá, virado ao gargalo do poço, todo mãos no golpe do balde. Às vezes, penso que devia fazer o mesmo contigo, regressar ao que deixaste. Metia gasolina e partia como dantes, Alentejo adentro. Depois de muito quilómetro, numa recta sem fim, passava a placa indicativa da Caridade noivando ao longe, e subia-me uma ternura só de olhá-la assim, aldeia tão pequenina e perdida na planície, à mercê sabe Deus de que maldades. E logo, logo, circundava a igreja matriz de rectas barras azuis, tão alentejano o deus que lá mora, anos a fio virado ao vagar da praça, a sofrer o áspero do vento que encana a esguedelhar árvores ou sufocando, lento e esbraseado como qualquer mortal, quando nem uma aragem corre e um inferno de calor assenta na terra desfalecida e semimorta. Mas isto saberás melhor que eu, Reguengos é a tua cidade.
Como fazer tal viagem, diz-me tu, amiga. Vá, ensina-me a tua ausência. Preparo o quê, para quem. Em quem penso no caminho. O que faria à beira daquele portãozinho pequeno a que já aprendi os truques. Desculpa, não sou capaz. Emendo, não tenho de ser capaz.
Aí tens, Olívia. É isso. Prefiro eternizar-te no lugar onde te visitei menos vezes do que devia. Mas as coisas boas são sempre a menos. Calha assim.
E afinal, a eternidade é essa coisa vaporosa e de nuvem, ou simplesmente não existe?  Bom. Se não existe, estou falando sozinha. Pra nada. Pra ninguém.   De novo. Portanto, mais uma vez jogo nas preferências: Em mim, existes sempre. Queres lugar melhor, Olívia? Não comes, não bebes, não dispendes. Ora muito bem. Sim senhor.
Pronto, tá bem, cansei-te. Vai lá apanhar solinho recostada numa nuvem. Ok, sim, guarda-me lugar que a vida é um rufo.

E porta-te, que não quero cá queixinhas dos santos

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Atentamente na Bienal


A atenção humana é enigma maior que o da esfinge. Nada promete a quem o desvende e é provável que não seja de esmiuçar. Pode até parecer que exercita a desobediência  deliberada. Senão, repare-se: é incompreensível que estejamos numa aula e só nos lembremos das pernas vidradas da professora passeando devagar em estalidos finos (e não, não é motivada por concupiscência adolescente); que vamos a um concerto e, em vez da música, nos fique a argúcia cuscuvilheira que rebrilha nos olhos da vizinha do lado; que passeemos no canal e guardemos apenas o garrido das sardinheiras no cais de embarque. Enfim, a nossa atenção, não só não é exclusiva, como se detém a desejo e toma para si o que bem entende. Uma  desobediente caprichosa. Portanto.
Assim eu, na Bienal. Passaram-me os pavilhões, as obras, as pinturas e esculturas, as provocações quase todas. Lamentei o pavilhão fechado da swatch, com animação de Joana de Vasconcelos,   e que aguardava técnicos de Portugal cujos deviam fazer caminho a pé, dada a incógnita sobre reabertura.

Pela escultura descomunal da entrada exterior, o pavilhão mais chamativo era o inglês. Mas, é claro que a minha atenção se concentrou na cor – amarelo-ovo –, pareceu-me uma aranha em ponto grande, ou, com muito boa vontade – achei que tinha poucas pernas –, um polvo gigante. Fosse o que fosse, achei lindo. E resolvi dar uma vista de olhos no interior. De que gostei menos. Proliferava uma abundância de sexos masculinos e femininos, quase todos fumadores. Não achei grande graça, mas talvez tenha entendido a risota dos nossos rapazes no campismo (eles bem balbuciavam um cigarro em qualquer lugar...). Edificante e pedagógico. Portanto. Atardei-me um pouco à saída, observando a escultura. Era o máximo, exibia um agradável arqueado de pernas e havia na extremidade central qualquer coisa de flor a desabrochar, uma irrupção que me convencia. Mas ainda tanto por ver! Desci a escada e consultei o mapa a decidir caminho. Eis senão quando o Luís me encontra – de cada vez que acontecia, trocávamos informação contando uns aos outros o que mais nos agradara e aconselhávamo-nos – e logo me apressei a recomendar o pavilhão inglês desvendando que a escultura da entrada estava um primor. E ele numa espécie de solilóquio, sim, já lá estive, também gostei daquele pénis, a cor é muito adequada. Bom.  Voltei atrás, a reapreciá-lo; vê-lo pela primeira vez na sua qualidade; merecia. Mas é que não consegui, o primeiro olhar é que manda em nós, é o original.  A escultura surgia-me bem mais bonita e estilizada. Porém, aquela força de flor a desabrochar...coaduna. Parabéns ao escultor. Já lhe dava as costas quando ouvi – e vi - um garotinho de calções, mão dada a uma jovem muito italiana, dedo esticado para o amarelo-ovo, guarda mamma, un gricino tanto grande!; confesso, senti-me mais acompanhada. 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Na Bienal

Há coincidências. Afirmo-o a muitas vozes, em várias tonalidades. Se necessário, exemplificando. Foi por acaso que coincidimos com a bienal de Veneza. Abençoada sintonia! Por ela, eternizámos em fila indistinta, onde semelhávamos tortos e desordenados carreiros de formigas, um por bilheteira. Cogitei que não haveria muitos alemães em espera, o seu amor seriado pelo método decerto impediria os amontoados de gente, as zonas de fila  gorda e a desbordar de que não se entendia a existência. Ou os espaços inexplicáveis, buracos entre as gentes, que, suponho, insinuavam desconfianças na pituitária das pessoas em redor, cheiro mal; se calha, com a pressa, esqueci o desodorizante e o calor fez das suas; e as mais afoitas observavam disfarçadamente os pés, talvez tenha pisado cocó de cão e agora ninguém se aproxima. Ora, além do calor que demorava o passo na sombra e o estugava na soalheira, não há motivo para estas idiossincrasias de trazer por casa, que existem, em grande parte, casuais. E também porque os homens tendem a copiar-se uns aos outros. A cópia é um dos mais activos simplificadores do agir.  
Bom. A Bienal distribuía-se por vários lugares distintos: um jardim, as instalações gigantescas  pertencentes à marinha e vários palácios e praças da cidade. Refiro apenas a parte da bienal “plantada” no jardim, por interessante e prazeirosa. Um espaço com tudo que lhe pertence, apetitoso aos sentidos, acolhedor, propenso a desejos indefinidos. No início do jardim, enfileirei  por uma rua ladeada de árvores que me lembrou Serralves. Contudo, não repeti a sensação de pisar terreno conhecido e de ter vivido ali coisas boas e passadas. Não. Antes me certifiquei de estrear os passos. Por entre a frescura arborícola, espreitavam os pavilhões deste e daquele país, um busto ou outro a mirar-me do alto da sua compostura. Desconheço o critério que atribui edifício cativo a uns – nome  inscrito na pedra da fachada  – em detrimento de outros. Pode ser questão de antiguidade. Imagino, por exemplo, que a França seja bem antiga nestas andanças. Daí o nome do seu pavilhão talhado a escopo e martelo. Ou será relação de boa vizinhança...

Verifico-me incapaz de descrever ou avaliar o que vi. Não houve deslumbramentos, mas apreciações. A minha veia poética rejubilou com o pavilhão da China, onde dois ou três barcos sonhadores nos envolviam deveras com suas linhas e chaves em nuvem avermelhada de fios. Presumo que me deu alma passear incógnita e transparente em lugar tão aprazível, descansar num bar ao ar livre, estar entre pessoas desconhecidas, sem colisão. A bienal foi uma dor de pernas e a correspondente paz de espírito. Ser todo olhos, aliena muito de um homem. E a medida  dos anos requer cada vez mais o alheamento de se deixar diluir no observado, mergulhar. O artista cria e está inteiro na obra enquanto cria. Ao observador resta esse exercício de mergulho, olhos guiando a mente, a leveza a instalar. Talvez se chame prazer. A sensação mais próxima é a do viajante ajoujado que alija bagagem e, uma após outra, vai atirando as malas. Que continua caminho, pedestre entre pedestres, imerso na sensação de ser o único que quase voa.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Manhã em Veneza é este afã revolvido por enfileirar na praça de S. Marcus, no Palácio dos Doges, na Catedral... em tanto lugar onde a arte nos descentra e esparvece. Mas a verdade é que, quando a multidão ataca, já a manhã vai alta.
Venecia acorda bem mais cedo. E é vê-la a espreguiçar-se na hora desleixada das ruas mais conhecidas e transitadas. Banhadas de luz e quase desertas, encolhida a garridice dos toldos, não escondem o jeito dormente, ainda sob anestesia, de lugar noctívago. Quem as vê duvida de si, cabeça a um lado e a outro, devo ter-me enganado. Ao acaso de portas ainda cerradas, as esplanadas desolam, na modorra abandonada e quase grotesca dos lugares onde os bêbados apodreceram até ser manhã. Há cadeiras caídas, papeis de mesa rasgados, vasos de flores de banda, a geometria torta dos restaurantes é batom que desacertou da boca. Neste vento de desordem, reféns de horizontes caseiros, os empregados chegam amorfos, pernas bambas, mãos inábeis a levantar cadeiras tombadas no caminho, ainda tacteando a eficácia de gestos, não é este, ora esta. Molemente, entram a transmutar-se. E saem fardados e profissionais,  um desembaraço funcional que devolve a face  ao lugar.

            E nos supermercados, nas padarias, nas ruas onde, afinal, vive gente igual a nós? Acontece como em qualquer país europeu. Pessoas cumprimentam-se e aconselham este pãozinho, aquele bolo de manteiga, uma certa fruta bem madura, um determinado vegetal. Na entrada do supermercado, duas italianas de meia idade –  mais novas que eu – trocam uma receita que não lobrigo, olhar embebido  no guindaste da descarga de batata que provavelmente querem comprar; na caixa, uma criança faz birra, apetecia um doce que a mãe negou; eu engano-me mais uma vez no código de pesar a fruta e faço a empregada da caixa – tão linda e simpática – sair do lugar e ir ela mesma fazer o peso, o que atrasa toda a gente que está na fila; no átrio, duas garotitas comparam sandálias ou pés, cabeça baixa, fixas na função, fora do mundo. Lá fora, há gente quotidiana, a ir para qualquer lugar a que chama casa, sacos plástico na mão, equilibrando mercearias. As pontes do meu enleio já acordaram. E, vestidas de claridade desvelada, atentam no passo arrastado dos velhos, cuidam dos sacos que descansam sobre elas, dão bom dia ao ritmo tracejado da bengala que conhecem. E sorriem. Sinto-lhes o riso ténue e a complacência matinal. Mais tarde, serão apenas caminho e destino de lembranças. E essa posteridade não lhes vale um requebro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Veneza só é ela antes e depois dos turistas. Sim, é verdade, também nós pertencíamos ao grupo, mas tivemos a sorte (dá pelo nome de Luís, a nossa sorte) de habitar entre os venezianos, frequentar-lhes os supermercados, passear na quietude das ruas libertas da chusma que desgarra a cidade.
Nada é igual a vaguear por Veneza ao anoitecer, quando os restaurantes acendem velas, as flores transbordam de janelas e amuradas e a água dos canais bruxuleia. Apesar dos pés doridos, que linda a Veneza nocturna, em seu romantismo sombrio, a quietude dos sottoportegos, chamando ao amor e ao roubo. À noitinha, os venezianos acendem luzes de casa e abrem portas e janelas. Por certo se debruçam a reconhecer a sua cidade. Nessa hora, a beleza das pontes amplia. Despidas de selfies e sorrisos emprestados, de abraços de fotografia e poses estudadas, são recorte que os olhos apetecem. Ali permanecem, arqueadas sobre os canais como um arrepio de amor. Algumas  são em ferro ligeiro e erguem-se em curvas delicadas, talvez arte nova. Sobre a água soturna e sombreada, há um enleio que comove no encanto de ligar duas margens. No fim de tarde, faz-se palpável a doçura morna que desprendem, amparo do silêncio que vai chegando.  Então, descem devagar as mãos da  penumbra e,  em desvelo materno, as vestem levemente.  Em breve serão meninas cabeceando sobre o canal.
 Mas a Veneza diurna é diversa e, em grande parte, um fartar de gente. Falo das hordas que  enchem as ruas a partir da estação de caminho de ferro ou do largo onde estacionam os autocarros. Do turista que chega pela manhã e some ao entardecer.
Miro a rua  da estação ferroviária, a rebentar de gente quase correndo, um jeito de desafio no corpo, como quem vem travar uma batalha e não respirar e absorver uma quota de beleza em liberdade concreta. Caminham intrépidos como se os monumentos possam fugir ou haja um génio maligno a contrariar intentos. Talvez a pressa lhes exista porque em Veneza as filas engrossam e são a ordem das coisas. E porque, na bagagem, guardam apenas algumas horas para tanta maravilha. Trazem olhos  antecipados e futuros, quase cegos para a circunstância. São multidões  fugazes mas densas, em ruas de beleza ímpar a que não acodem. Portas, janelas, arcadas e palácios de esquina escorrem desilusão e comentam em transparência triste, não nos notam, existimos?.  

Mas, e se alguém caísse, se sentisse indisposto... talvez passassem sobre, na tentativa de cumprir roteiro ou chegarem primeiro. E vêm os vendedores ambulantes, besouros colados  a jovens chinesas de cabelo alado a esvoaçar em pele branca e lábios de carmim que todos se franzem à insistência bacoca,  eles acompanhando-lhes o passo, braço estendido a entrechocar o vidro de colares e pulseiras, murano, murano... depois abrandam, desistem e acorrem ao encontro de novas e potenciais clientes. E são as bancadas de fruta montadas a meio das ruas e gente de saco plástico na mão, damascos , uvas e pêssegos em alegre camaradagem; e as meninas venezianas, alheadas do roldão, a deslizar no empedrado, morenos meneios de gôndola esbelta, golpe de elegância nativa que desmede. E ninguém para notar as flores no monte de cardos. E chapéus. Múltiplos vendedores de chapéus a sombrear a porcelana  das chinesinhas, a deitar-lhes o espelho, expressão de apreço fingido. E elas compram e seguem caminho, os cabelos de desenho animado  acamados ao rés do rosto, um leque novo tocado por cinco gotas de sangue. É manhã em Veneza.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália


Que poder detém uma carga de tralha! Não aprecio o Gran Canale, ou deixo os olhos espreitar  a vetusta Veneza enquanto, no cais,  semeados de bagagem, esperamos quem nos guie até casa.  Veneza labiríntica onde as ruas todas se assemelham, a maioria das casas univitelina com mais uma dúzia, pontes airosas em proliferação. Ali abundam, isso sim, recantos únicos. Porém, se intentarmos regressar a um deles, raro conseguimos. Neste momento, ainda ignoramos tudo isso, os meus pés e ténis enjoados de sobremalas, agradecidos de terra firme, a relaxar, já temíamos pertencer a um insecto voador. Encosto-me à parede do cais  a apaziguar-lhes o redondo contrafeito da biqueira, enquanto a Mariazinha da história, a mesma que se perdeu na floresta, miolos de pão engolidos pelos pássaros, me grita uma angústia lá do fundo, e se ninguém vier?!  Habitam-me sem transtorno estas personagens de contos, comprensíveis e femininas. Mas logo chega uma italiana de meia idade e cala temores, Mariazinha já concentrada na tarte de maçã que tem ao forno. A senhora é despachada, funcional  e atípica: baixa, loira, olho azul. Declinamos a oferta vazia de intenção, querem ajuda. Seguimo-la. Caminha em passo meio apressado, ou assim nos parece, mas o cortejo arrasta-se; em breve ocupo o meu lugar habitual, na traseira do grupo. Mentalmente, equaciono o material que transporto no fito de alijar algum na volta. E prometo a mim mesma que não acrescento peso, nem uma pena de galinha que seja. Após muita esquina a repetir decepções, é ali; não, é ali; ai, ainda não..., a dama detém-se e abre uma porta anódina, em tudo idêntica a outras. Um, "abre-te sésamo". Entramos num fresco saboroso, a penumbra silenciosa evola do tabuleiro quadriculado do chão. Sem que a tivéssemos visto, já a casa nos apetece.

            Veneza oferece-nos os melhores e mais confortáveis aposentos. Cidade tão medieval por fora como contemporânea no interior. Quem decorou a “nossa” casa esmerou-se na mistura entre ikea e objectos de estilo; foi requintado na escolha de cores e adereços, usou, no cortinado da entrada, as cores da cidade. E, muito importante, cuidou de bons colchões e camas largas. Em Veneza  estamos de gosto no conforto e requinte que todos desejamos em viagem quando nos passam as juventudes aventurosas de saco cama e tenda às costas. Somos presas desta harmonia cativante. Talvez a meio da semana, conversamos com Pietro, o proprietário que encontramos sentado a meio da escada, portátil em punho. O gigante explicou-nos que trabalha em Pequim e pretende que a net seja partilhável em todo o imóvel. Andou pelos quartos e mais no meu por ser ali que estava não sei o quê e etc. O edifício é todo seu e serve o mesmo intuito: abriga turistas. O meu progenitor de imediato lhe faria contas ao bónus mensal. Porém,  desejei -lhe apenas que continuasse bem por Pequim. A net à força toda só chegaria depois de sairmos. Ora bolas.

Deste dia primeiro, para lá do tropeço de bagagens, fica  a graça natural e miúda das árvores que arredondam e florescem, bandeiras de paz que cruzámos à saída do cais. Como a beleza pode ser simples! Depois  de cheirarmos a casa e a fazermos nossa de objectos, a saída bandeirante. Nas traseiras, junto à Piazza dei Mori (lá estão os três mouros a atestar), mesmo nas nossas costas (da casa, da casa), um palácio casado ao resto das habitações, algumas delas com roupa estendida sobre o canal, cuecas em fila indiana, blusas e outra roupa normal em aceno sorrateiro. Um palácio  a sério, ogivas de cordame a sombrear janelas rindo de alto, em opulência de cortinados; e o benefício de cais próprio e barco a motor resguardado. Provavelmente, o palazzo pertence a duques ou condes que, se espreitam o canal, dão de caras com as cuecas da vizinha e o mais que ela queira no estendal. Venecia é também isto.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Ah, Os vaporettos nos canais! E agora eu desfiava uma quantidade de frases românticas sobre a poética de se viajar de barco e não haver automóveis em Veneza e o ar despoluído e assim. Mas é que, ajoujada de malas e sacos, o esqueleto num estertor a acompanhar-lhes o peso, não há poética que resista, beleza que nos não abandone. De joelhos vizinhos do queixo e olhos  na água, recordo o nosso bolinhas cheio como um ovo, mas os meus braços em descanso, as minhas pernas nas dobras normais e não este arco baleno sobre a bagagem que ameaça desabar de encontro ao meu ensonado vizinho do lado com quem convivo intimamente, tão siameses um do outro que ao levantar, me arranca junto, eu a estorcegar-me toda, tá-me a magoar caramba, não puxe com tanta força que a gente tem que se despegar primeiro. E aí talvez ele abra muito os olhos e comece a separar-nos à pressa, isto é meu, isto é teu, isto é meu, isto também, toca a despachar que o Vaporetto para só uns minutos e tenho de sair; e depois, em  desespero de causa, arrasta-me até à escada (vou de boleia que é alto e nem chego com os pés ao chão), uns bocados de cinta ainda em comum, e pede ajuda ao cobrador dos bilhetes, a apontar-me como se um contrapeso indesejado, olhe pra isto, ainda não cheguei completamente e já um sarilho destes me toca, a culpa é da sobrelotação, agora estamos pegados. Que vida (suspira), se a minha mãe sabe, dá-lhe um baque dos antigos, o senhor  desembarace-nos que não deve ser a sua primeira vez, mas é a nossa e temos pressa de ser um mais um;  ui, cuidado que esse bocado de pele é meu e já está negro de tanto repuxar –  e desata a esfregar no doloroso, a fazer-me cócegas com os nós dos dedos, eu a rir-me sem querer e ele numa interrogação de birra francesa, quelle bêtise... 
       Olho-o fora do sonho e o jovem francês não encolheu, está ali, factual e palidamente alto, olhos fechados, braços serpenteando a mochila que lhe barra o estômago. Como será que ele me sente, pergunto-me. Em mim, o vizinho tem consistência de muro. Os homens são assim: consistentes de corpo. É isso, as mulheres são rendadas: de pensamento, de esqueleto e até de carnes. Nenhuma mulher tem consistência de muro. Por mais gorda. E nenhum homem tem pensamentos rendilhados ou deixa de ter aquele jeito sólido de parede. Por mais magro. E entretanto, ainda que o Luís destine e apresente, o Cemitério, o Palácio dos Doges, a Praça de S. Marcus e etc., foi isto que pensei durante a indisposição no Vaporetto. Hummm…também reparei que a água era suja e que havia demasiados barcos a sulcá-la. O resto foi esforço. Repleto de suor corrente. Pensei no Pico Evereste e no íngreme das escaladas. Veneza é essa planura que se escala fortemente. Metro a metro. Quilo a quilo. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Nada existe tanto como antes de existir. Algum poeta o terá dito. E não só os poetas, que se não fora o desejo das coisas, elas mesmas pouco nos interessavam e delas nada nos viria. Por isso, antes de Veneza é que ela nos existe. Fica-nos a oscilar no desejo de sabê-la, palmilhar ruas e pontes que lhe fazem o corpo de água  fugidia, conhecer-lhe o cheiro pagão dos cabelos, murmurar-lhe lábio a lábio o sinuoso dos braços de muitas portas, subindo o cotovelo até à humidade concava e retráctil da axila. Depois, humildes e prostrados, rodearmos a saia cigana que insinua pernas guardadoras de convictos segredos. E penetrarmos assim nos seus palácios, namorados à descoberta da intimidade que lhe existe sob a multidão que pulula. Ó Veneza misteriosa que sonhamos conhecer! Doce sonho de uma semana de Verão! Por ti despimos cabides e armários, puxamos malas e pacotes, fazemo-nos reiterados viajantes. Por ti, decidimo-nos a abandonar Ravena que tanto nos enleia em sua teia fasciculada. Ravena que nos reclama, uma mão cheia de história a agarrar-nos o pensamento. Em Ravena podíamos ser felizes.

 Mas já é outro dia e depois de alvorada expectante e despedidas para nunca mais mascaradas de ano que vem, sobreveio-nos a viagem para outra província, o Vêneto. No caminho, a paisagem um écran em mutação de cores, a exposição de verdes agrícolas perdendo para infiltrações de amarelos que rodeavam alguma desarrumação cénica, a remeter para desacertos pátrios e sua mescla insane de alhos e bugalhos. Nada de jardins cuidados e habitações de cor retocada. Convenci-me de que entrávamos  numa Itália menos abonada, a pobreza do gosto em desvarios de aqui e ali. A planura impunha-se esfumando o bucolismo acidentado e espigoso dos ciprestes. Em seu lugar, os choupos e a sua mansidão de folhagem sussurrando desculpas, boquinhas tímidas a entreabrir, somos assim. Os choupos são árvores pobres que existem sem porquê como todos os deserdados da vida. Vivem sem orgulho que os aprume e não lhes cabe a densidade colorida do cipreste. Existem verdurengos. Escusam a proximidade aquosa, mãe da frouxidão verde, quiçá da roupagem que se espalha sem direcção definida, remoinho de braços estendidos a nada ou, para quem prefira, estendem braços uns aos outros, permanecem de mão dada na sua vida de árvore. E amei os choupos por serem eles. Amei-os no verde sem arroubos, nos braços abertos e finos a entrelaçar, quase sem forças para o alto onde as folhas se penduram no à-vontade espaçoso que falha em qualquer arrogância cipreste.  Benditos sejam os choupos que adivinham e sinalizam as correntes subterrâneas de água doce. Benditos.

domingo, 1 de novembro de 2015

Olívia


O tempo levou-nos na correnteza. Submersas em tentáculos quotidianos, persistimos viradas ao umbigo e suas extensões. Vivo enleada em palavras enquanto tu persistes nas obras comunitárias que te organizam as horas, manifesto da tua agenda. Não entendo como te deixas seduzir por catequeses, missas e velhos sem destino ou direcção; mas a ti  “faz-te espécie” que eu perca horas a ajeitar letras sem préstimo, que ninguém lê e eu mesma esqueço (a mim também me faz espécie, mas é um ritual e agrada-me). Como as pessoas diferem sendo tão parecidas! Preciso de um exercício de bom senso para aceitar que uma vida – a tua – tenha tal conteúdo e daí lhe venham os toques de alegria que te animam. Imagino que eu te provoque algo semelhante.

Lá fora, a política enlouquece a fingir acordos que não duram, o país depaupera e hordas de refugiados morrem e sofrem às portas da Europa. A frágil e fingida Europa. Que oferece roupas e agasalhos, e brinquedos e livros e o diabo a sete, mas receia.  Que deixa passar – se deixa –, mas não acolhe. Armada em obtuso Pôncio Pilatos. Pergunto-me como pode ser levada a bom termo a inclusão dos refugiados se não beneficia de acção concertada por parte dos Estados. Não se criam infraestruturas, não se pensa que são milhares e milhares de pessoas em fuga e  sem um haver. Que vêm para ficar. Oh, Olívia, não me julgues ingrata, uma mal agradecida a tanto particular que se moveu. É tudo necessário, os camiões TIR com víveres e roupas e livros e bonecos e tanta coisa. Porém, tudo isso pertence a outra ordem e é quase irrelevante na solução do problema e na sua premência. Queiramos ou não, é agora um problema nosso. Nosso, enquanto Europa. Nosso, enquanto países envolvidos no acolhimento. Vai afectar-nos presente e futuro e reduzir o problema à sua dimensão moral e humanitária é simplismo. É também um problema social, económico e político. E tem de ser assumido na sua qualidade. Mesmo não aplicando o discurso – verdadeiro -  sobre a tradição humanista da Europa, é errado ignorar e dar as costas.

            Quem sabe, esperas resposta do Deus de bondade e paciência. Que te acalma e promete.  Ao invés, os meus deuses  são inclementes,  viram-me o bico da seta  e não fazem promessas. Privo-lhes com a veia poético-estóica, que apregoa o esforço porfiado e convicto: “vai...mesmo que sejam vãos os passos”. Olívia, essa bondade inalienável não me existe, apaguei-a ao nascer. Ficou-me o reduto breve da poesia. E  os passos.

            Eu acho que hoje o meu coração ensopou, está de portas abertas e à chuva. E é por isso.

Um bjo