quarta-feira, 31 de julho de 2013

Coisas

“(…) entrarmos no mar às seis horas da manhã. Por quê? Porque é a hora da grande solidão do mar. Como explicar que o mar é o nosso berço materno mas que seu cheiro seja todo masculino; no entanto berço materno? Talvez se trate da fusão perfeita do masculino com o feminino. Às seis da manhã as espumas são mais brancas. (…) Depois voltarei ao mar, sempre volto.”
                                                                   Clarice Lispector

Clarice. Que só na morte atravessa livremente continentes e mares, toda fora da saudade que a perseguia quando assim. Metamorfoseada de livro, a desfraldar seu encanto sinuoso páginas afora, um longe de dedos a acenar assentimentos, sim ela é um mistério. D. Clarice. Arde em zonas penumbrosas que lhe dobram o incógnito, lhe acertam o côncavo das maçãs do rosto, lhe sublinham a curva da boca e descem devagar à figura. Que nenhum destes encantos chega perto de se pensar a si e ao mundo de tão próprio jeito. E mulher mais próxima de Pessoa no amor à língua portuguesa talvez des-exista. Des-encontre.
Eu lhe respeito, D. Clarice.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

As Raparigas

Era frequente acordar com um chamado insistente como nas madrugadas em que precisava estudar e a mãe quase no seu ouvido, filho. Uma voz desconhecida e, contudo, sabia-lhe o nome, Afonso. E ficava a repeti-lo, perto do rosto, até que acordasse. Uma voz de chamá-lo. Como de alguém por incumbência. Um sinal de despertar, Afonso. Abriu os olhos e no meio da escuridão voltou-se para o som. Palpou o ar. E no escuro, no meio do escuro, nada. Voz nenhuma. Ninguém. Estendeu o outro braço e a presença da mulher retirou-o do sonho. Adormecida no seu jeito arrumado, quase a pedir desculpa à cama pelo uso. Tempos houvera em que se levantava de imediato, calçava os chinelos e desatava a escrever. E logo o cão se soerguia em estremunhada surpresa, uma interrogação cabisbaixa dentro dos papos dos olhos, a esfregar-lhe a mansidão no pijama. Mas uma manhã Mariana queixosa, parte-se-me o sono se andas pela casa a desoras, como um fantasma. Imaginou-lhe o sono a estilhaçar pelo chão do quarto, nas paredes, nos vidros da janela. E passou a entreter-se quietamente com o silêncio. Tomava-o nas mãos e ficava a rodá-lo por todos os lados dos minutos. Conhecia-lhe as horas pela qualidade. Se acordava e nem um som de automóvel, seriam as três; se um rodado retardatário ou vespertino, as duas ou as quatro; se um piado de pássaro solitário, as cinco; se os pássaros já repontavam contínuos, as seis.
Para que voltaste. Escrevê-las porquê - perguntou-se. Olhou outra vez o vulto da mulher, a respiração a levantar e a baixar levemente o lençol. Lembrou a voz baixa de Mariana, um nada de alteração, abomino aldeias. Cheias de velhas, desertas de pessoas interessantes. Não podes ir sozinho? Que te falta aqui para escreveres um artigo sobre essa gente? Não tens lá ninguém, os teus amigos estão em Lisboa.
Mas viera. Notou que dormia de lado, a linha da anca a demarcar-se. Passou a mão a descair-lhe para o fino da cinta e a subi-la depois até ao redondo do ombro. E nasceu-lhe uma ternura de tê-la assim abandonada, o cabelo atravessado sobre o rosto, a descobrir a linha do pescoço. Beijar-te. Tão quieta e inocente que sempre foste. E a dúvida um espigão que dói quando pisamos, para que voltaste. Não sabes. Mas tinhas de vir em urgências de tem de ser.
Os pais tinham fechado a casa da aldeia mal lhe chegou a idade de estudar. Na escola nova os rapazes de soslaio, “patêgo”. A mãe em casa, tu és bom de bola, vais ver, marcas golos e logo esquecem. E foi mais ou menos o que aconteceu, os amigos recentes a chamá-lo da entrada do prédio, Afonso. A princípio, voltavam os três, em férias pontuais. A mãe, olhos de pássaro, a alargar sorrisos para a vizinhança em gorjeios de, só aqui respiro, enquanto o pai e ele amontoavam um nunca de bagagens no hall de entrada, mil olhos de criança a espreitar-lhes os movimentos. E depois que crescera, as intermitências de, não vou, preciso estudar; ou, tenho umas coisas para fazer, agora não posso. E as coisas por fazer às vezes eras já tu Mariana. E outras, o meu receio de. E não vinha. Adiava. Mas não. Não te comparei com a saia de canudos. As pessoas não se comparam. É certo, procurei em ti um olhar que não sei dizer. Que procuro ainda. E quem sabe onde mora. Se mora. O que podes temer de raparigas que hoje são velhas, Mariana. Sou eu a procurar-me ainda. Como fui. Um homem leva vida a entender-se com a infância. Que quando ali, apenas vive.
Pensou no encontro do dia anterior. A menina Cidália, os agudos da juventude reclinados em chaise longue, mantinha ainda uma certa aristocracia juvenil nos gestos pesados. E na devastação do rosto, os olhos verdes despediam as mesmas centelhas douradas, restos da rapariga que conhecera, toda frescura. Ouviu o primeiro piado. Breve. Medroso. Cinco horas, anotou.
Escrever-te, Lu. Trazer-te para fora de mim. A apareceres na tua vez de ser. Inteira e intensa, ao sol da memória que me escorraça. Tu. A nasceres de arabescos numa folha. A seiva das palavras a insuflar-te o ar e o sangue, gestos, respirações pelos ângulos de ti, uma alma que te não cabe nos olhos, se alonga pelo corpo e, meu deus, se mistura nos teus tornozelos finos a encaminhar-te os passos. A Mariana, em que pensas? E eu presa tua, atado na parte da alma que trazes nos tornozelos; a disfarçar sorrisos, no artigo de amanhã, tenho uma pesquisa em meio e falta-me muito trabalho. E tu ajoelhada, a levantares o rosto no teu sorriso triste de atar as sandálias – tens um sorriso para cada momento – Não existo.
Certa noite divagante, a impertinência do João, olhos de fixidez bêbeda, a Mariana é o teu sonho realidade? Ou há um sonho-sonho? E a mentira pronta, a afugentar-te de manso, mão esquerda que atira longe o incómodo de uma mosca, não sonho; a Mariana é a minha realidade. E a ver-te de novo, pendurada no inóquo rebordo de um copo, o sorriso amargo, não existo.

(continua)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

As Raparigas

Tanto que a velhice se esforça para viver. Tanto. Quem sabe se não paga a pena. Dei por mim nesta cegarrega do pensamento depois de ter vindo da rua, que eu não sou nada destas coisas. Cheguei das compras e o saco pesava-me a vida. O Afonsinho! O Afonsinho da dona Aldegundes! Um garoto miúdo, morenito, que eu e a Belmira víamos na loja, se encostava quase a nós e enchíamos de beijos de azougue. Que nos mirava calado, corpo de acólito em missa, a transbordar atenção.
A idade já me deslembra. A idade e o resto. O meu genro matreiro, está com a ti osguinha, não é? Vamos lá para a cama. E, em calhando, ontem, a ti osguinha visitou-me. Não. Eu é que a visito. Eu é que não sou capaz de passar sem ela.  
Quando, de exames na mão, a filha me renovou no médico, eu a lembrar os olhos dos doutores que mexiam nas máquinas; não sei o que tanto diziam a bichanar uns com os outros, mas davam-se ares de quem espreitava por aquelas traquitanas e me descobria a vida toda. Eu, olhos no chão, a contar quadradinhos pretos e brancos que me faziam doer a vista e o doutor da consulta a olhar os exames num quadrado com luz que os fazia clarinhos e o meu lado de dentro à mostra para quem quisesse, sem um trapinho a escondê-lo que nem a pele se enxerga. E ainda estou para saber como não escorregavam parede abaixo, que até parecia bruxedo segurarem-se sozinhitos. E quando já ia para aí no quadradinho trezentos preto, os brancos todos contados, fora os que estão debaixo dos móveis está bem de ver, que os das cadeiras não se safaram, ele para a filha, alheio de mim, a pensar que era surda ou estrangeira, ou sei lá, ela mata-se se continua assim. Tem que deixar de beber, o fígado aumentou-lhe para o dobro. E ando a matar-me. Não é que me queira matar, o que eu mato são os dias e as noites, que não os aguento a seco. A minha mãe já os matava. Um a um. E agora eu. Primeiro, a filha esvaziava-me as garrafas, mas com o tempo – o tempo que ensina muito e muito pesa -  desistiu. E vou adormecendo as horas e os minutos todos, até que se me acabem dentro do quarto. E fora o fígado que cresce e me dá que fazer e as garrafas que me estão na lembrança como um ar que se respire, sou normal. Como a minha mãe que Deus haja. Iguaizinhas, nós. Levanto-me morta de sede que não é de água. Depois de matá-la sou normal, faço a minha vidinha, ajudo em casa, vou à praça no cedinho,  todos ainda no sono.
 Hoje, entrei no mercado e tudo no lugar, ninguém diria que o passado me apanhasse assim à sorrelfa, pela fresca. Na entrada, empurrei as portas de vaivém, que nem sei porque lá estão, e um cheiro de fruta misturado com verduras deu-me logo volta ao estômago. As mesmas vendedoras com os mesmos jogos de sorte para venderem o de ontem e outros dias, como se de hoje. Dei um giro de reconhecimento e elas ainda na fase do um, dois, três experiência. Estremunhadas de pele, penas de almofada a ensarilhar pestanas, sorrisos mortos de sono em lábios de desábito a repuxar nos cantos. Esticavam um bocadinho o pescoço e  o pregão parecia um chiar de roldana com falta de óleo, dona Cidália olhe as verduras fresquinhas. E uma mão a passear fracamente pelo que julgo ser a cabeça das hortaliças mas não garanto, a experimentar gestos, deixa cá ver se este ainda funciona, ganhando confiança à medida do acerto, afinal está cá o jeito todo, não perdi nada de noite.  Numa ponta da banca, termos a fumegar café com leite e, na outra mão, bocados de pão embrulhados em guardanapos de papel; desligada da parceira que passeia sobre o verde, esta mão conduz-se sozinha e, sintonizada com a oferta, é servida, aponta-me, desconvencida, a pistola do pão dentado. Um dia aceito e quero ver com que cara ficam. 
 Decidi-me pela banca da Henriqueta. Por nada. Ou talvez porque ela, de boca cheia, dispensava fios de conversa. Enquanto apreçava um molho de espinafres a olhar-lhes a verdura, que isto de verdes engana tudo e às vezes são de há três quinze dias, com muita água benta. Dizia eu, que enquanto assim, se me abeirou um interesse antigo, a pedir recuos no tempo, a minha memória aos saltos para trás que nem um canguru, pim, pam, pum…. e antes que chegasse a algum lugar, é a menina Cidália, não é? E eu nessa altura não era ninguém por não ter um tempo a que pertencer, mas é claro que ele não sabia,  fiquei de boca aberta – calculo que de boca aberta – a dar rédea à memória, despacha-te, despacha-te. E podem ter sido os caracóis ainda loiros, ou o jeito dos olhos, ou mais a linha do queixo, Afonsinho!... e de repente eu não no mercado, na loja, saia aos canudos e cinto elástico, só porque foi isso que ele abraçou. E depois do abraço, não o Afonsinho mas um Afonso cheiroso, homem feito, barbado. E eu velha, a dar-lhe pelos sovacos. O meu saco no braço e ele um soslaio pesaroso, já não usa a balalaica… E quase me senti culpada de, estragou-se; passou de moda. E os olhos do Afonsinho regressados, em saudade de criança retomada, tão bonitas que vocês eram. Tão bonitas. Virou-me para a luz da rua e as portas de vaivém cumpriram,  nunca vi olhos como os seus, nem encontrei linha de pestanas mais perfeita. – e num carinho de admiração - Que bonitas são ainda. E não sei explicar, mas vieram-me as lágrimas e tudo. A mim. Que me aguento à bronca da bebida, que não chorei quando os netos nasceram, que no enxuto corri tanto mundo aos ziguezagues.
Ai Afonsinho, filho, como a vida era! Que a não saibas. Não sejas como os médicos que me leram os interiores. Que não desconfies como ganhei a saia dos canudos, não descubras nunca o desaperto do cinto elástico. Que tão cedo se é às vezes mulher, a repartir homem com quem não seria nunca de fazê-lo. 
Querias saber da Belmira. Mas a Belmira, meu anjo, conversamos depois, que tenho ainda de a ajeitar na memória. 
E a minha filha coitada, tão boa para mim, a estranhar-me o mutismo no sofá da sala, a televisão uma negrura de boca fechada, a mãe está bem? E eu com a Belmira na ideia, imagina tu bem como as coisas são, vi o Afonso da D. Aldegundes.
Pode que fosse do escuro da sala, mas tudo me pareceu que ela embatucou.  Nem um ai lhe ouvi. O tic-tac do relógio a matraquear segundos uns atrás dos outros que me davam fernicoques e a minha Lucinda parada que nem estátua de santo. E eu, ó filha diz alguma coisa, mas ela saiu sem palavra e fechou-se na cozinha.

(continua)

domingo, 14 de julho de 2013

As Raparigas

As crianças têm do mundo uma percepção que é só delas. Vêm os estudiosos e nomeiam-na:  sincretismo, realismo ingénuo, egocentrismo e outros ismos insignificantes. Juntos, não nos dão a forma como vêem a realidade. Nos olhos da infância, o supesar automático de todas as coisas mede-lhes a pulsação. Vêem sem esforço e, se as imagens desimportam, logo esvanecem. Des-existem. Velhice e juventude distinguem-nas por um todo de pormenores alinhados em prateleira breve que só elas observam,  desinteressadas das marcas tradicionais de cada idade, que não sabem avaliar. Buscam outros sinais. 
Era assim que ele sabia as duas raparigas que às sextas encontrava na mercearia. Atraía-o a ligeireza grácil dos seus movimentos e olhava-as a  imaginar-lhes os ossos leves e dançarinos ligados por elástico resistente como o da fisga que o tio lhe tinha feito. Eram novas no modo como viravam a cabeça para o chamado da taberna e dos homens; eram novas no jeito inconsciente de mãos a compor o decote e alargar os laços erguidos que o rematavam; mas, sobretudo, eram novas pelo brilho do olhar e a vida que lhes cabia nos sorrisos. Usavam uma delicadeza de dedos a rodar o cinto elástico na cintura, em contraste violento com o cansaço que alastrava das outras mulheres; e viravam-se num bailado de saia que vergastava o mundo átono das casadas, a morrer num cochicho de meia inveja, elas voltavam-se e as saias rodavam todas em canudinhos. Ele gostava delas e dos ademanes que traziam até à loja, o seu meio metro de altura perpendicular à inquietude das mãos que inauguravam gestos na asas da balalaica. Pacientes, aguardavam vez num aparte de sol e caracóis escuros. Tão bonitas as duas! Contudo, sem um perfume a antecipá-las, que o cheiro de sabão e lavagem era o que os tempos permitiam. Às vezes, em distracção, erguiam a balalaica vazia e punham-na debaixo do braço, as fitas do decote a prender no entrançado da palha. E ele, que lhes seguia gesto e passo, desejava estar dentro do cesto, escutar-lhes as conversas de risinhos curtos, sentir o cheiro do sabão a desprender da pele… quem sabe, ouvir-lhes o coração. Tão bonitas as duas! Mas uma delas, mais. Uma elegância animal e inconsciente a despedir, que ia dos olhos esverdeados ao vôo negro dos caracóis, privilégio da natureza a sobrevoar a condição. E, quando em casa, é mais bonita que a outra, não é mãe? A mãe num sorriso triste, é sim filho. Mesmo muito mais bonita. Tão bonita que uma vez um descapotável parou quando ela vinha estrada abaixo para o avio da semana. Saiu um senhor todo bem posto que pediu para falar com a mãe. Foram os dois lá a casa da senhora Maria Afonso e o senhor pediu-lhe se o deixava levá-la para o cinema. Queria filmá-la. Dizia que levava a velha e tudo. E ele entusiasmado, e ela foi? A mãe deixou? E o fatal da resposta, uma má vontade a empurrar o pacote de açúcar até à prateleira do fundo, não. E num desabafo minado de desânimo, não sei porquê. Até hoje, ser bonita só lhe valeu o pior. E ele, o pior é quê, mãe? Mas a mãe, tu não percebes, quando fores mais crescido a mãe explica-te. Mãe, ela não tem marido? E a voz da mãe veio vindo como se estivesse dando a mão à rapariga, tem sim filho; e tem uma filha pequena, quase do teu tamanho. E o pai que entrara entretanto, Nunca vi mulher mais bonita, mais trabalhadora nem mais maluca com os homens. E ele a imaginar que ela ficasse tonta como quando brincava de andar à roda até cair e ficava maluco de não se ter em pé, o que é maluca com os homens? O pai bem disposto, Olha o piolho…
Observou os gestos comedidos da mãe, o seu mundo expurgado de gargalhadas e risos, a pausa da voz a adormecê-lo…a mãe teria sido assim rapariga? Todas as mulheres que encontrava impunham-se-lhe com seus olhos de criança castigada; onde teriam deposto o vívido dos gestos, os olhos brilhantes, as mãos nervosas, o corpo de espiga a ondular...? E se os tivessem perdido?! Não entendia tamanha mudança. Mas sabia sem entender que aquela rapariga bonita era uma solteira por dentro. Que tudo nela era solteiro e juvenil. Tudo, menos a voz que, ao invés da pureza dos gestos, emergia meio rouca, num tom baixo e secreto, calma de lago quase inaudível.
Oh! Como desejava crescer e entender o tanto que todos deixavam por explicar.  Temia mesmo que a vida lhe fosse insuficiente.
(continua)

domingo, 7 de julho de 2013

O Luís

Dizemos e pensamos que a vida nos prende a ela por muito fio. Mas a verdade é que fomos feitos para viver. E gostá-la é uma inevitabilidade natural. Salvo excepções doentias ou mesmo insanas, compete-nos gostar de viver. E, quem sabe, a razão de nos ligarmos a umas pessoas e não a outras provém também da natureza, dado que se aceita existir uma química  a puxar-nos, em jeito de íman. Contudo, a relação que se constrói no tempo parece não encaixar nesses inevitáveis.
Conheci o Luís certa manhã de um Janeiro qualquer em que me calhou uma substituição no Sétimo A. Nesse tempo, não havia planos de aula; os professores substituíam-se uns aos outros e pronto. Eu tinha uma ideia vaga do currículo de sétimo. Entrei na sala e cerca de trinta alunos olhavam-me na expectativa de lhes permitir fazer o quisessem, olhos meio receosos, “deixa ver o que ela faz”. Então, lembrei-me que em Fevereiro havia o S. Valentim e comecei por contar a história do santo e do dia. Em seguida, expliquei – era o primeiro ano deles na nossa escola que antes não tinha terceiro ciclo – o que fazíamos na escola para o comemorar. Falei-lhes da importância de saber escrever e, sobretudo, de sabermos dizer às pessoas de quem gostamos, que gostamos delas. Por escrito. Como uma marca de vida de que nós e elas podemos precisar um dia; espécie de bóia salvadora. Conversámos um bocado sobre isso e todos reconheceram esquecimentos comuns: gostavam das mães mas esqueciam-se de lho dizer, tinham amigos preferidos sem nunca lhes terem dito que os preferiam, etc. Vimos também que é normal não andar a dizer que se gosta e que o gosto se nota em muito mais que nas palavras; todas as mães sabiam que eles as gostavam. Quando contei que no Dia de S. Valentim entregávamos as cartas que aparecessem na caixa do correio, exultaram. E logo se dispuseram à escrita. Certo foi que inauguraram uma liberdade que os mais velhos, a cabeça cheia de romance, raramente usavam. Escreveram à professora da primária, à catequista, a uma prima de outra escola, à madrinha, a um vizinho,… sei lá. Enquanto passeava entre as filas, notei-lhes o empenho entusiasmado. E, desde que entrei na sala, o Luís destacou-se. Atento, as minhas palavras a ganharem lugar dentro dele, o rosto a crepitar interesses até entender tudo. E então, vou escrever uma carta. E já sei para quem escrevo. Pediu uma folha de papel e apressou-se. Quando tocou, levei as cartas com a promessa de expor as mais bonitas na escola e de lhes dar uma cópia se fosse o caso. Mas os professores funcionam aos toques. E rapidamente mudam de uma coisa a outra. Nesse dia, não li as cartas; não soube sequer dos destinatários. 
Entretanto, o Luís passava por mim no corredor, “já viu a minha carta?” e eu, “ainda não”. E a cena repetiu-se dias e dias e dias. Passaram semanas. E as cartas continuaram no armário. Até que, a data de S. Valentim a aproximar, resolvi ver o resultado da minha aula improvisada. Havia cartas muito bonitas, mas a dele ainda hoje me deixa uma ternura nas mãos – fiz uma cópia para mim. Começa, “Meu querido ratinho”. E segue curta e comovente. No final,  a assinatura, “o teu padrinho”. Quando me abordou de novo e respondi, sim, parou e fez um sorriso de orelha a orelha, gostou? E eu que sim. E ele, é que a minha irmã foi sua aluna e já tem uma bebé. E com uma ponta de orgulho na voz, sou o padrinho. A carta é para ela. Então, combinámos que eu fotocopiava a carta e, no dia de S. Valentim, a daria à irmã. Expliquei-lhe que, quem sabe, a afilhada gostasse de a ter quando já soubesse ler. Talvez a fosse olhar quando se lembrasse dele. No dia seguinte, dei-lhe a fotocópia e fechei o assunto.
Já a Primavera ia em meio, o Luís veio ter comigo, professora, espere um bocadinho que quero-lhe dizer uma coisa. Treze anos altos e inocentes. Treze anos tão bonitos como não pode haver mais. E na pureza que o caracterizava, Olhe, é só para lhe dizer que a minha irmã gostou tanto que mandou fazer um quadro com a carta e pendurou-o no quarto da menina - e depois de um sorriso mútuo e silencioso - Ela até chorou. E separámo-nos porque um toque nos mandava em direcções opostas. 
A carta do Luís, que nesse ano foi exposta no átrio da escola, serviu-nos depois para ler ao terceiro ciclo; exemplificava o amor que não se dedica apenas a namoradas e afins. Quando chegava a vez da turma dele, os colegas batiam-lhe palmas e subia-lhe ao rosto uma timidez vermelha. O Luís, ao contrário da irmã, não era um bom aluno e frequentou um curso profissional. Vivia não muito longe de mim e, por vezes, enquanto a afilhada coube no carrinho de bebé, enveredava pela minha rua de propósito. A mostrar-ma. E ficávamos os dois a desfiar  pormenores até a garota se insurgir porque o  passeio parado.
Na escola, sempre nos juntámos uns bocadinhos de nada para um bom dia ou boa tarde. E muita vez o seu sorriso limpo me vestiu e deu lugar. O Luís era puro de coração e mente.
No último ano via-o amiúde, tinha-se empregado no talho do super. Atrás do balcão, o mesmo sorriso a fazer-me esquecer nuvens e contratempos. Era feliz, creio. Com a sabedoria dos puros de coração. Às vezes, abeirava-me  só por ele. Fazia-me bem olhá-lo, era um rio a correr mansamente, descansava-me o pensamento.
Na semana passada, foi ver a moto 4 de um amigo. Na garagem. E a morte pegou-o ali mesmo. Num repente de  experimentar. Foi uma semana atabalhoada para mim. Muito cheia de tudo. Mas talvez Deus haja, que ainda deu para me despedir. É só um corpo. Sei que é só um corpo. Mas era nele que eu encontrava o Luís. E era com ele que o sorriso existia. Um sorriso tão bonito como não há.
E, contudo, o que ficou a doer mais foi o pedido rouco de uma mulher loura, abraçada numa caixa de madeira, as mãos a desenharem afagos sobre o verniz, “só mais um bocadinho, por favor dêem-me só mais um bocadinho com ele”. E a este pedido desligado da torrina de sol e que engoliu tudo, que foi baixo mas soou como um grito, a multidão fez-se sôfrega, contraiu em proximidade, enquanto eu, ao invés, recuava involuntária, saía. Desnorteada do tanto que se sofre sem que a morte nos tome consigo. Nos queira.
A ausência dos puros de coração é um buraco grande demais.