domingo, 29 de abril de 2018

Convergências de acaso


Gosto de igrejas. Admiro-as desde o exterior, mas é no interior que existo, penitente. O ambiente de silêncio propicia o recolhimento, ainda que nas invernias se confunda com desacerto e vazio de friúra que afugenta os mais afoitos. Ignoro se Deus as habita sempre ou apenas esvoaça de longe a longe pelos domínios que o convénio dos homens Lhe determina, a Ele que, por essência, é pura indeterminação. Talvez a candura de Alberto Caeiro O resuma cantando em brevidade lógica o Tudo que Deus é. “Mas se Deus é as árvores e as flores/ e os montes e o luar e o sol,/Para que lhe chamo eu Deus?/ Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar/”. 
Ora, supondo mesmo que tal ser supremo as não habite ou des-exista, fica-nos o sonho, o desejo místico dessa omnipresença palpitando em cada ogiva, poalha coada com a luz que entra por janelas altaneiras; olhar que nos mira dos frisos das colunas,  haste volteando nos arcos de volta perfeita. E a certeza de que o temor dos homens Lhe outorgou as mais belas criações dos artistas de época. Do pequeno mundo que conheço, em nenhum lugar como em Itália as igrejas devieram repositórios de arte. Só ali o povo oblitera o lugar e, num  deslumbramento, se excede em retumbância exclamativa.
Corria o calor da tarde em Ravena quando passámos perto de uma igreja e ao chamado de órgão mavioso, entrámos. Decorria talvez um ensaio para concerto e por longo tempo nos subtraímos ao calor da rua, presos à sincronia de dedos e teclas. Ali, acendi uma vela e copiei um propositado poema.
Ora, foi  por gostar de igrejas que na Calle Alcalá entrei na Iglésia de las Calatravas. Sem imaginar que, no interior, decorria o ensaio do Concierto Davidson Chorale and Orchestra from Augusta, Georgia.  Eram teens entre os quinze e os dezasseis, dezassete anos. Todos made in USA.  Ensaiavam o que nos pareceram cânticos espirituais negros. Com solos lindíssimos e respostas de coro em uníssono. Jovens a tocar e cantar com mestria angelical. Ficámos até ao fim. Nos breves intervalos, os garotos voltavam à idade, brincavam, conversavam, dançavam com o inato donaire da mestiçagem. E logo o que julguei ser uma professora de canto, ou talvez a maestrina que os dirigia, avisou brandamente, “é o nosso último concerto, espero que honrem esta cidade como às outras por onde passámos. Vamos deixar nas pessoas boa impressão, ok?”. E tudo acalmou.  Quando o ensaio terminou e os garotos passaram por nós, deitaram-nos soslaios sorridentes por entre passos de dança, o corpo pletórico e irrequieto, cansado de tanto respeito no altar. Um dos garotos olhou-me, cumprimentou e levou a mão ao boné. Uma simpatia. A sobrepôr, ficou-nos o cristal puro das vozes femininas que, no meio de conversas e sussurros, já de saída, trauteavam algumas notas soltas, agudos que eram flores a altear na igreja e desabrochavam até à cúpula.   
Há acasos felizes.                           

sábado, 28 de abril de 2018

Museu Thyssen


O museu Thyssen-Bornemisza  percorre-se de gosto. Visita cosida a linha de vagares,  as primeiras três ou quatro horas  passam  quase inadvertidas.  Nem daríamos por elas, não fora as pernas queixosas do carrêgo e  da proximidade ao ponto morto, num pára-arranca em contínuo gaguejar.  Faltam-lhe as obras espectaculares do Reina Sofia, mas cumpre em requinte. O turista julga que entra para uma refeição ligeira e depara com mesa de palácio posta a preceito, rendas de Veneza, talheres de prata, limoges e cristais a emoldurar iguarias inestimáveis em suplante de sabores,  qual de paladar mais delicado. O folheto recebe-nos também em português, pormenor tanto mais agradável quanto estranho nos museus de Madrid. Na capa, a enigmática Giovanna de Ghirlandaio, uma seráfica e aprumadíssima jovem, perfil  clean e penteado à la mode, num arranjo de arte capilar que lembra o uso de postiço em cabelo naturalmente ondulado; que podia mesmo ser enfeite do nosso tempo em cerimónia festiva. Havendo interesse na cronologia pictórica, podemos percorrer os vários períodos e começar pela pintura antiga dos mestres italianos, passando depois ao Renascimento e Barroco. E a arte do retrato manifesta-se em todo o esplendor renascentista, ali brilham os Caravaggio, Carpaccio e mais. Sente a gente que os olhos ficam reféns das telas, desligados de nomes, técnicas ou períodos. Não conhecem, são olhos que sentem. Fruem.  Se houvera tempo, então sim, talvez eles se desviassem da grata contemplação para comparar, distinguir, catalogar. E depois vêm os impressionistas, pós impressionistas e expressionistas, todos de elevado quilate e fino gosto, ímans do olhar , quais medusas sedutoras e ondulantes.  Prendeu-me Corot e o “Banho de Diana”; mas ainda Degas, Van Gogh, Gauguin, Renoir, Monet e tantos mais a que não quero ser infiel e para que me falta memória. A finalizar a viagem, a pintura do século XX onde cabem cubismo, abstraccionismo, surrealismo, pop arte... não que meus olhos distinguissem estilos, empenhados que estavam na fruição. Mas por tê-los lido antes e conhecer mesmo alguns, Kandinsky, Dali, Kirchner, Edward Hopper. E outros que ignorava e me enriquecem o imaginário despidos de nome. O que esta gente fez por mim não tem paga. Talvez a arte seja isso, o imenso trabalho de mostrar a centelha divina que nos habita ajudando outros a entender-se nela, fazendo-nos inclusivos. E desse entendimento resultará a misteriosa pulsação da vida. Estamos todos ligados.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

25 de Abril


Quando o 25 de Abril de 1974 aconteceu – dia de memorável  acontecer – tinha dezanove anos de ignorância garantida.  De política pouco sabia, não ia além do temor à polícia política, que podia morar em qualquer um, e do cuidado em não falar mal de Salazar, coisa que nem eu calculava por que haveria de fazer. Era o nosso Presidente do Conselho e, logo, boníssima pessoa. Foi assim que cresci, imersa num mundo que não existia e onde as pessoas honravam os cargos com a sua excelência pessoal ungida de santidade. De outro modo, não seriam escolhidas. Falar ou pensar mal de Salazar jamais me ocorreria e conjecturava com os meus botões que só o mau feitio de meu pai era capaz do estado odiento que lhe sobrevinha a desoras na amargura dos dias, “pendurado de cabeça para baixo e o cabelo corto à pedrada, ainda era pouco”. E outras afirmações do género que minha mãe tentava abafar,  olhos arregalados numa inquietação desconhecida, “homem fala mais baixo, não digas heresias, olha que alguém te ouve; lembra-te dos filhos”. E meu pai sem lhe fazer caso, a  altear a revolta e disparando perdigotos, “havia de o deixar lá a morrer à míngua, o sangue a pingar gota a gota; ele e mais a corja toda, o Tomás e os outros”; e abarcava com um gesto largo da mão todo um mundo de malfeitores. E eu que não podia calá-lo sem levar um sopapo que me deitasse por terra, julgava-o um ser sem coração e tinha até vergonha de tamanha crueldade dirigida a gente tão imaculada e que, com denodo imparável,  lutava pelo nosso bem estar.
E em Abril de setenta e quatro fez-se luz na minha alma de trevas. País velho e com alma juvenil, crepitante. Ou terei sido eu mesma que nasci para a compreensão extensa da liberdade do povo. Finalmente, entendi meu pai.
Sem a saber ou sequer lhe conhecer a obra, era com Sophia que estava (as almas são deste quilate, ficam gémeas sem pedir licença).  E é ainda na permanência dos seus versos de cabeça erguida que se sustém o Abril do povo português. O, “ Abril, Sempre!”

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitámos a substância do tempo”.

domingo, 22 de abril de 2018

Marcadores de Página


Relendo, até parece apenas um passeio virado à cultura já feita e pronta ao disfrute.  Mas o bom de ele haver foi a miscelânea ancorada na boa companhia.  Madrid é lugar a que volto também pelos laços, aqueles fios que nos atam uns aos outros e não gostamos de perder. Lembro a casa no centro da cidade e ainda sei o cansaço das pernas em cada degrau; a porta de então, ontem sempre aberta e hoje cerrada; o largo para onde davam as janelinhas de água furtada e que mirava com olhos de pardal de telhado; a vizinhança cosmopolita  do hotel de que éramos vizinhos e foi recauchutado. Não seremos os mesmos. Mas o que nos unia é chão descalço a guiar-nos a mudança. E aquela amizade juvenil, vinda do fundo dos tempos. Em palpação mental depois de trinta anos. Quatro tolos a procurar no rosto uns dos outros as linhas de entendimento que a alma sente. E as fotos, mostra dos anos e das gentes que nos habitam. E o brinde a nós e a todos os que gostam de nós. De permeio, o passado dissemelhante do futuro extenso que, sem haver, nos existia nesse tempo de passeios descomprometidos.  Tão felizes que nós éramos nos interstícios  das dificuldades que ensombravam cada um. E que bom o reencontro. Que bom constatar que Xavi mantinha disponível para nós a mesma ternura delicada. Xavi, que continua simples e ele, apesar do que foi ganhando com os anos. Que sofre de cirrose de grau um e nunca bebeu, continua a jogar futebol três vezes por semana e tem três filhos lindos e dieta apertadíssima. Mas a ternura calma dos olhos. É nela que somos aceites. E logo o  resto desimporta.
E depois houve a serra (não sei qual) e o ar rarefeito a infiltrar, um friozinho insidioso em dia soalheiro. E a neve gelada nos caminhos, mais de um metro de altura. E os incríveis esquiadores que desciam “a bola do mundo” à velocidade da luz.  Nós cá em baixo numa angústia, ai se caem; ai se vêm por aí abaixo de escantilhão, descomandados, e esborracham no alcatrão; ai se. E não aguentámos, dirigimo-nos à pista de aprendizagem ou morríamos aflitos do coração por aquelas paragens. Filhas de minha mãe jamais seriam capazes de se armar de esquis e andar para ali ao frio, sabe Deus a quantos quilómetros por hora. E isto, vejam bem, depois de milhentas quedas. Que bem os observámos aos trambolhões na pista de aprendizagem. Contudo, bateu-nos um suave de ternura, olhos a acompanhar aquele garoto que cambaleava estrada fora.  Dois minúsculos anos,  botas de esquiar enfiadas, o pai a segurá-lo pela mão e por vezes a içá-lo.  Sob o ombro do homem, um par de esquis pequeninos, em pose de brinquedo imperturbável, espreitavam do saco.
Oh! E houve os petiscos madrilenos. Que sopa e segundo comemos em casa e só transigimos na paella. E os deliciosos folhados das pastelarias Viena que Deus as conserve e tinham certo ar do Majestic mas sem a majestade, o que é motivo de agrado, não quadramos com a realeza. Mantêm idêntico traço de época, amarelos e espelhos. E tal. Deus dê vida longa e feliz a quem ali nos levou. Que se os deuses passeiam pela terra, de certeza vão lá lanchar.
E El Rastro, que é só uma feira de rua semanal. Mas seria a nossa boutique se por ali vivêssemos. Em ruas pedonais e infestadas de portugueses, passeavam sem cansar a vista, espanholas alegres e buliçosas ao lado de espanhóis pachorrentos. E por lá se mantêm.
E Olé.

domingo, 15 de abril de 2018

Museu Thyssen


No Paseo de Prado, ou em proximidade quase contígua, encontram-se os museus mais importantes de Madrid, Prado, Reina Sofia, Thyssen.  A disposição  lembra a berlinense Ilha dos Museus, o turista entra num e logo fica de olho no seguinte. Será esse o propósito de os terem assim,  quase de mãos dadas.
            Logo na  entrada, o Thyssen surpreeende.  O colorido laranja forte, escolhido pela garrida alma espanhola de “Tita”, a baronesa von Thyssen, é efusivo “bien venidos”. No primeiro átrio, duas pinturas colossais de suas majestades os reis de Espanha, Sofia e Juan Carlos. Lado a lado. Não recordo se pintados pela mesma mão. Estão o que são ou foram: reis. Em cores escuras e sóbrias, o rei que todas as espanholas gabavam, “o nosso rei é uma estampa, a largura de ombros, o aprumo, a altura...e a voz, e a ponderação, um rei mui guapo, sem igual”. Após anos e as tropelias que se sabem (outras haverá que não se conhecem), tornou-se quem lá está, um rei para actos oficiais e olhar meio desiludido de si,  sério e de um cinzentismo que impressiona, ainda que pintado em matizes de azul. Ela, não. Favorece-a a simpatia espanhola. Em Sofia, pintada em tons pastel, fundo claro e traje de gala ainda de maior claridade, brilha a bondade que não sei se tem, um certo jeito etéreo que sempre lhe pertenceu por ser loira, miúda, magra e sorridente, gracilmente  sublinhado pelo uso de brocados e finas rendas. É como se quem a pintou tenha querido dar à figura elegante o brilho da bondade graciosa, e assim tenha criado a imagem de beleza terna e incorruptível que não se imagina que seja grega, mas é. Olhando os dois, não podemos deixar de sorrir. Na vida como na parede, puseram-nos lado a lado. Tão diferentes. Um, demasiado humano; outro, uma divindade frágil. Ou flor impenetrável.
Mais à frente, os dois Barões  von Thyssen. Ela, esguia, jovem e comum, o semblante extrovertido e sorridente da Espanha salerosa. O sorriso parece convidar à alegria luxuriante que não quadra em baronesas anteriores, mas decerto agradou ao mecenas-barão. Ele, mais velho e pausado, mas com presença. Diria que  mui guapo quando jovem. De certeza muito rico. Possuir a maior colecção privada do mundo – fora a da rainha no UK  - não denota apenas gosto pela arte. O barão afirmava coleccionar quadros, vinhos e mulheres. Tudo em bom. Parece que os quadros lhe davam menos trabalho; ou seriam amor mais fiável, porque comprou muitos. Dos vinhos, acredito que não bebesse qualquer zurrapa. E mulheres teve cinco (fora as inconfidências que o google não revela e nem sabe).  Mas os quadros, sobretudo dele e do pai, mas até do avô,  são, no seu conjunto, aquisições sem valor concreto. Números acima da centena de milhar desmedem, não são humanamente imagináveis em quantidades redondas.
Pondo de parte a actual guerrilha da baronesa com o Estado espanhol, temos de reconhecer que houve ali dedo de fino gosto na compra das obras. Sobretudo nas aquisições do Barão que refez a colecção paterna – a herança obrigara-o a repartir obras com os irmãos e a colecção perdeu mais de quatrocentos quadros. E, como o gosto artístico do progenitor contemplava a pintura até ao século XVIII, dedicou-se a colmatar o hiato e adquiriu as que considerou representativas entre esse período e a actualidade.
Desinteressa-me de onde veio tanto poder de compra ao colecionador. Nem quero investigar se do tráfico de armas, se do fabrico, se. E a Carmen Cervera, a “Tita” do senhor barão e demais gente, não lhe sei o carácter. Mas agradeço aos dois e ao que os uniu. Porque depois da Holanda negar ao barão o edifício para albergar as obras - já não cabiam no seu museu privado em Lugano - só o casamento de ambos propiciou que viessem parar a Espanha. Portanto, nada de pensamentos malévolos. Ainda bem que casaram. Tal efeméride tornou possível  - a muita e vária gente - o desafogo da vista e da alma.  E pior estará quem não lhe sente a falta.
(cont)

sábado, 14 de abril de 2018

Um Museu com Nome de Rainha


       Quanto gostamos de pertencer a um lugar!  Não sabemos imaginar-nos apátridas. Haver terra de pertença é a certeza de um chão sob os pés, faz-nos. No estrangeiro, qualquer linguajar português nos transporta empaticamente para a fonte,  ainda que se nos apresente um troglodita disfarçado. É português e basta. Mas assistir ao nome de Fernando Pessoa a encimar a exposição do museu Reina Sofia, é garantia de orgulho. No meu caso, orgulho à chuva. Que é orgulho perene ser irmã de língua de tal poeta, viver debaixo do mesmo tecto de estrelas, respirar a sua cidade. E, de apetite, reler e tresler  versos e prosa. A mostra portuguesa tinha por título uma frase de Pessoa, “Toda a Arte é uma forma de literatura”, e lá estão alguns - poucos – dos seus versos; e a pintura - mostra também curta – de Almada com aquela assinatura de um d cuja haste se prolonga indefinida, e nós benévolos e a sorrir de cabeça que a um artista tudo se desculpa, esqueceu-se, foi por ali fora com o pincel e pronto. E o genial Amadeo Sousa Cardoso. E o casal Delauney mais Eduardo Viana. E há, é claro, o retrato de Pessoa pintado por Almada. Aquele grande retrato onde qualquer português de boa cepa se sente içado ao cume, ensimesmando em contemplação de conjunto e não apenas no poeta. Está ali o que temos de melhor relativo à época. Contudo, pareceu-me pobre, tive alguma vergonha de o nosso “tudo” ser tão pouco prolífico. Por mim, estaria Amadeo inteiro, Almada quase todo, Eduardo Viana muito mais. E ainda não tinha visto o resto. Porque, no labirinto que é o museu que foi hospital, há muito a ver, de boa e diversa arte.
            Talvez por influência do dia, ficou-me um museu escuro e de percurso meio estranho, supondo eu que o facto de haver um claustro interior com um bonito jardim dificulta e até impossibilita o caminho linear. E as históricas arcadas, agora transformadas em janelas de volta perfeita, que  coam a luz exterior e o tornam fresco, emprestam ao ambiente certo tom melancólico que me pareceu mais conventual que dado à exposição de pintura. E no entanto o valor pictórico que encerra não é definível. Ali estão os quadros de Picasso e o grito pardo e animal de Guernica, que não há escuridão mais sanguinolenta na história da pintura; está Miró e o seu mundo; Braque que tanto me suspende; Dali e a sua irreverência que avança pelo inconsciente. E quantos outros.
Reina Sofia visto de uma só vez desalinha os sentidos, boicota o entendimento. O acto contemplativo requer tempo. E tudo que existe anseia que lhe demos o que a roda dos dias mais nos vai tirando.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Na Fundação MAPFRE


Ed Van der Elsken é o mais importante fotógrafo holandês do século XX. Assim. Sem mas nem mas. E a retrospectiva do seu trabalho é agradável de ver. Na fundação se expõem fotos, filmes, livros. E a vida pessoal do fotógrafo, que, sem exaustão, quase delicadamente, vamos surpreendendo pelo mundo. Salientam-se as fotos das suas musas, que foram variando – suponho que teria vivido com cada uma pelo menos aos bocadinhos.
 Lá está a moda e seus apaniguados. E os anos sessenta em Paris e Tóquio estão tão bem que admiramos as cabeçorras das jovens fotografadas como se tivessem defeito. Mas não. É apenas ripanço de cabelo (estão lá os carramiços e tudo) encimado por lacinhos hoje fora de época e sobrevoado por muita laca. Um ninho de vespas. Portanto. E há aquelas três bonecas de mini saia, avançando perna no cruzar da rua. Divertidas e cabeçudas. Como compete. Tudo na objectiva de Ed surpreende, mesmo que aceitemos casos de surpresa com ensaio. Há uma sequência de fotos de uma jovem japonesa, muito séria, corpo elegante, nem bonita nem feia, fixada em algum percurso específico que só ela sabe. E que – parece –, não deu pela objectiva. O efeito surpresa empresta a alguns fotografados certo ar zombeteiro, um desafio no olhar, estou aqui, interesso-lhe e tu não. E há droga. E álcool. E olhos que não enganam. E os mafiosos que sem esforço se adivinham. E as mulheres de vida alegre, como dizem nuestros hermanos. Vida alegre! Não podiam encontrar expressão mais malvada. É que não há razão que a sustente. Mas enfim. Avante.
E há filmes. Alguns no propósito de chocar. Como aquele com a sua primeira musa, um abuso de asas de corvo no risco dos olhos. Ela e o parceiro enchem a tela, um acto de amor descarado, vertical e divertido, cheinho de solavancos. E só a juventude dos dois permite que não seja boçal demais. E, em fundo, constante, a voz e o riso dela a contar o espírito há muito enterrado e que, então, os animava. E há África de que ninguém fala mas existe, cheia de maldade para com as mulheres, e era lugar das preferências fotográficas de Ed. E Tóquio com sua carga de exotismo e contradição, onde não se cansou de voltar.
            No final, a mensagem de despedida ao mundo e à família. E a coragem de se filmar com doença terminal. Não o vemos morrer perante a câmara. Mas basta olhar e sabemos o que ele sabe:  falta pouco.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Museu Sorolla


De pincelada larga e vivaz, Sorolla é pintor de fino recorte, gente que não chega a descer das sedas mesmo quando parece que sim. Os seus retratos femininos deslumbram e não apenas pela pintura, há nas modelos certo ar gourmet que entontece. É certo que a mostra em exposição se subordinava ao título "Sorolla e a Moda", o que afastou telas como a do pescador morto e que titulou , "ainda dizem que o peixe é caro". 
O pintor tendia para a beleza qual flor para a luz, mulher feia ou assim-assim jamais o levaria. Talvez um dos poucos homens que gostava e sabia comprar vestuário e calçado feminino. Em solícita e amorosa carta a Clotilde, sua esposa (exposta no museu), pede as medidas para compra de roupas que viu e lhe ficarão muito bem (um elogio maior em letra esquinada a tinta permanente de qualidade, que ainda não debotou); refere ainda a aquisição de chapéu para uma das filhas e sustém que são compras a seu jeito. E que gosta e lhe   dá prazer alindar as suas mulheres.
Deparar a gente com um Sorolla pode ser grande sorte. Mas também um azar. E se ele era um chatíssimo senhor, daqueles de, veste lá o vestido que te comprei e põe os brincos x ou y; e não esqueças, calça os sapatos z. E agora repousa nessa cadeira e olha-me desta maneira, não, assim não, que te faz uma ruga na testa e te dá um ar zangado; e põe o braço assim, levanta só um pouquinho da saia a mostrar o pezito. E agora fica quietinha para fazer o esboço. E etc.
Sim, que aquele deus grego – era bonito até fartar – casou com uma mulher linda que pintou em mil posições e feitios. E duas filhas bonitas que também eternizou em tela. Contudo, uma das jovens é portadora de inquietante tristeza. Não há quadro onde a melancolia do olhar não nos perturbe. Li que teve tuberculose. Talvez lhe tenha ficado desse encontro prematuro com a morte, há embates que nos mudam o semblante. Apetece pegar-lhe nas mãos e olhá-la por dentro. Sem querer que fale ou se abra. Basta deixar correr a melancolia que traz presa no olhar.
Mas há ainda a casa. Um solar airoso, pensado em beleza  requebrada. E de duas casas se fez uma. Obras e mais obras que o pintor concebeu.   Rasgo de janelas mirando o primor do jardim onde os buxos convivem com as fontes e a pérgula e as flores são felizes. O conjunto é tão bonito e pueril que parecemos mergulhar  num filme ou história de princesas. Tudo é muito e demais.  Pode ser ilacção ilusória, mas Sorolla denota certo horror à pobreza de onde saiu, uma obstinada fuga ao submundo e que condensa na obsessão pela harmonia, nos gostos caros, na exigência da justa proporção.
E pode que nada do que penso seja verdade.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Museu Sorolla


A maioria das pessoas trabalha para se sustentar. Não cria fortuna nem sobe na escala social, o trabalho ampara-lhes a condição de berço. Depois, há os espertos que amarinham agarrados à argúcia negocial, alturas de onde também podem cair, fatídicos.  E há os artistas. Os artistas que nos habituamos a pensar sem dinheiro, pobres, vivendo em mansardas e a comer um dia em cada dois. Pela sua arte, suam as estopinhas. Mas o reconhecimento atrasa e chega na tumba. Ou nem se vislumbra. Nem sempre. E Sorolla é radiosa excepção. Órfão, criado por uma tia casada com um serralheiro, conseguiu com a pintura o que costuma vir de berço: fortuna, posição, reconhecimento. Pintor solar. Diz-se que impressionista e cultor do luminismo. A luz é o tema comum a todo o seu trabalho. A luz e a beleza que não dispensa, é um esteta que prefere a fuga à realidade. Quem olha o quadro “As pescadoras” ou o da pescadora com o filho, repara que o trabalho na pesca não  deixa o rosto limpo nem usa alvas roupas inundadas de claridade. As pescadoras seriam antes bem morenas e de semblante vincado por desgostos e aflições sucessivos, angustiadas pelos seus homens tanta vez perdidos em águas revoltas. É como se o pintor nos diga que a luz muda tudo e as mulheres do povo se tornam leves e outras por efeito dela.
Deparamos com uma pintura prazenteira e fonte de luz. De forte vitalidade. Ali,  mar e figura feminina predominam. As mulheres surgem bonitas, elegância ataviada e, bastas vezes,  acintosamente coquete. Na água, predominam os nus infantis como se tenha querido passar para a tela o prazer sem mácula do banho de mar. Ou tenha ido mais além na compreensão do que os banhos de mar encerram: a reinvenção da inocência. E há qualquer coisa de telúrico e profuso naquela água que escorre pelos corpos e é tinta. Aquela água falsa e luminosa que nos enraíza, seiva correndo por dentro do observador. E somos aquele calcanhar, um certo dorso molhado, os gémeos brilhantes daquela perna, o sexo do garoto que retira  o cavalo das águas...
(cont)

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Introito


Dizemos que em férias não temos horas. Mas não é apenas isso. Férias são mudança absoluta, espírito e tempo diferentes. Não há os dias da semana. São outros dias. Sem semana. Se alguém diz, “ segunda feira”, soa a falso, o dia que vivemos não corresponde a uma segunda feira (feria) e é estranho a toda a “feria” semanal. Os dias não têm correspondência, são eles apenas, originais sem réplica.
 Em férias acordamos seráficos, expurgados de deveres. Leves. O prazer da novidade está ali, ao alcance da mão. Concretizá-lo é brandura de poder. Deuses de nós mesmos, gozamos o que amorosamente esperámos e preparámos, aroma tão  egocêntrico como humano. Parafraseando Mircea Eliade, inscrevemos no tempo normal uma outra espécie de tempo, abertos à descontinuidade e suas valências. Outrora, em épocas de veraneio, apreciei férias tradicionais. Hoje, prefiro os dias obscuros e sem razão e  demoro-me a estender vagares no corre corre das multidões. Ponteiro que gira ao contrário, renasço nesses dias sem nome e que sempre me são estreitos, refeições preguiçosas, um chá em lugar remansoso. Alongo-me conversando, estranha ao incómodo de minutos e horas em catadupa e abstraio na lufa-lufa do mundo que não dá por mim. Vivo a mais imperfeita perfeição.
E tudo isto é nada do que sinto. Não há coisa mais incompleta que ver museus em três horas,  ar contrito e culposo soslaiando quadros, o corpo numa queixa, não posso mais, desiste. Dizia Cesário, “Ah,  se  não morresse nunca/ e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”.  E digo eu, “ah, eu seria a mais rica mulher se, mortal e pobre, vivesse à beira de um museu repleto de obras intemporais". Havia de dar a todas a mesma atenção, extasiava no mais breve rasto de pincel e, muda e queda,  as amaria cegamente, a alma ajoelhada em oração grata.