Nas
insónias nocturnas raciocino demais. Escrevo de cabeça sobre factos que me
acodem repentinos e construo, sem que o deseje, posts inteiros de razões
encadeadas. Ou textos. Ou argumentos. Não sei. Estranhamente, naquela hora de roda dentada que engrena mal,
rr,...rrrr...rrrr..., as ideias fluem e jogam umas com as outras;
conjugam. Porém, na manhã seguinte,
esqueci o completo de tudo: tema e razões que lhe assistem. Portanto, do molho de elucubrações, nada me é devolvido e,
se não fora a certeza de haver pensado em alguma coisa, julgaria que foi sonho.
Assim esta noite. Não me ficou um átomo de ideia. Escreve, pode alguém
aconselhar. Ora bem, a insónia – a minha – não quer nada com a escrita que, a
haver, arrasta a noite branca. Inconveniente, portanto.
Havia
um poeta - António Ferro, julgo - que comparava a sua alma a um relógio que
parava de quando em quando, provavelmente por falta de corda. (se o poeta tem
vivido na era digital, adeus poema). Não diria que o meu pensamento pára
(parece que só a morte tem esse poder), mas a minha memória, sim. Aprofundo-me
em mistérios a que chamo “coisas esquisitas” e que me acontecem desde que me
lembro. Por exemplo, enquanto as outras crianças tinham medo do escuro,
ladrões, velhos do saco, feiticeiras, lobisomens e bruxas em geral, eu temia cheirar
e mexer em moedas e era-me terrífico subir escadas. Se agora se me pára a memória,
nesse tempo, à vista de um lance de escadas, entravam-me as pernas numa
letargia paralítica que nem a ameaça de pancada as demovia. A questão das
moedas era resolúvel: sendo-me raras, quase não necessitava pensar no cheiro que
destilam. Hoje, a perfídia olfactiva ainda me atraiçoa no entreabrir da
carteira, mas disfarço melhor a agonia táctil. Por via destas chinesices, fui
desde cedo vaticinada como futura virtuosa, único ser conhecido no lugar como “aquela
que não toca em dinheiro”. Esclareço que, embora não tenha coração maléfico, eu
e a virtude altercamos com frequência e tive de socorrer-me de profissão mais vulgar,
gorando os presságios das tias-avós. Paciência.
Quanto
às intermitências da memória, a coisa começou mais tarde. Tinha eu uns míseros
quinze anos quando, pela primeira vez, ela parou onde quis. Num exame. Sim, que
a minha memória, se é para fazer dano, não se coíbe. Muito selectiva, só me
dava as páginas onde estava o que precisava escrever, as linhas que ocupava, se
estava a meio da página ou no princípio, se na frente se no verso...e o
assunto, nada. Zero.
Podem
dizer-me que não há Deus. Penso mais vezes que sim do que não. E nesse exame fatídico,
em que, claro, não escrevi quase nada e ia ter de zero a cinco numa escala de
zero a vinte, penso que sim, que Ele me pôs a mão. Ah, podem desdenhar, então
só há Deus quando te convém. Não é isso. Deus existe sempre, mesmo se não o
noto. Um Deus não é conveniente e não pertence a ninguém. Também não creio que
seja solitário, que a solidão tem raiz humana. O que aconteceu foi o acaso de
termos de repetir a prova escrita de todos os exames. Para mim, divino
e providencial. Como a memória reatou funções, não me demorei a pensar no caso e
atribuí a desregulação a factores variados. Porém, no princípio de uma doença –
que ainda desconhecia que tinha –, saltou-me em cima a pés juntos: num teste,
esqueci a matéria da minha disciplina preferida; não só a de teste, toda. Dois
anos de estudo olvidados num ai. Preocupei como se preocupam garotas de dezoito
anos: em brevidade e pouca urgência. Mais tarde, na faculdade, tive uns apagões
a que chamei nervos de oral e desliguei.
E
agora isto. Terá a diva alguma coisa contra a hospedeira. Lamento se não sou
quem ela queria. Mas se nem quem eu queria sou...Ora esta.