quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Querido Deus

Bem sabes que as minhas dúvidas são perenes e que as minhas diminutas certezas abrangem um nico de ideias, e ainda menos de pessoas. Faz o favor de não te irritares, não sou céptica em relação à humanidade, mas, reconhece, deixaste-nos incompletos em demasia. Pensando melhor: sou céptica em relação aos homens género masculino e às amizades sem género. Por mim, já sabes, não aposto em nenhumas destas categorias. E quero mas é que se lixem (gostei de escrever isto, calha bem). Vou rever-lhes as posições.
            Bom, e posto que para Ti há só eternidade, esta coisa de Ano Novo e Boas Entradas, não te serve.  Mas olha lá, como é que se pode – no mundo dos homens, claro -  desejar bom ano a alguém. De forma honesta, quero dizer.  Fora de fórmula e sem protocolo. Experimento escrever a frase e noto-a dissonante, um barulho de lata no meio da música. Leio alto e não conjuga. Não dá para acreditar em desejos de bom ano se forem de ano inteiro.  Nunca dá. Um ano é tanto tempo! (dantes os anos passavam sem dar conta e agora cruzam-me tão devagar que não os entendo). Pode não parecer, mas nesse interim de centos de dias,  acontece TUDO. São doze meses, cada um com 30 dias – pronto, há um com menos, mas sete têm mais um. Ora, 365 dias, a 24 horas cada, é uma conta bicuda. E por aí fora até aos milionésimos de segundo. Contudo, é de experiência, num átomo se nos esvai saúde, dinheiro, amores e outros imprescindíveis; ou nos esvaímos nós. Resultado: um ano é um amontoado de oportunidades para. Portanto, cautela com ele.
            Assim, é com pinças que entreabro as primeiras folhas  a cada ano de calendário: devagar,  com cuidado para não atrair as desgraças que estão por ali em revoltinhos, ensalganhadas com as coisas boas que, já se sabe, são frugais. E depois, podem pensar, se elas lá estão, vão sempre acontecer. Não, não. Os anos nascem com a prerrogativa da vida, são um bouquet de possibilidades que puxamos à existência. Aceito, abundam contingências e necessidades provenientes do acumular de vida onde o corpo se gastou (tudo nos marca),  genes que nos afundam, a barbárie de alguns erros... são as condições gargalo de garrafa. Se a vida é mais longa ou menos ágil o pólo da sorte, o possível afunila. Quem sabe esteja aí a causa do tempo a preguiçar, horas compridas inchadas de minutos que lagartam.
            Deus, eu só queria que 2016 fosse menos comprido.
            E a paz no mundo e isso?! Ora, há mais de mil anos que assobias para o lado queres o quê?! Deixei de acreditar.


PS: se não conseguires cortar no ano, podes cortar-me a mim. Estás à vontade.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Estrela de Natal

Agora sou criança. Criança de escola a fazer uma redacção das antigas. Porque quero. E posso. Sou quem me desejo e não me interessa se sou mesmo ou só finjo. Neste preciso momento estou “nas tintas” para a essência  - das coisas e minha -, que aliás não existe senão como ideia (a tralha que acumulamos, santo Deus!), jamais alguém viu uma essência por aí, lhe palpou a carne ou fez cócegas; a essência não cheira a nada e dela não se ouve um resmalhar. É um conceito, portanto. Onde não cabe a minha estrelinha brilhante. De Natal?...hummm...nem tanto. Diria que a minha estrela é de ano inteiro. Mas no Natal brilha mais e mais me interpela. Empurra-me. Cutuca-me. Faz-se até importuna. Mora tão dentro de mim como o Menino Jesus de Pessoa, mas não é de carregar no colo. E o nosso  términus é a morte. Curiosamente, eu que dou nomes palermas a tudo de que gosto, não lhe dei nome, vive tão comigo que prescindimos nomeação.  A minha estrelinha não nasceu da fractura de um sol cósmico, mas de um buraco humano. Isso mesmo, em cada homem há um buraco propositado, uma reentrância da alma inspirada nas covinhas da bochecha que algumas pessoas fazem a sorrir e onde Deus planta uma semente de estrela. Depois, mães, pais e outras pessoas tratam dela e ajudam-na a ser luz – toda a gente sabe que as estrelas não crescem, ganham brilho -. Sei que a minha estrela não é única no mundo senão para mim, mas também sei que é a única estrela que pertence aos homens e que a podem  tratar com os cuidados de um principezinho a olhar a sua flor e a varrer a cratera de um vulcão minúsculo. É uma coisa tão bonita, ter uma estrela cá dentro! Basicamente, o trabalho dela é brilhar nas outras pessoas; é assim mesmo que pertence, a minha está em mim e ilumina mais os outros. Faz-me vê-los. Inspira-me a dar o que gostam e precisam. Sussurra-me ideias para agradá-los. É por ela que os meses são menos compridos e os dias mais leves – vai dando palpites para este ou aquele aniversário, esta ou aquela pessoa que vi ou senti mais precisada de cuidado. Só assim os meus Natais valem a pena. Houve um tempo em que íamos as duas às compras de Natal e eram dias felizes esses em que procurava e levava para casa o que eu mesma gostaria de ter. Hoje não posso arriscar tal luxo e  servimo-nos de outras artes, cuidando de não as repetir em cada pessoa.  E o meu Natal é sempre muito tempo, o que, bem vistas as coisas, é uma grande sorte para mim. Vivo-o ponto a ponto, em cada gesto da caneta, no desenho das letras mais simples, em cada prescindir, os agrados pessoais a tombar de leve. Tenho verdadeira pena das pessoas que abafam a sua estrela. E de quem lhe desvia o brilho com cheques e contributos para gente que é um número, ficando fora da sua alegria grata, desperdício de sol que não lhes bate na alma. Também são necessários, sim. Mas dar é mais. Por incrível que pareça, a estrela rebrilha se haja troca e presença. Porque o agrado de dar  nasce na alegria de quem recebe e cada prenda se sustenta na reciprocidade: o que sentimos pelos outros e o nosso gesto desperta neles. Portanto, as prendinhas de Natal são encontros de bem querer. Sem este fundo de boa vontade, não há estrela que se aguente.

Bom Natal!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Conto de Natal

Os meus olhos devem ter assentido que continuou, é só uma boleiazinha, ele faz-lhe companhia e desce ali por Águas de Moura; depois lhe diz onde parar.- e numa espécie de ansiedade que não entendi – não se importa pois não? A despesa fica por conta da casa, deixe estar – acrescentou mal iniciei o gesto de puxar pela carteira. Pensei que seria bom ter companhia quase até casa e saiu-me um ora essa, traga lá a pessoa. Ele passeou-me olhos duvidosos e respondeu, já lá vai ter ao carro, descanse. Saí e, mal liguei o motor, um vulto nasceu das sombras e entrou. Olhei-o curioso. A meu lado estava um homem talvez mais novo que eu, suspensórios sobre camisa de pano vulgar, calça de cotim coçado que não lhe tapava a canela, um farrusco de mãos sobre o amarrotado da boina; não me parecia disposto a conversas. Perguntei-lhe se não tinha bagagem e acenou uma negativa. O carro fez-se à estrada e, no interior, o silêncio pesava. Percorremos uns bons dez quilómetros em mutismo absoluto, ele muito direito, quase a rasar o vidro da frente, fascinado pelo asfalto. Até que não aguentei e, para fazer conversa, lhe interroguei finalidades, vai a compras ou regressa a casa para passar a quadra? Ele olhou-me como se olha uma criança aborrecida que tudo pergunta e soletrou em rispidez, a compras. Fizemos mais dez quilómetros. E depois outros dez. Sentia-me cada vez mais incapaz de retomar conversa. De repente, sem mudar de posição, como se comentasse o estado do tempo, fugi do Pinheiro da Cruz. Com a crispação das mãos no volante, quase deixei o fiat resvalar para a valeta e amaldiçoei o Marques enquanto endireitava o carro. Porém, sem me dar tempo, continuou monocórdico, foi propositado; arranjaram uma estrangeirinha com um assalto e prenderam-me. Eu era lá capaz de roubar alguém – voltou-se para mim – querem estragar-me a vida. Nesse momento, as mãos afligiam num aperto à fazenda gasta da boina mudada em bóia de salvação. Rodei em silêncio alisando terreno para acrescentos imprevistos. E ele, olhe digo-lhe isto porque podemos encontrar a guarda por aí; a esta hora já eles sabem. Se o senhor está com medo deixe-me já aqui. Parei o carro na berma de um ermo sem luz e ele abriu a porta. Pensei que era melhor assim; escusava-me a trabalhos que podiam custar-me caro e tirar-me o emprego. Ele havia de chegar a qualquer lado. Além disso, desculpava-me,  podia ser uma pessoa perigosa. Mas antes que saísse, estendi o braço, segurei a porta entreaberta e perguntei, e afinal o que vai fazer hoje para aqueles lados? Ele ficou silencioso. Entristeceu-lhe o semblante. E já me preparava para largar a porta e deixá-lo seguir, quando murmurou, voz embargada, vou para casa, hoje é a noite de Natal. Acertei-lhe a data, mas a consoada é só amanhã, homem. E ele, não. A minha tem de ser hoje; se não for apanhado antes, amanhã de madrugada os camaradas passam-me para Espanha. Fechei a porta de golpe e pus o carro a trabalhar. Vamos embora, há-de ser o que Deus quiser. Nasceu-lhe no rosto um assomo de estranho sorriso  e acrescentou, e se uma patrulha nos fizer parar, é que Deus nunca quis assim tanta coisa para o meu lado. E nos cinquenta quilómetros que se seguiram engendrámos-lhe uma história. Quando inquiri, e não tem medo de ser apanhado em casa, olhe que a guarda é onde procura primeiro... respondeu-me no mesmo sorriso de pouco hábito, eu não disse que ia para minha casa. E não tive tempo para pensar mais nada que, na beira da estrada, dois jipes da GNR mandavam encostar todos os veículos. Abrandei enquanto o coração sobressaltava em batidas de catapum, catapum que temia se ouvissem cá fora. Baixei o vidro e preparei os documentos. O Guarda aproximou-se, o sinal batendo exasperâncias na polaina, vermelho para dentro verde para fora, vermelho para dentro verde para fora. Olhei o meu acompanhante e estava calmo, meio adormecido, um aldeão de consciência tranquila. Dentro de mim o coração estoirava violências sanguíneas num batuque que me deixava as têmporas a latejar e fazia temer pela segurança da voz.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Conto De Natal

Parei no caminho para comer alguma coisa, esticar as pernas e descansar. O proprietário do café já me conhecia e, se a freguesia não apertava, vinha de pano na mão até à minha mesa e puxava conversa enquanto oficialmente a limpava. Falávamos do tempo, do trabalho na base, de Setúbal onde, dizia ele, tinha assentado praça, da família de cada um. No final, já éramos íntimos, ele quase de cabeça colada à minha, antebraço na mesa e joelho apoiado na cadeira em frente, o pano sujo a resvalar-me no prato. Depois descaía a perna, afastava o pano para um ângulo da mesa e, em segredo escondido, com boca bem pequenina,  sentados frente a frente e muito sisudos, que assuntos sérios pedem pose e reflexão, falávamos de política. Que é como quem diz, falávamos mal do governo; nenhum dos dois sabia o que eram partidos políticos, mas ouvíamos falar nos comunistas que estavam presos e que falar mal do governo dava o mesmo resultado que ser comunista: a haver uma denúncia, prendiam-nos. Mas agastava-nos que a maioria dos portugueses comesse o pão que o diabo amassou. Vivia-se de boca fechada numa pobreza miserável. Tudo faltava ao pobre: comida nos pratos, calçado, casacos quentes, médicos, remédios e até uma cama onde dormir. Contudo, o período de trabalho ia do nascer ao pôr do sol e muita gente não chegava a frequentar a escola, que então não era obrigatória, para tomar conta de irmãos mais novos ou começar também a trabalhar na terra ou em qualquer fábrica. Naturalmente,  no meio desta massa de gente desvalida e mal paga, que não tinha onde cair morta, havia os que tinham quezília sem remédio a governo e governantes. Mas quase ninguém abria a boca por medo à PIDE-DGS, a polícia política a mando do governo que, vestida à civil, se disfarçava no meio do povo e espiava os descontentes, podendo engavetar qualquer. Também sabíamos que alguém que fosse preso por causa da política, não voltava a arranjar trabalho. Todas as pessoas que conheci tinham medo da PIDE. E ainda hoje não encontro explicação para o facto de discutir assunto para mim tão melindroso, com o taberneiro daquela aldeia  à beira da estrada nacional. Mas há coisas que não se explicam, apenas acontecem.

Quando entrei no café, um petromax fosforecia a meio da casa, dependurado de uma viga do tecto por uma gancheta de arame.   A luz do candeeiro amarelava sobre pessoas e objectos a adoecê-los por inteiro e era como se tudo que ali se encontrava tivesse encolhido e perdido vida, os rótulos das garrafas que chispavam aos raios do sol, tão murchos que não se lhe percebia marca. Adentrei-me pela sala evitando  encandear no foco de luz e chegou-me o fedor peculiar do petróleo que arde,  misturado ao cheiro de vinho a copo. Atrás do balcão, o Marques olhou-me com a pergunta de sempre, o costume?, e fui lavar as mãos ainda em afirmativos de cabeça. Quando regressei, já ele me tinha servido um prato de moelas e um traçadinho e aproximava um ensaio de guardanapo. Lancei-me ao repasto enquanto voltava ao posto e atendia dois clientes. Mastiguei devagar, a dar-lhe tempo para se fazer próximo e cumprirmos o ritual. Mas o homem demorava-se em limpeza corrida no balcão, o pano pensativo, para cá-para lá, para cá-para lá. Até que reparou na minha insistência por cima do ombro e se decidiu. Levantou a passagem de madeira, veio andando de pano na mão e começámos a  desfiar o catálogo de assuntos.  Parecia-me meio constrangido, quiçá preocupado. Tem alguém doente, atirei de chofre. Ele deitou um olho investigador ao café agora vazio e, num salto de várias alíneas, passou à posição de antebraço na mesa e perna na cadeira, a cabeça a colar na minha e pediu-me de olhos redondos a engordar medos, preciso de um grande favor.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Conto de Natal

             Em 1960 eu já espigava para jovem, mas ainda acreditava em todas as histórias do meu avô. Esta data não faz parte do que vou contar, mas são bons números e soa-me bem. Por isso, tenham paciência, deixem-na estar. Ora, dizia eu, calhou-me nascer e crescer num tempo que os meus filhos e netos julgam pré-história, uma espécie de advento da civilização. Também por isso, no correr dos anos e transformações da vida, esqueci a maioria dos contos com que o meu avô entretinha os serões.  Porém, a idade cai-nos em cima sem dó: aumentaram-me o peso e a cinta, barba e cabelo ficaram brancos, a pele começou a sobrar-me pelo corpo. Ganhei rugas a que os netos mais novos chamam “riscos”; dizem eles, a cara do avô tem riscos e a do pai não. E é agora, na idade de contador, que me falta a arte e sinto pena por não lembrar os contos que o meu avô desfiava como se fossem coisas certas e suas, verdades puras que desembrulhava cuidadoso e só para nós. Eram contos bonitos que passavam na família de geração em geração. Ele entregou-mos em mão. Mas quando quis contá-los, tinham evaporado. Estão perdidos para sempre. Quebrei o fio de memória e não é possível reatá-lo. Por isso, a minha obrigação é, pelo menos, inventar um conto novo.

            Quando a minha filha era bebé, eu trabalhava a semana inteira na Base aérea de Beja e, para chegar a Setúbal onde tínhamos casa, percorria, aos fim-de-semana, os caminhos do Alentejo profundo. O nosso fiat 600, comprado a prestações custosas de vencer, demorava horas e horas na viagem, sobreiros e azinheiras sem conta a deslizarem lentidões através dos vidros do carro, e a estrada uma fita mágica que acrescentava em cada curva. Nesse dia, regressava a casa para umas curtas férias de Natal, trazia no banco de trás as prendinhas inchadas de laçarotes pimpões e antevia bons momentos passados em família. 

Um Agosto em Itália

Passear por S. Marcos
Borboleteei por ali, a impressionar na extinção do dia. A essa hora mágica dos pequenos desvarios e saudades, os restaurantes iluminavam as esplanadas e havia  cristais de brilho a reflectir. Antes das mesas, as orquestras (não eram orquestras, limitavam-se a quatro a cinco elementos) iniciavam trabalho afinando instrumentos e lançavam queixas contundentes em notas desgarradas; sem eco, esvaneciam solitárias, um gritinho de pauta a prolongar, uiiii!. Empertigados  e  rigorosos, os empregados atendiam os primeiros clientes e quase lhes esperei um sapatear ritmado com a bandeja. Porém, apenas observei a solicitude fardada e um quê de sobranceria na mirada ao público, não chegas cá; aqui, não há chão para os teus pés, desanda. Numa mesa, um casal de mão dada degustava do lugar. Selectos. Nem um grão de pó lhes perturbava o visual. A música, sintonizados os instrumentos, ia passeando por ali em passinhos pequenos, os violinos um adoçante sorvendo a noite. Enjoada de perfeição, fui espreitar o Palácio dos Doges. E aí me surgiu – como é que ainda não o notara?! – um caminho de infinito. Ou de infinita contemplação. Ou assim, apenas por gostá-lo desmedida(mente). Sim, o interior do palácio deve ser bonito; o exterior é um espanto, com sua ligação directa à Catedral. Mas não se descreve a beleza de caminhar entre as duas estátuas – o leão de S. Marcos e o arcanjo Miguel - até à beira do canal. Podem ter sido subtilezas de brisa, artifícios da iluminação nocturna, delicadezas sufragadas no corpo adormecido das gôndolas, mistérios escuros da água. Sei apenas que alheei. Diluí. Nessa hora sobrou de mim o que resta ao eremita que jejua no deserto:pó, cinza, nada. Porém, um nada de gratidão e alegria que bendizem o jejum.

            Nessa noite, jantámos tarde e o cansaço pesava-nos. Mas tão leve era a alma de regresso que nada sei do caminho. Teremos voado até casa?!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Um Agosto em Itália

Passear por S. Marcos
Em Itália há duas mais valias seguras: a rara beleza da paisagem - urbana ou campestre - e os gelados. Lembro-me que foi após um gelado extraordinário e uma travessia a rememorá-lo contrariando os arquipélagos de multidão, que me iniciei na Piazza di San Marco. Neste país, vira-se uma esquina vulgar no fim de uma rua estreita e súbitos nos plantamos em local insuspeito e encantatório. San Marco é também assim: ruas pequenas pejadas de lojas que vendem tudo, de vidros de Murano a porta-chaves de cortiça, provavelmente alentejanos; de calzones italianos a hamburguers americanos; de adereços típicos às imitações da alta costura. E gente. Muita gente de passagem, mochila às costas, mapa na mão, olhos que não pertencem. Sim, que o turista estrangeiro é jarra fora de sítio, peixe retirado às suas águas; para além de tudo, salienta-o essa estranheza pregada à íris. E há gente que hesita e pára a meditar as montras, talvez fazendo contas de cabeça, enquanto a multidão lhe faz o contorno e desenha a silhueta a passos contrafeitos, agora é que este papalvo se lembrou de parar.  Alheios ao engarrafamento que provocam, mergulham indecisos no interior da loja, mal sabendo que basta entrar e já decidiram. São  o desjejum do comércio local, gente que compra  espanejando ilusões sobre a autenticidade dos muranos, das peles, dos vestidos de marca, do papel de carta florentino, dos casacos, sapatos e malas ciganas com assinatura.  Ainda que a tempos diversos, uns e outros  desembocam repentinos num lugar extraordinário, a piazza di San Marco. Que todos procuram e a todos surpreende. Já em Florença eu me quedara imbecilizada face ao inesperado da Loggia dei Lanzi, a retina incrédula e eu a estarrecer, será verdade tanta beleza por metro quadrado?! Mas ali, em S. Marcos, deveria ter gasto, uma a uma, as horas do dia. Ou melhor, todos os minutos de uma noite. Porque, mal a manhã se aformoseia, logo os turistas tomam posse. E tanto se perde no excessivo humano! Sendo certa a monumentalidade dos edifícios que rodeiam e constituem a praça, a verdade é que relativizam se a multidão intromete. Para onde se olhe há intrusos aos molhos: cabeças, e cabeças, e cabeças. No calor ou no frio. Ao sol ou sem ele. No ar, o barulho de conversas e chamamentos condensa em enorme vaga, imagino que os ouvidos dos cegos aborreçam o ambiente, credo, este chinfrim ensurdece-me, dá-me cabo dos tímpanos, a bengala a hesitar-lhes perto do chão, sigo em frente ou viro já aqui. Junto à Catedral, filas sinuosas lembram bichos a que não se vê rabo, corpo atirado à soalheira (tudo é visita-paga, exceptuando a praça e o recinto de culto na catedral). Entrados neste cenário, muito nos escapa: há gente intrometida entre nós e o relógio romano, a obscurecer os pormenores das enormes colunas e impedir a esquadria da praça. A chusma desnivela e evapora lojas e restaurantes de charme. Viajante com presença de espírito eleva os olhos e deixa-os presos por lá, ao sabor de frescos e cúpulas de cintura torneada, rendados de pedra que impressionam.

Graças ao Luís e à Céu, experts em latitudes de multidão, eu e a praça encontrámo-nos num bendito fim de tarde. Um, olá como está, mais atento. Dela guardei a atenção de olhos que irradia para o inteiro de corpo e mente, nessa hora indistintos. Atolada na riqueza de pormenores a toda a volta, atenta à sua delicada beleza, circunvaguei-a pelos quatro cantos. E só não caí de joelhos porque eles não iam gostar e na minha idade  respeitam-se os interesses do corpo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Efeitos Aghata Christie

O que mais me conquistava nos livros de Enid Blyton nem era o enredo, a aventura. Era a sensação de segurança e bem estar que se desprendia do seu todo. Uma segurança feita à medida do mundo em que viviam aqueles garotos, antípoda  do meu. Não só os pais eram óptimos, toda a  sua realidade o era. Se passavam numa quinta, ali havia mesa posta com um lanche, sumos, gelados, bolos, scones, etc; os seus rituais quotidianos, alimentares, de sono, de passeio e diversão, galvanizavam qualquer, eram ideais. Repare-se que, no subterrâneo mais negro, havia sempre uma lanterna; se estavam presos em algum lugar, encontravam paus de chocolate no bolso, bocados de cordel que eram suficientes para subir desde o fundo de um poço...como eu invejava aqueles bolsos. Enid Blyton foi o Aristóteles da aventura infantil, fez descer o maravilhoso do mundo dos duendes e fadas para a terra dos homens e seus apetites. Depois, os bons ganham sempre e os maus sofrem castigo; e, por norma, são feios, o mau carácter devidamente identificado.

Agatha Christie criou a sua versão dos cinco, mas para adultos. Menos linear. Bem posso desculpar-me afirmando que Poirot é uma série inglesa, fiel à época e aos detalhes, motivos da minha preferência; Midsummer murders também é, e não faz igual mossa. Sou obrigada a reconhecer o meu lado de piroseira: gosto daquele mundo meio feudal, talhado a damas e lordes irrepreensíveis, moradias (solares e castelos, há muito castelo habitado por aquelas bandas) a que não se apõe uma nota de rodapé, jardins a estourar beleza. Mundo de pessoas bonitas e inteligentes, distintas na maioria dos casos, servidas por meios de transporte expensive e empregados obedientes que não destoam da condição e se apagam na trama. É básico, a história recai sempre sobre quem está bem de vida. Como em Enid, há um mundo bonito e de alto nível, onde os acontecimentos se desenrolam; e os maus são castigados. Eis o maravilhoso de Ágatha Christie. A ler, ou a ver e ouvir, eles rodopiam em meu redor; contudo, permaneço invisível. Oh! Claro. Há o mistério que a escritora tão bem soube construir, mantendo-nos intrigados até final. E a figura bem cinzelada de Poirot. Ou Miss Marple. Ou a vivaça Tuppence e seu par. E há as mortes. Que importam tanto como os subterrâneos em que os cinco ficam prisioneiros: são acidentes de percurso, sem dano para o espectador ou leitor. As pessoas vão sendo assassinadas, mas todos tocam a sua vida; como nos cinco, a aventura tem de continuar, nada de paragens piegas no enredo. Acontece como nos contos, saltamos levemente sobre.
E quem não gosta de uma aventura que se torna enigma e onde o que é bom aparece requintado e o pior tem tal leveza que não é ele?! Que atire a primeira pedra. Mas só daqui a poucochinho que vou abrigar-me primeiro. Ou será antes preparar-me para ver novo episódio...

Efeitos Aghata Christie

No momento em que – oxalá – a esquerda portuguesa se faz à terra com o arado e a direita roga pragas à rabiça, pois neste precioso “momento interessante da política”, ainda com a aura de alguma esperança, apetece-me outra coisa. Por me apetecer.
Neste rumo de inconfidências, reconheço que banhar-me num episódio de Poirot antes do telejornal, desencarde (dois em um: solta-me as cardas ao mesmo tempo que lava).  Existem mil maneiras de nos contarmos. Por que não com os romances policiais? Os de Agatha Christie agarraram-me aos vinte anos e não descolam. À época, a dama inglesa conseguiu mesmo uma vitória sobre a praia. Em férias  – cinco brevíssimos dias -, após ler um dos seus livros, decidi levar de empreitada toda a colecção da dona da casa. Dias e noites a ler em maratona. Adormecia com uma senhora dor de cabeça ansiando a manhã em que, fresquíssima, me atirava à página assinalada de véspera, em anelante pressa de amante insaciada. Quando, com grande pena, terminou o breve período de lazer, ainda os meus propósitos estavam longe da metade, a pele amarelava como antes, e a praia, meu supremo enleio, era-me estranha (tentei juntar as duas modalidades mas desisti; portanto, 1-0, perdeu a praia). Perguntava-me como é que até à segunda década de vida vivi alheada do entusiasmo presente no romance policial, coisa tão idêntica ao ar que se respira. Mas a verdade é que desconhecia a sua existência. O mais parecido que tinha lido eram os livros dos cinco. Mas os amores levam-se até ao fim, esgotam-se sem se esgotar. Ágatha Christie foi a causa primeira da mania que me nasceu de coleccionar livros por autor. Durante anos, perseverei em coleccionar-lhe títulos, andava com a lista na carteira e tinha supremo prazer na compra, antevendo horas inefáveis. Durante uns anos, esta fixação facilitou as poucas prendas que recebi. Os títulos que ora me faltam, são os que li nas férias da nossa apresentação amorosa que logo me incendiou em paixão a perder de vista. Confesso que me desilude comprar livros que já li; portanto, é possível que a prateleira da estante mantenha essas faltas ad eternum. Entretanto, comprei livros policiais de outros autores. Mas nenhum destronou a dama inglesa. Aghata Christie é a minha queen.

Quando (me) surgiram os filmes baseados nas obras, não desiludi. Até hoje, perguntei-me que sorte de ingredientes detêm livros e filmes para despertarem  tal empatia. E só agora, nesta hora precisa – também não penso assim tanto no assunto –, descobri o que sempre esteve em frente dos meus olhos: estes livros e filmes são muito particulares. E, hélas!, chama-me neles (aos gritos) o exacto mesmo que me chamava nos livros dos cinco. Não têm nada em comum?! Ora essa, mas é que têm mesmo. Vejamos.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Um Agosto em Itália

Piazza di San Marco, Venecia


            Apesar do corropio de turistas a demandá-la em primeira escolha, conheci-a já a semana em Veneza ia a meio. Conhecer não é o termo certo, ainda a desconheço. Conhecer uma praça numa cidade é mais que saber-lhe o nome e ser-lhe apresentada. Ultrapassa a possibilidade de sentir-lhe as variações ao longo do dia (como nos sucedeu). Está para além do sortilégio de o primeiro olhar acontecer ao rés da noite, sem multidão (assim se teceu o nosso prazer). Para conhecê-la, teria de pisar-lhe a esquadria vezes sem conta e saber nela as quatro estações; sentar-me no esplendor das suas esplanadas; entrar em algumas das inúmeras lojas que a muram; encostar em quase todas as colunas das suas arcadas magníficas; amiudar o hábito ao tempo  daquele relógio romano com signos do zodíaco; pedir alento ao juvenil galope de cavalos estrangeiros e naturais de Alexandria que ali brilham tão a gosto; meditar na Catedral; fazer visita ao Palácio dos Doges; jogar a macaca no tabuleiro da praça a afastar pombos, xô, xô, xô... E desvanecer uma vez e outra, e outra ainda, frente ao Leão de S. Marcos e à displicência destemida do arcanjo Miguel, um pé distraído a calcar o dragão enquanto, logo ali, a simetria  bailarina das gondolas ensonadas, azula no fim de tarde.  Porém, mesmo sem a saber, me rendi ao primeiro encontro, tão desprotegida como qualquer mortal.

É que a beleza do canal invade-nos. Desmede e estarrece sem direcção.  Oh, que sempre os poderosos souberam – puderam -  escolher os lugares de morar! Regresso às gôndolas e seu doce chapinhar. Escuto melhor, não soa apenas a música da água a alisar a madeira. Sobre ela, perpassa um cristal de piano. E é certo, a leveza dos barcos ondula ao som de Beethoven; juro, ouvi a Melodia para Elisa a embalar as garotas.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Um Agosto em Itália

BURANO

No espesso de nuvens, Burano surgiu-nos crepuscular a meio da tarde. Uma aldeia de pescadores e bordadeiras. Molhada de corpo inteiro. E, por benção da chuva, pouco transitada. Linda, a aldeia de Burano. Talvez em dia soalheiro as gentes tolhessem o espírito que lhe vive nas frontarias coloridas à mão, cores fortes a encobrir torturas e nódoas negras; ou no entortar das torres de igreja, meias zonzas no horizonte, estou a descair, sinto que me falta terreno; ou nas flores em ponto de exclamaçãoque enlanguescem  por muros e paredes, rimamos, fazemos pendant. Talvez nem tivesse olhado as suas varandas onde, em tamanho natural,  moram santos contempladores; nas festas, fazem par com os da casa, são parentes debruçados a olhar os transeuntes, assinam com o apelido da família. Dependuradas do alumínio, virgens de olhar maternal em pose de benção eterna, braço meio soerguido; Cristos que nos observam inquisitivos ou em jeito tão de amor nos olhos vítreos que nos apetece subir e apertar-lhe a mão delicada, agradecer-lhe, muito prazer, Beatriz. Mas não rodam a cabeça se viramos a esquina, antes se quedam, no mesmo lampejo, olhando o vazio. E assim não vale. A custo abandonamos a ideia de subir a escada para um cumprimento sentido, a mente a insistir, deve ser naquela porta rosa, e depois, lá em cima, é só andar em frente e ficas virada ao Cristo.
Vagueámos perdidos e contentes naquele colorido luxuriante e desvaneci numa casita que arroxeava em dégradé. Dos roxos aos lilases rosados, acintava. Desde o leve estremecer da cortina que usam na porta de entrada – antes da porta – aos vasos e flores que a ladeavam, passando pelo secreto encosto das janelitas de madeira e tapete. Naquele golpe de paixão macerada à beira do canal, havia um misto de corpo de Cristo exposto, um Cristo jovem e frugal, a linha da cintura encimada pelo desenho da caixa torácica, firmeza de músculos que a morte não desfigura; ao invés,  os membros desprendem uma elegância pueril, quase feminina na sugestão de curvas. Assim a casa se oferecia ao olhar. Linda. E morta. Sem escamas de peixe a eclipsar pelo ralo das bacias, sem aventais e casacos grossos e gorros desmaiados no prego atrás da porta, sem o extenso de fio e o aparato dos bordados, sem tartamudeios e imprecações de hálito avinhado escada acima ou o  sururu linguarudo de vizinhanças afiadas. Ali, a pescadores e bordadeiras já sucedeu outra geração. Talvez as casas de Burano sejam moda e fique cara a sincronia da cor.

Embarcámos pela tardinha, encantados neste passeio de água. E foi do vaporetto que assistimos ao pé-ante-pé da noite, a paisagem a desfocar. Para lá das gotas no vidro, as árvores embrulhavam-se em seu silêncio denso, acinzentando sombras, esvaindo contornos. Passámos de novo pelos ancoradouros e só uma luzinha tremeluzia na água oscilante, um véu sombrio tragando o cenário de uma vez só. Nas ilhas, casas iluminadas viravam-se para dentro e iam pouco a pouco fechando os olhos. Junto à linha do horizonte, como quem chega um xaile aos ombros, o céu acabidava migalhas de sol. E eu talvez nem existisse, que a contemplação requer um estar raso acrescentado de silêncio.

Um Agosto em Itália

BURANO

Depois foi a procura do posto de polícia mais próximo, um sotaque brasileiro de aquisição marital a valer-nos o desengano sobre a hipotética recuperação de perdidos. A sua complacência proporcionou-nos uma hora de galharda simpatia e, muito importante,  permitiu, via telefone, contactos internacionais. Esgotado o nosso tempo de antena, os senhores agentes foram liminares e convidaram-nos a sair.  Cá fora, mirando o local, ficou-nos a certeza de que, em Itália, a polícia se afadiga a guardar-se a si mesma, tal o aparato  de segurança interna existente num quartel, que, no exterior, se faz quase moradia anónima.   Ou seja, a máfia é a sério.  Portanto. 
Entretanto, proprietárias ostensivas, chuva e trovoada assentavam sobre Veneza. Porém, hélas, os portugueses têm sempre sorte no meio do azar, faltava-nos visitar o sector da Bienal que se encontrava na Armada. Sob um tecto protector, íamos percorrê-lo a contento. Corremos os três, a água a rodear-nos por todos os lados, e o recato na bienal foi-nos alívio e quase céu.
Talvez tenha sido o escuro do dia que me impactou. Porque me passaram pavilhões e suas mostras de uma manhã. Mais me resta de Burano que visitámos após o almoço, em viagem de beleza lavada e transparente, olhos a arregalar de espanto, que é isto. Já tínhamos rumado a Murano, mas nada me preparara para esses postais ímpares, plantados no caminho de Burano. Ilhotas de uma casa só, a chaminé acenando invernias aconchegadas e, a seguir ao abraço de madeira que rodeava o lar, sôfrego guardador de árvores e flores dependuradas, a miniatura de um cais. Sob a chuva, era mais nítido o vagar desenhado das árvores, as mãos cansadas dos ramos em líquida prostração, entregues aos elementos. No horizonte de chumbo, em ilhas de aqui e ali, um barquito amarrado à sua sorte, a cobertura a negrejar plástico que um vento mais forte espanta em barulhos nocturnos de flop, flop, flop e se perde no escuro, o plástico a engasgar na mão de um arbusto que o agarra e ele  ainda estonteado, muito obrigada pela atenção, não se vê nada, nem sei onde estou.

Não há dúvida, o céu de depois da tempestade empresta à Terra o ar angelical que ela não tem. Extasiei. Viajante resumida, sem corpo para frio, dores e pés molhados, eu constava de mente e olhos.  Ai quem me dera ser assim mais tempo! Quem me dera essa dissolução latejante que enquista na memória e, sendo ela, é já outra coisa. Porém, tê-la vivido é um tudo no quase nada da vida humana. Dizia um poeta satisfeito de si, “Confesso que vivi”. Referia-se a ter vivido variadas coisas e ter experimentado muita diferença; ou seria antes ao viver infinito de Pessoa, a esse aturdir em realidade mental tão pujante que anula o exterior. Não interessa. Neruda foi um só e Pessoa idem. Mas os sentidos sem a mente são boca escancarada que não aprendeu a mastigar. Que morre de fome e não sabe.