terça-feira, 23 de setembro de 2014

Cama de Lodo

É um portão branco, pequeno, a meio de um gradeamento leve. Lá dentro, no pátio, sentados em bancos de jardim sem jardim, estão os velhos. Atravessa-se a portinhola e logo outro mundo. O reino da pré-morte. Onde tu moras. À entrada, no exterior, um locatário a imitar gente comum, como quem não pertence e acabou de chegar, vai entrar aí? E, como a desviar-se de algo repelente, acentuou o aí, a fixar-me acintoso, olhar destravado. Mirava-me com um desrespeito semi louco, de animal a desprender de hábitos sociais, na extravagância da minha presença dentro da casa; ou na ideia de que o lugar onde vives – e ele também - seja desaconselhável. O meu riso claro seguiu em ondas de encontro ao rosto anguloso de anos, a aproximar em morbidez de curiosidade senil, sim, aí mesmo, não posso? Então a sua expressão matizada em osso distendeu, o adunco do nariz mais suave, as maçãs do rosto menos agudas, dedos prestáveis a abrir um desajeitado portão, o corpo numa cortesia, a recuar um tudo nada. E passei, atenta ao letreiro, Porta Principal.
 Entrei e logo um bafo de urina a cumprimentar-me, reinando sobre a limpeza do chão. E os velhos nos lugares pareciam talheres em volta de pratos. Quietos. À mão. Virei à esquerda a tentar pensar noutra coisa, o cheiro a sobrepor e a complicar-me a cabeça. Percorri um corredor comprido e desemboquei na primeira sala, o cheiro acre constante, a preceder-me. Tantos que são os velhos! Parecem plantados por dentro da casa. Quietos. Ou de gestos a puir. Estes encontram-se frente a um intocado armário de livros. Não os vêem, ignoram-lhes as lombadas, os livros reduzidos ao ser que neles não está: são a parede em frente. Mais tarde, eu,  já não gostas de ler? E tu, no rabo-de-cavalo uma réstia da garota adormecida, não tenho paciência, só gosto de televisão e novelas. Reforço, e se trouxer revistas com muita fotografia? E tu, já não gosto, aborrece-me; só vejo televisão. Lá do canto uma velhota mirrada, ela só precisa de uns miminhos, não vale a pena outra coisa.
Continuo em frente, a dar boa tarde a todos os sofás que não me respondem, imersos em pensamentos dobrados; todos os sofás ocupados em desdobrar pensamentos, se fossem de papel seria um restolhar de folhas. Procuro-te no teu lugar de talher, junto à TV. E nada de ti. Estarás doente? Os velhos sentados em volta, olhinhos piscos, a lucidez adulterada, será para mim a visita? Eu na claridade da porta, saco na mão, indecisa, que é da Joaninha? Algumas pálpebras a baixarem devagar, não é comigo, duas velhotas prestáveis, foi à casa de banho, olha já aí vem.
Entras e reconheces-me. Satisfaço no teu jeito de cabisbaixa admiração, prima!... e vamos sentar-nos as duas no teu lugar, eu também de talher. Tens creme preso nas sobrancelhas. Ponho-me a espalhá-lo devagar, faço-te uma festa demorada no rosto, os teus olhos agradecidos. Digo, não desfaças o rabo-de-cavalo, fica-te bem. E tu, vou deixar crescer o cabelo. Depois falamos dos mortos que em ti continuam vivos e quando descobres a verdade, choras um pouco porque em ti não morreram e enlutas aos soluços da memória. Faz-me mal que repitas todos os fins das minhas frases, adoece-me, queres o quê?! Não consigo evitar. Conversas só meia frase, vais indo aos tropeções, de meia em meia frase, sempre a pegar na minha metade. Qual criança que experimenta os passos, sinto-te o esforço de pensar. E entremeias muita vez para os presentes que dependuram e nos preferem à TV, é a minha prima. Somos o foco: as primas.
Sempre que te visito lamento não saber de novelas, seria um assunto para desdobrar sobre a tarde e nós duas a investigá-lo quanto pudéssemos e a tua memória deixasse. Revelas tristonha a ignomínia da mana, tirou-me tudo: pulseiras, anéis, brincos, fio…não tenho nada. E agitas as mãos nuas e papudas de calmantes e inanição, o teu dedo inchado aponta a singeleza das orelhas, e em desolação palpas a nudez do decote. Ainda tens essas pulseiras, digo a olhar-te o braço esquerdo. E tu contente, trouxe-as da Guiné. Eu mázinha, ainda bem que as compraste de osso. E logo lanço um perfume, ficam-te tão bem. Quedas-te a afagá-las em silêncio, no jeito de quem passa a mão no pelo de um animal de regaço. Abro o saco e mostro-te artigos que penso poderás gostar. Preferes os pastéis de nata e hás-de levá-los para comer ao lanche. Eu de repente, Joaninha e se eu te trouxer um baton? Tu usas? E quase sorris, abanas a cabeça que sim e convicta, numa decisão, uso. Uso. Inquiro, e a cor? Tu, vermelho. E pronto, na próxima vez virá o teu baton vermelho. Foi assim que estiveste no meu casamento, com uma mala quase do teu tamanho e um baton vermelho. Tão loucamente bonita que doías à vista.
Amiúde, perguntas-me as horas. E sinto remorsos porque te queria trazer um relógio de presente e não o achei. Tinha pensado que talvez risses a sério. Faço outra busca aturada e há-de trabalhar junto às tuas pulseiras de osso. Palavra que não o usei e é a estrear. Olho-te na lembrança da última vez. Chamaste-me de parte, secreta, sabes quem eu sou? E eu, sim. Acreditas em mim? E perante o meu assentimento silencioso, sou a rainha Santa Isabel, tenho mais de setecentos anos e nunca morro. E depois puseste o teu ar mais triste, não morro nunca e estou tão farta de viver, mas não morro nunca. Olhaste no fundo dos meus olhos, dramática, acreditas? E eu de novo, sim. E tu sem transição, está quase na hora do lanche.
Mas hoje estás bem. Pergunto se queres saber as horas para ir lanchar e tu que sim. Tens a obsessão da comida. Depois, uma velha na tua frente, Joaninha mostra lá o quarto à prima. E tu levantas-te com o saco na mão e vais corredor fora. Sigo-te. Porém, quando passas ao refeitório entras sem olhar para trás, como em hipnose, a murmurar, já está na hora do lanche, é hora do lanche.

Estou parada a olhar-te as costas a afastar, já em pose de velha. De repente, o cheiro circunscreve-me, agonio e dou por mim cá fora às voltas com o trinco do portão branco agora isolado, o porteiro no afã de refeitório. Olho ainda a sala de refeições. Vejo-te pela janela e estás numa atenção de doença. Deixei de te existir. Tanto me dói a cabeça e não te existo.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Sexo na Terra do Nunca

Nos degraus de viver, cada homem tem a sua história com o sexo. Não o biológico, seu, mas a ideia de haver um acto sexual que acontece entre as pessoas e a certeza de também pertencer ao grupo – dada a partir do exterior - e muito anterior às pressões do corpo. Que os acenos do corpo são, também eles, parte dessa história pessoal e única. Certezas que nos situam. Idênticas em todos os homens, cada um as vive a seu modo. Como pode. E sabe. O que não nos torna forçosamente melhores ou piores. Apenas diversos. E quanto!
Não me lembro de uma hora ou um dia específicos em que eu tenha intrigado com o facto de haver entre mim e os rapazes diferenças anatómicas notórias. Conheci-as desde cedo e aceitei-as sem as julgar condição de ou para alguma coisa. Na infância mais recuada, o sexo como assunto não me existiu. Ou, freudiana qb, lhe apaguei a existência. Tenho porém uma certeza, não desejei casar com o meu pai e desacredito de formas inconscientes para a expressão desse desejo que considero impossível, o medo que lhe tinha era tanto que até o inconsciente não me traía a vontade. Ao contrário, bastante me satisfazia se trabalhasse longe, ainda que sem memória de lhe desejar morte explícita. Nesse tempo, o meu pai era-me alguém muito estranho, mas imortal. Fazia-me parte da vida, mesmo sem lhe entender sentido. E era assim.
Por outro lado, o universo das relações maritais, secura a toda a prova, deixava maus tratos frequentes nas mulheres que viviam arrastadas de trabalho e preocupação com os filhos e a subsistência, entre lamentos e rugas extemporâneas. A falta de qualidade na construção das casas criava paredes atravessadas de gritos, imprecações, choro, pancada…Gemidos de amor ouvi pela primeira vez no cinema, tinha vinte anos. E achei que se acaso fosse verdade e não teatro, seria lindo, com sabor de maravilha. Mas não havia a quem perguntar se era a sério ou apenas fita.  
Portanto, o mundo adulto não motivava desconfianças precoces e curiosidades brejeiras: jamais vi os meus pais beijarem-se na boca, abraçarem-se, um carinho entre os dois...tão pouco o observei nos pais das minhas amigas. Vivia num mundo que ainda não questionava e tomava às colheres, por olhos e ouvidos. Convencida de que era bem melhor ser criança.

Então, dormia sem suspeita no quarto dos meus pais. Desse tempo, recordo apenas o que hoje sei serem preservativos e que me intrigavam sobremaneira, na gaveta da mesa-de-cabeceira. Perguntei e, são balões, não se mexe. Ora, certa vez, tirei um balão da sua cama de pó de talco ou o que fosse – cujo não entendia para que estava -  soprei e não encheu minimamente. Eram, aliás, balões bem esquisitos, todos sem cor e de forma alongada. Minha mãe estava ao tanque com outras vizinhas, chego afogueada de novidade, mãe, aqueles balões da mesinha de cabeceira não enchem e não estão rotos, deito-os fora? A minha mãe avermelhou enquanto as vizinhas, por entre salpicos de água suja, sorriam para a pedra de lavar; olhou-me com cara de caso e disse, vai já lavar a boca, ali não se mexe. Não deitas nada fora, a mãe já vai ter contigo. E depois chegou com uma explicação para as minhas queixas de um cheiro estranho, que era a bexiga do meu porquinho que tinha morrido e ela guardara e eu, então não são balões, por que é que a mãe disse que eram; e ela engatou uma resposta que não entendi e mais repetições de não mexer. Eu em estranheza insistente, mas é mais que uma, mãe, estão guardadas para quê? Ela, que eram de outros porcos que tínhamos tido. Pensei que os adultos eram meios parvos a guardarem bexigas de porco, mas não só acreditei – ó eterna credulidade – como, para aflição de minha mãe, trazia à baila, com todo o pormenor e quando menos se esperava, o insólito das bexigas de porco na mesinha de cabeceira. E, às escondidas,  mostrava-as às minhas amigas de jantarinhos e outras brincadeiras, que ficavam tão pasmas como eu, experimentavam com a força toda e aquilo não enchia; de forma que não percebíamos por que se havia de guardar tal coisa dentro de uma latinha que até nos merecia desvelo e desejo de que viesse parar à quinquilharia guardada debaixo da minha cama, numa caixa de sapatos.
(continua)

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Os Maias

Voltei ao cinema! A Magia da história a fazer-nos personagem silenciosa na ilusão de que sozinhos com ela; um tempo que se rouba – ou parece – ao continuum, élan que não detecto no melhor filme de écran caseiro.
Não tinha pensado encontrar "O Ramalhete" e sua gente por mão diversa da de Eça. Veio pela mão de João Botelho. Em boa hora. Contrariamente à maioria das pessoas, não apreciei a pintura de cenários a lembrar-me filmes mágicos e infantis como Mary Poppins, mas talvez tenha contribuído para um mais baixo orçamento. Ou foi propositado, “o véu diáfano da fantasia sobre a nudez crua da realidade”. Quem sabe…. Felizmente, tudo o resto é a três dimensões (pelo menos, na realidade). Envaideço de cada vez que os portugueses fazem alguma coisa digna de ser vista. É uma relação de família: puxo por eles e dilato de orgulho quando se saem bem. Não sei se patriotismo, é um sentimento de proximidade.
Desconheço os autores dos diálogos, mas são uma delícia que agarra o espírito arguto e crítico-satírico de Eça, o vai buscar à obra. Deliciosamente fiéis. Fora do curricular das novelas, também os actores são profissionais sem mácula (a criança não é grande coisa). Devo acrescentar que a própria filmagem dá cartas ( a realização?). Filmar desde o início a rodar a câmara para mostrar a totalidade em várias perspectivas,  é induzir uma espécie de realismo circular onde o espectador se enreda ele mesmo - a mim deu-me tonturas, obrigando-me a fixar outro ponto para poder re-olhar. Talvez o cineasta tenha tido esse intento, reivindicar o seu modo de olhar Eça e os Maias. Muito bem, João Botelho! Para ti, a minha salva de palmas. Estou mesmo contente com o teu trabalho. Isto apesar de não te conhecer fora dos filmes.
Com efeito, apercebemo-nos de que há qualquer coisa em Carlos – um actor soberbo de que não fixei o nome – que Eça não dá e nem quer dar: humanidade e nobreza de sentimentos que o tornam simpático ao espectador, o retiram do mundo meio blasé a que pertence e o tornam único, quase em contraste com o excesso de brilho falso. Eça criou um Carlos que se deixa enredar no amor, mas é menos pungente, mais corrompido pela civilização, mais sarcástico e exterior às questões que o rodeiam. Mas o espectador tem um Carlos bem formado, inexperiente nas lides do coração, mas quase sempre bastante sensível aos problemas do mundo. Constante a corrigir a má formação de quem o frequenta, é pedra de primeira água. Para além da primeira frase, estendido no canapé do consultório onde recebe depois a visita de João da Ega, e do repúdio entediado perante os arroubos da Gouvarinho, Carlos surge perfeito, o amante ideal, o companheiro a que se aspira.  Personagem de sonho, tocado por um amor maior que a tudo cede. E tudo é, neste caso, muita coisa.
Maria Eduarda também não será bem a de Eça, mas foi suprema a escolha da actriz que em tudo se assemelha às heroínas queirosianas, qualquer coisa de extrema delicadeza na figura, o encanto do cabelo alourado, a tez alva, a perfeição das linhas do rosto, brancura de dentes sem defeito; e de João Botelho puxou uma sensualidade inocente que não deve aos melhores filmes do mundo. As questões amorosas não têm, como é natural no escritor, o pendor erótico e sensual que João Botelho lhes soube dar. Contudo, Eça era tão humano! Tão humano que a moral não curva o resto. Não de imediato. Neste caso, a moral apresenta-se como dever da razão e, diríamos, da natureza humana, contra o coração e o corpo. Dois contra um. E quando João Da Ega lhe grita: “já lá vão três dias que diabo…”, nós, que a sabermos de um caso destes lhe cravávamos o machado moralista, enojávamos, no cinema compreendemos, achamos natural que um amor assim virulento não morra num repente, de uma carta fechada num cofre. Morre em dez anos. O que é proscrito em grau maior, tem de morrer. Must.

Oh! Imparável Eça, quanto te agradeço teres nascido!

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Minhocas e Caraminholas

Ouvi há dias uma conversa palerma e bem humorada sobre a independência do Alentejo. Chegou por graça e arrastamento do referendo escocês. E só podia. Se há gente que não deseja separações, físicas ou de outra natureza, são os alentejanos. Não há nada a fazer, nasceram siameses com o resto do mundo, precisam dele. Poderá alguém afirmar, mas vivem tão isolados, são meios tristes, melancólicos…Bommm…são meios tristes e melancólicos porque assumem, fingem menos, dão-se ao natural de serem assim, unos com a paisagem, já que o resto de Portugal faz questão de ser outra coisa. Conheço mesmo vários alentejanos em fincapé: é condição de nascimento, não mudam.
A história de viverem isolados também tem de ser revista: por vezes, vivem isolados dos humanos; não dos animais, nem das coisas, nem dos elementos. A alma alentejana é Pan e meia índia, convive irmãmente com o que a rodeia. E vezes existem em que o interlocutor alentejano é um bem mal empregue ainda que o próprio não se dê conta do valor e tal questão lhe desinteresse.
E quem me leia aduz com alguma razão que estou a tomar partido. Ah, pois estou. E depois?! O mundo treina-nos intensivamente para fazermos escolhas e, ao mínimo sinal de independência, cai-nos em cima. Assim não vale.
No entanto, concedo que há questões (im)pertinentes: e o limar de arestas, a mudança que em nós faz o meio físico e humano, o amor, a amizade e o mais.  Ora bolas. Os alentejanos podem ser ingénuos, mas não são estúpidos. Dizer que não mudam equivale a afirmar que, na sua essência, a mudança é impossível em qualquer homem; que, como determina o ditado chinês, quem nasce lagartixa pode ser uma lagartixa soberba, mas nunca chegará a jacaré (eu diria que nem a lagarto, e que não precisava uma diferença tão abismal, mas pronto, os chineses só entendiam assim. Se calhar). Por acaso, ninguém duvida desta verdade de La Palisse à chinesa. Palavra que não entendo a razão de o saber popular chinês ter mais peso que a sabedoria alentejana. Se um alentejano o diz a seu modo, está armado em burro que não quer ver, calhau que não admite desgaste, estêva na serra d’Ossa, e coisas de maior acidente. Mas um ditado chinês é lei, tem a bênção de Buda, milhares de anos antes de JC – o tempo de experiência conta muito nestas coisas de ditados populares.  Não acho bem. A mente alentejana é tão vagarosa, por que motivo não há-de isso contar a favor? Não. É tudo anedota, são vistos como “um pouco retardados”, lentos.
Oh! Já me desviei. Entusiasmo sempre que embico para a alma alentejana. O que queria trazer a arejo era a mania das limpezas na cabeça das alentejanas. Sim, sim, os livros de psicologia têm razão, não é só a cor da papoila ou o cheiro da alfazema que nascem na mente. A mania de limpar também lá está. Não quero massacrar nenhuma alentejana, detesto golpes, sangueira e gritaria (elas esperneiam que se farta por um feridita num dedo, imaginem o resto), mas tenho certeza de que há-de haver um espaço sem ambivalência para o terrorismo de limpar. Que des-existe no género masculino.
Vou limitar-me a uns exemplos, não quero levantar ondas senão terei que limpar e sou alérgica aos ácaros. Existe de tudo: as mulheres que passam a vida a lavar as mãos e gostam demais de estar ao tanque; só se sentem bem a mexer na água que mudam muita vez porque sempre lhes parece suja. Este tipo endoidece por uma nódoa, esgatanha-se a esfregar, tem as gavetas impecáveis e seleciona as peças por tamanhos e cores. Actualmente, sem tanques de lavar, pelam-se por máquinas com variados programas e gostam de apregoar quantas fazem por semana como se fora assunto de interesse prioritário. Aprende-se muito com elas, mas são ligeiramente paranóicas.
Há também as que na limpeza de fim-de-semana passam tudo a pente fino, descascam a sapateira e lavam os sapatos por dentro e por fora (não deve ser calçado do Lidl nem da seaside, senão não se aguentava ao banho semanal). Têm casas muito vaporosas e refulgentes (areiam tudo), a mania de andar descalças em casa e almoçam e jantam num anexo. Têm um bocadinho de vocação de capacho, desgosto.
E depois há mais dois tipos extremos: a que limpa constantemente sem nunca sujar o que limpa. É a mulher-déspota-vítima. Tem uma casa museu que não usa nem deixa usar; nunca se senta nos sofás da sala (se se sentar é sobre um plástico); pouco abre as janelas; possui os electrodomésticos último grito sem experimentar; vive e dorme no anexo; não cozinha determinados pratos porque fazem fumo e sujam; não acende nunca a lareira porque faz cinza…É a mais perigosa. A inimiga número um da humanidade. Gente que me ouvis, é de fugir; fazem toda a gente infeliz incluindo elas mesmas. Quando os médicos resolverem começar a tratar seriamente das mulheres vão autopsiar este género e verificar que tem uma avaria mental grave.  Por enquanto dão pelo confortável nome de psicóticas. Mas são outra coisa. Que ainda não se descobriu.

E por último aquelas nas quais me incluo e que têm um travo de "deixa andar": não têm qualquer queda para a limpeza, não lhes assiste sequer uma ordem metódica, mas esforçam-se imenso para ser parecidas com o razoável. Porque lhes falta método e em tudo seguem a forma mais difícil, têm mais trabalho que as restantes embora realizem menos. Levam horas a arrumar uma gaveta que desarrumam em dez minutos e há sempre muita coisa em espera. Parece-me o melhor tipo. Não só porque é o meu, mas também por não ser acintoso: o que não se faz hoje far-se-á noutro dia. Que não tem que ser o dia seguinte. E como as coisas se protelam, não existe a desvantagem de não ter nada para fazer. Quando morrerem vai sobrar bastante. São um bocadinho psicóticas mas ao contrário e nota-se menos. 

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

História com Camas

Após muitas peripécias e várias camas a que não me liguei, à média de uma por ano lectivo, aterrei na Baixa da Banheira, lugar que não passa pela mente de ninguém que exista, antes parecendo nome inventado por autor sul americano muito dado à gargalhada. Mas acontece que é real.
         Trabalhei e quase arrisco dizer que fui feliz nesse lugar atípico onde as ruas têm um número em vez de nome, as raças convivem numa mistura intrincada de desaguisados que metem revolver ou protestos de pôr interiores à mostra, as navalhas de ponta e mola sem evasivas. Ao fundo da rua treze, o emblema de marca: junto a um prédio cabisbaixo, arrependido da vida até às fundações, porta entreaberta, a cigana, sombra negra e larga  a avultar, atroava aos gritos por um filho, um marido, um qualquer coisa que lhe faltava.
           Então, o frenesim dos graffitis enchia grosseiramente paredes e muros, facto que me intrigava. Admirava-me que um desenho sem graça aparecesse tão repetido e mesmo sobreposto a negro ou vermelho em alguns murais espectaculares, a desfigurá-los. Havia um constante de gente barulhenta e diurna na rua e eu imaginava que, se pudesse sobrevoar a localidade, captaria um zunzum de vozes misturadas. Porém, no túnel do apeadeiro, a coberto da escuridão, quando os comboios já rareavam e os carris desiludiam de abandono, juntava-se uma chusma de encapuçados, de ar pouco abonatório e que nunca me molestaram, passando eu tanta vez entre eles, que se arredondavam estratégicos na única saída, talvez para me avaliarem o ímpeto. Habituámo-nos uns aos outros e ao passar, cumprimentava-os sem resposta. À meia noite, o apeadeiro deserto, não fora a sua presença e só o relógio da igreja me acompanharia. Porém, mal avistava o fim dos degraus, eles ali, apinhados e soturnos, a segredar o que eu imaginava serem códigos e podia ser outra coisa. 
          Seis anos a habitar uma casa tão despida de tudo que não se entende a permanência. Só pode ter sido um caso de amor bicudo.
A verdade é que foi o lugar onde mais gostei de viver. Sem esquentador, frigorífico, aspirador…nada. Pela segunda vez, dormia num divã que eu mesma adquiri. Agradava-me a simpatia da proprietária e o facto de pouco frequentar o que era seu. De imediato, senti a casa como minha e sacrifiquei tudo o resto a essa ligação independente. No entanto, a cama de que tenho mais saudade é contemporânea do tempo em que levei comigo a mana  caçula e adormecia num colchão que transitava todas as noites para o chão de alcatifa, ela a dormir no divã. Nesse lugar onde caía semi morta de cansaço, arranjei uma rinite matinal e persistente que me fazia chegar ao trabalho com uma copiosa constipação que só desencostava perto do almoço, após a derrota de dois maços de lenços.
Foi um tempo de magros períodos de sono. Ainda assim, sonhava histórias cheias de voltas, sempre a cores e com muito pormenor. Lamento não as ter descrito. Além de um enredo gracioso, eram bem-humoradas e “acabavam bem”, coisa que hoje já não consigo; quando dou por mim estou a enterrar os personagens, a trucidá-los sem mais nem quê, sinal de que tenho de parar a escrita ou ainda monto uma agência funerária. Nessa altura, acordar era uma curiosidade feliz. Todas as manhãs, pesadelos adormecidos ou a desgostar da pernoita na alcatifa, era surpreendida pela memória de sonhos que me predispunham para o dia.
Seja como for, algumas camas depois, tenho saudade àquela independência e leveza de dormir e acordar. Que não tem volta, bem o sei. Porque o seu nome é juventude e não outro. No céu onde decerto está, a minha boa e idosa hospedeira deve rir-se ainda do tresloucado de afirmar que só em sua casa dormi a contento. Tive o cuidado de lho dizer em vida. Reitero agora na morte. 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

História com Camas

O período em que menos valorizei a cama correspondeu à necessidade de a habitar em permanência no infecto-contagioso. Ficou-me a ideia de poder levantar a cabeceira com uma rodinha e o desconforto de um resguardo de oleado sob o lençol. Na convicção de que morreria de tristeza no local, fiz petições e o mais que consegui para mudarmos de residência (a doença e eu) e fui parar a um sanatório. Esse tempo de internamento prima pela variedade, há os episódios patuscos, tristes, românticos, ternos e até um com veia policial. Digamos que a minha experiência foi a sério. A viver ao centímetro.
 Ora, para além da cama tradicional e normalíssima num quarto que partilhava com duas senhoras, havia uma outra que me pertencia e onde passava bastas horas – umas por obrigação e outras num exercício de voluntariado que muito me atraía. Era uma cadeira de repouso, com um colchão, almofadas e uma manta de viagem só para mim. Todos os quartos tinham uma porta-janela sempre aberta, em absoluta indiferença às rotações e translações da terra. Atravessando-a, cada doente acedia à sua cadeira no alpendre que prolongava o quarto. A minha, foi bem amada. Considerava-a um luxo e abençoava a ideia de constituir parte obrigatória da terapia diária, que cumpria escrupulosamente – durante duas horas ficava ali sentadinha, só a respirar. Era proibida qualquer actividade e a constância vigilante das enfermeiras não abdicava do rigor. O repouso da manhã e da tarde eram lei, mas a gestão do tempo restante dependia de cada um. O rádio do meu avô acompanhava-me o descanso mudamente, a fazer paciências sobre a mesinha ao lado da cadeira. Logo que as colegas se levantavam, ligava um botão urgente que lhe abria a voz, puxava das almofadas e recomeçava a ler um livro  ou a escrever as minhas longas cartas, decerto para castigo das poucas pessoas que as recebiam. Nessa cama de rua com certo ar de garridice bisbilhoteira, iniciei o bordado em ponto cruz numa toalha de mesa do sanatório que, a despeito de ter ensinado a um ror de gente, ninguém se propôs continuar; conversei longamente com colegas e enfermeiras; porfiei em ensinar a ler uma colega que breve me enjoou porque aprender dava trabalho e ler era muito aborrecido; escrevi aerogramas diários em nome dessa jovem que não queria aprender, a inventar uma relação que não existia e o resultado foi bastante imprevisto; ouvi muito desabafo de enfermeiras, muita queixa de amor, algumas lágrimas inevitáveis, dei por muita vida em espera, dentro e fora daquele casarão. As enfermeiras comentavam que os passantes olhavam a minha cadeira e gostavam de se chegar, a conversar um bocadinho. Então, o regulamento não autorizava os homens a parar nas nossas varandas; passavam vários, todos num olá breve. 
Sinto profunda ternura pela gente boa que ali encontrei, que me fez bem e acarinhou, o sector masculino a abrir alas para entrarmos primeiro no refeitório, deixem passar a nossa menina. 
A verdade é que o sanatório foi um bálsamo na minha vida. Ele inteiro foi a minha cadeira de repouso. E tanto a necessitava depois de tão funda guerra.

 (continua)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

História com Camas

Aos dezassete anos dormi pela primeira vez fora de casa. Em permanência. Quatro aspirantes a professoras dentro de uma instituição religiosa que acolhia crianças desamparadas. Aparentemente, não correspondíamos à condição – todas tínhamos família – pelo que dormíamos no fundo da camarata das médias, uma cortina a separar-nos. Tenho dessas camas uma matinal memória de luz, palmas e bons colchões. Sobrevivente de um colchão de esponja migada, os meus dedos correram com inusitado prazer um colchão a sério, que o corpo agradeceu deliciado. Depois de fins-de-semana complicados e insones, suponho que adormecia de imediato, mal o corpo derrubava sobre ele, num fundo de respirações de justo sono - as garotas adormeciam muito antes de nos deitarmos - que me sossegavam. Todas as manhãs um súbito de luz eléctrica e uma revoada de palmas nos feria sono e ouvidos. E, enquanto as médias ajoelhavam para rezar, nós acordávamos. Não tinha acesso à camarata – só podíamos entrar depois das vinte e uma horas –, a carga de preocupação era grande e, para lá da cortina, havia mais de vinte pessoas adormecidas. Por tais razões a cama servia  o propósito, propiciava-me o descanso. Como se a irmã das médias, que dormia com elas na camarata, me guardasse também o sono e isso o trouxesse calmamente, apagando tudo. E trazia. Convenço-me hoje que devo a esse tempo uns meses de resistência.  
Porém, aos dezoito, alguma coisa aconteceu na instituição. Mudou a directora e a equipa de professoras aspirantes dissolveu. Sozinha, fui integrada na camarata das meninas crescidas. Aprendi a rezar sentada na cama, a vestir-me e despir-me sem mostrar o corpo. E outras normas.
Nesse ano fiz serões maiores, preocupei-me e chorei mais, a doença e a tristeza foram fazendo ninho sem ninguém dar conta, eu a estranhar coisas parvas que nunca tinha sentido e não fazia ideia de onde vinham, os médicos a que ia, é gripe; Eu, mas não estou constipada.... Passavam-me uma receita para a mão, sorriam-me e despediam-me sem mais quê. Atribuíam a magreza ao fim do curso e natural excesso de trabalho. E a olhar-me a figura que nesse tempo até era airosa, receitei umas vitaminas.
Entretanto, a camarata perdera o efeito sedativo do ano anterior. Ouvia o respirar das outras; da minha irmã tão pequenina, a meu lado, o rostozinho a emergir da dobra do lençol que tanta vez lhe ajeitei no sono solto (a irmã responsável apiedara-se dela e juntou-a a mim na camarata, mesmo sem  idade para pertencer às crescidas); as idas e vindas da irmã das crescidas que, tal como eu, não dormia e tanta vez nos encontrámos as duas no deserto do corredor de dominó em ângulos rectos sobre o claustro, a sentinela difusa da luz de presença da camarata a vigiar o perfil dos armários. A irmã que, liberta do toucado, cabelo curto e castanho, tinha um ar gaiato e sonhador. Eu, enfiada num camisão informe. Sorríamos uma à outra e desejávamo-nos boa noite, a sua voz fina a acompanhar-me até à cama, na ternura que eu precisava imaginar, mas quem sabe era verdade. Porém, cada manhã apagava a noite. A irmã, toucada pelo véu quotidiano, renovava-se impermeável. Contudo, quando a febre me engolia hora a hora e eu resvalava calmamente para a morte, desimportada do mundo, a zeladora da mesa no refeitório, uma angolana da minha idade, irmã ela não come nem fala. A irmã arrastou-me escada acima, abriu a camarata, quase me deitou, a roupa a pegar-se-me ao corpo e às mãos desacertadas de fechos botões. Pôs-me um termómetro preocupado que a tornou ainda mais alta. Em seguida, chamou o médico, hábito a roçagar corredor fora, os quadrados pretos e brancos uns para os outros, em alarme de lustro, onde é que ela vai que quase voa. E nessa hora vi-a de novo sem o véu, uma rapariga aflita. Ou foi da febre. Talvez.  
Depois, por entre peripécias de pouco jeito que me atrasaram por algum tempo, fui internada no pavilhão das infecto-contagiosas. Evidente, mudei de cama.

 (continua)

sábado, 6 de setembro de 2014

História com Camas

Aos onze anos, os meus pés a espreitarem por entre os ferros da bandeira da cama de ferro, ganhei um divã e inaugurei as minhas noites aerodinâmicas. Não sei se já tinha visto algum, mas ardia em curiosidade com um estrado todo em molas e um colchão completamente diferente, as camisas de milho substituídas por bocadinhos de espuma parecidos com a esponja do banho. Extraordinário. Dormir num colchão multicolor, com bocadinhos de esponja do banho, era de certeza bom. Da primeira vez tive mesmo alguma dificuldade em subir. Um colchão de esponja partida sobre um divã de molas muito flexíveis era um desábito e um nunca acabar de balanços. Mas todas as mulheres da aldeia fugiam dos carolos das camisas de milho, do restolhar ao mínimo movimento, das comichões que alastravam pelo braço ao meter a mão no colchão e mexer as palhas. Os novos colchões inflavam de qualidades, surgiam medicinais, tão fofinhos, tão quentinhos, a gente deita-se e a esponja ajeita-se ao corpo, macia que só visto. E não faltavam citações: os pais velhotes dormiam muito melhor, sentiam menos as dores, e etc, etc.
Longe de mim deitar culpas para o colchão de esponja que me acompanhou no quarto do fundo, ao longo de toda a adolescência. Mas a verdade é que nunca me habituei convenientemente ao baloiço e logo que uma das minhas irmãs cresceu, passei o divã. Também é certo que por mais que sonhasse que caía de muito alto, não voltei ao tapete que não havia, a cova em que dormia guardava-me de tais arroubos. Se calhava de sonhar com o Silveira maneta a perseguir-me escarninho, a esponja também me defendia; na câmara lenta de apanhar-me, os dedos dele chegavam-me sempre primeiro às costas e acordava em aflição, mas logo sentia os flocos da esponja junto à coluna, a proteger-me onde a mão dele preferia. E não foram poucas as noites em que ajeitei a esponja para impedir aquele braço diabólico. No entanto, também foi útil de motu próprio: o estrado de molas que vergava sem destino escondia os livros que eu entendesse e cabia sempre mais um; e depois podia acender uma pilha e ler sob os lençóis. Esclareço, não eram livros proibidos, eram apenas livros. É claro que a minha mãe os descobria porque era ela quem me fazia a cama e esquecia-me de os retirar. Mas nunca uma palavra, um olhar ou ralhete sobre.
Quando me emprestaram os primeiros livros proibidos, fui a correr lê-los. Decepção. “O crime do Padre Amaro” e “O Primo Basílio” pareceram-me romances normalíssimos e muito bem escritos. O meu pai apregoava, com exemplificação prática e geográfica, que os padres tinham as amantes que queriam e estavam cheios de filhos por todo o lado; ora, o Padre Amaro só tinha uma, Amélia, o que me parecia até um acto de amor maior; Por outro lado, Luísa de O Primo Basílio era a minha heroína, loira, branquinha, com cabelo fino e bonito; de certeza, bem penteado, que Eça de Queirós gastava folhas a falar das qualidades de um delicado fio esquecido na almofada e do que por ele se podia adivinhar da dama. E depois, sentia peninha dela, tinha ganas de a proteger, escravizada pela malvadíssima serva. Tudo isto só por gostar de dormir com o primo, sendo casada; como se o marido lá na caça ou no lugar para onde foi não tivesse os mesmos intentos. A minha aldeia tinha vários casos destes, resolvidos em bem (é verdade que ninguém tinha criadas, saiotes engomados e outros avios) e a morte da minha heroína foi-me surpresa triste. Não perdoei ao Eça. Anos de rancor. A prender o burro pela Luisinha. Só mais tarde, já muito adulta no BI, entendi que os dois livros estavam no índex do colégio, mas eram, afinal, literatura normal. Fiquei mais descansada.


 (continua)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

História com Camas

Um pouco mais tarde, qual sombra na peugada do meu jovem tio, vivi o meu momento ecológico e de “faça você mesmo”: camas de ervas e ramos de árvore, postas em cabanas de cana.  
O meu tio cortava as canas todas do mesmo tamanho, deitava-as umas ao lado das outras, atava-as com arame ou corda e fazia duas paliçadas que erguia depois em A, uma contra a outra. Mal as punha de pé e as unia em cima, espetava no chão o afiado das canas e eu passava a brincar no seu interior enquanto ele fazia a parte mais difícil, os dois triângulos que iriam fechar a “nossa” cabana. Unidas as partes, num dos triângulos abria uma porta e uma janela e eu eufórica, a entrar e a sair e a experimentar o nosso fecho artesanal. Ou assomando à janela vezes inúmeras. Quando me armava em carochinha,nome que me usava frequente, o tio ria, dava-me beijos nas bochechas, fazia-me uma festa na franja e chamava-me miga. E repetíamos vezes sem conta enquanto cantávamos as canções que me ensinava. A construção destas cabanas levava-nos (a ele) dois dias, mas dormia em nossa casa, talvez na cozinha ou na vizinha que era nossa prima. Nesse tempo, o meu pai trabalhava longe, saía à segunda de madrugada e regressava sábado à noitinha. Eu ficava no céu: sem gritos e sustos, sem dedos de tábua a arredar-me ou a puxar-me e com o meu tio preferido por perto. Afirma-se que as crianças são felizes porque não sabem que são. Contudo, eu tinha consciência de ser feliz.
 Concluída a obra, o meu tio punha pés ao caminho e ia pernoitar a casa. Voltava na manhã seguinte, com um saco grande cheio de livros e de jogos que ganhava nos concursos literários e de canto do colégio salesiano. Carregava-o no carro de madeira que usava para irmos aos cascabulhos e me passear por covas e cabeços eu a fazer, âââââ..., aos soluços por causa das saliências de pedras e raízes sob as rodas do carro a que ele imprimia velocidade, os meus dedos a enclavinhar nas paredes laterais, agarra-te bem, agarra-te bem, avisos que me pareciam nascer das suas costas em esforço.  
Depois de tudo arrumado no nosso esconderijo, líamos sobre um colchão de época - eucalipto, rosmaninho, tremocilha - que tapávamos com uma saca a rescender. Ainda hoje não entendo a razão por que não gosto de jogos, tanto jogámos o dominó de animais, jogo da Glória e cartas do jogo do burro, sentados gravemente no meio das cabanas, eu mais interessada nos bonecos do dominó que no jogo. Havia no ar a tonalidade única e esverdeada das canas atravessadas de luz e até a minha mãe gostava de ir espreitar-nos e ficar a ler um bocadinho ou a jogar dominó connosco, as vizinhas  embasbacadas, a pararem a lida, o jeito que ele tem. E voltavam aos seus afazeres.
Entretanto, esquecidos do mundo, jogávamos e líamos dias inteiros, até nos doer a cabeça. Foi assim que li os livros do Fantasma e do Rip Kirby e abordei os romances da minha tia mais nova. Não entendia quase nada, mas o facto de juntar palavras e saber novos significados dava-me um fôlego imbatível, semeado de interrupções constantes às leituras do meu companheiro. Por vezes, ele enjoava-me e mentia-me sobre ir embora, entregando-me aos cuidados de minha mãe; e aproveitava para ficar a ler descansadamente. Estas idas e vindas súbitas intrigavam-me sobremaneira sem me instaurarem dúvida. Quando "chegava", logo o abraçava contente, a submergi-lo de estranheza: como tinha conseguido em tão pouco tempo, se tinha ido e vindo a correr, se chegado a meio voltara para trás, por que tinha regressado, etc. No final da semana, o meu tio partia e eu ficava meia atoleimada, entre desgosto e orgulho, a tomar conta da nossa cabana. Mal o meu pai chegava, contava-lhe os prodígios operados; ele enraivava no meu enlevo e espatifava tudo. Depois, queimava as canas a resmungar, se quer fazer coisas, trabalhe; há aí muita terra para cavar.
 Lá se ia o meu ambiente verde e o cheirinho de eucalipto que ainda hoje me chama. É claro que debulhava em lágrimas com soluços de corpo inteiro. Sem outro resultado que uns gritos bem lançados que faziam as vizinhas assomar à rede da porta da cozinha e me descompunham o todo, em fuga para lugar seguro.
Por vezes, se o meu tio voltava, chorávamos os dois. E ele, deixa, o tio nas próximas férias faz outra, agora vamos a um joguinho de dominó, tá bem?
 (continua)

terça-feira, 2 de setembro de 2014

História com Camas

As histórias que eu sei! Umas por tê-las vivido, outras porque aconteceram dentro ou fora de mim. E ainda as que nunca foram história, mas consigo agora vê-las assim. Como por exemplo a história das camas. Das minhas camas. Ainda não consegui entender por que razão não existem mais histórias com camas. Esclareço: histórias de cama todos contam, à boca fechada ou às escâncaras, em doce penumbra ou penumbrosas, grosseiras ou made in heaven, realistas e técnicas ou românticas e mergulhadas em souplesse. Deixo-as a contadores profissionais, que, feitos corajosos, mergulham de cabeça no maior enredo da humanidade, não existe coisa mais simples nem de mais extensa e abrangente interpretação. Tenciono, portanto, perder-me em pormenores de interesse exclusivo que pressuponho dissemelhantes de apimentados amores, bem e mal resolvidos, a duas, uma ou mais vozes. Quem não queira ler desista já, porque me preenchi toda de palavras para chamar aqui o raro lugar onde corpo e alma se abandonam e abandonados se restituem: as camas
Quando eu nasci, morreu na minha aldeia uma mulher ainda jovem e foi convicção geral que lhe herdei a alma. Suspeito que acertaram, a minha alma é enrugada em demasia. Portanto, ou a reencarnação existe, ou nasci com defeito que não é o tal pecado original que nem pressentimos, cujo até não nos faz diferença nenhuma, já que ninguém fica a rir. No entanto, não terá sido a natureza da alma que me levou para um caixotinho de fruta forrado com uma almofada e uns lençóis de ocasião que a solicitude desembaraçada da minha avó aprestou, rasgando um lençol seu que me vestiu e tapou. Devo a minha primeira cama, entre outros múltiplos e menores factores, à condição de miséria que o grosso dos portugueses vivia. Uma pobreza funda e sem resgate a que os políticos da época condenaram este povo que desde sempre lhes sofre os desvarios. Hoje, bem gostaria de atirar o caixote da fruta à cabeça de Oliveira Salazar e Américo Tomaz, mas tal não é possível. Sobra-me a intenção tornada propósito: no que dependa de mim, tal situação de miséria não se repete.
Esse berço improvisado, onde as gentes só de olhar vaticinavam num sussurro, “morre de certeza; é pequena demais, não se aguenta”, não me existe na memória e soube dele por mãe e avó.
A lembrança mais antiga de um leito vem-me da “minha caminha”. A “minha caminha” era o meu único bem e soube-me sempre a colchões de nuvem: em ferro, estreita - à época era-me bem larga -, com florinhas em vez de maçanetas, pintada em cor-de-rosa pálido, hoje dito “um tom pastel”. Não conheci cama mais comprida e que mais me tenha agradado. Se acaso lhe experimentava o fim, chegava com a cabeça a meio do comprimento da cama e os meus pés por mais que os esticasse, não tocavam na grade posterior. Concluía portanto, e com propriedade, que era enorme. Nela vivi experiências inesquecíveis: à parte as vezes em que os pesadelos me faziam cair e a achava alta demais, era perfeita. O meu tio ensinou-me a fazer uma barraquinha com o lençol de cima sobre os espaldares, tirávamos as quatro flores – que desenroscavam – esticávamos o lençol e depois voltávamos a colocar as flores sobre ele. E pronto. Depois íamos os dois ler, deitados na cama transformada em tenda. A pouca idade circunscrevia-me aos bonecos do Fantasma e do detective Rip Kirby e sua secretária suprema, óculos mirabolantes, deveras apreciável. Uma mola da roupa a prender o lençol e eu ficava a espreitar por uma janelinha; levar brinquedos era proibido, sujavam os lençóis. O meu tio entretinha-se a ler o completo de uma tarde, mas eu pouco aguentava e breve lhe pedia que me vestisse e calçasse para ir à rua. 
             Não me lembro de gostar da cama dos meus pais, havia nela um cheiro estranho e o meu pai não me pegava como o meu tio ou o meu avô, tinha dedos muito duros que me magoavam braços e pernas e não me fazia cavalinhos como eles. O meu pai não aprendera o tempero da seda carinhosa que passava nos dois. Há amores difíceis.
(continua)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Quotidiano

A vida é instante a chamar-nos. Bom, chamará com mais força a uns que a outros, que há quem seja duro de ouvido. Aprecio-lhe sobretudo as pausas. São tempos livres, jardins abertos, talhados a golpes de coração. Que é tempo livre o que passamos com amigos ou a preparar-lhes a chegada. Nos evangelhos há uma história – chama-se parábola - do filho pródigo que regressa e a quem o pai recebe com uma festança a desbundar que rói de ciúme o irmão que jamais o abandonou. Mas a festa não carece de filho, nem que seja pródigo. Bastam uns laivos de amor, simpatia, agradabilidade, e todo o regresso é uma alegria. Salvo, claro, se fomos convidados a sair. Não podemos regressar onde não nos querem. Poder, podemos, mas não faz bem à pele e amarfanha um bocadinho a alma. Garanto que, nestes casos raros, até espreitar é invasão. Se acontece, sentimo-nos entre larápio e tapete, o que também, diga-se, não gratifica por aí além.
Salvamo-nos nesses amigos fiéis. Na verdade descansamos neles, estamos de chinelo enfiado; ali o mundo não cai e nem o vento é agreste. Os amigos ajudam a construir o quotidiano do coração. Oh! O resto do mundo pode ser urgente, inadiável, novidade intrínseca, se tivermos gente deste calibre, sobrevivemos.
 Por acaso tive um dia quotidiano.