quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Zita do Caco

De manhã, chega-se à cidade em rompantes de pressa. Mesmo os condutores de viaturas individuais, de um e outro género, usam perfil sorumbático, fisgado na competição com outros veículos, como se em vez de um acesso citadino corram o grande prémio. As máquinas passam concentradas em si, a responder a pedais, alavancas, botões e outros artefactos de que a mão do homem se socorre – sou o rei da criação, ó pra mim a conduzir – e o ponteiro lança-se a ultrapassar os dois dígitos e só acalma aos primeiros semáforos. 
Ao mesmo tempo, as gares ferroviárias borbulham de ruído e vagas de gente cuspida das carruagens. E cada comboio repete a cena, enchem e esvaziam momentâneas e resta um cão apalermado no cais, rabo entre as pernas numa hesitação de ir aonde, como quem não aprendeu pressas ou conhece afeição. Ninguém olha o vizinho. A multidão segue a apertar casacos e agasalhos e, não fora o semblante fechado, a avaliar pela velocidade de pés, dir-se-ia que caminham em direcção a um bem inefável. 
A cerca de cento e cinquenta metros, outra horda mergulha na estação de camionagem que arrota manobras intestinas, exalando dióxido de carbono, resultado de digestões difíceis em corpos de segunda mão que servem os portugueses e são lixo de alemães e outros europeus do norte. Lixo pago. E ainda assim, mais confortáveis que os antecessores nacionais. Foi ali que encontrei Zita do Caco. Como tanta gente, eu surgira de um vómito de comboio apressado e, em força de hábito, empurrei a porta do café junto à rodoviária. Extasiava no sabor e perfume da bica  quando uma mulher de meia-idade, apertada em gorro e cachecol sobre impermeável escuro, me atravessou a retina. Contudo, o ponto mais saliente da sua figura era o apêndice que transportava, um saco que a repuxava toda para o lado, balança em desequilíbrio, a mão em garra sobre a grossura de duas asas maciças que destoavam. Pousei a chávena, coloquei as moedas sobre o balcão e atardei-me por momentos a impregnar do aroma de café e pão torrado, contente do calor  olfactivo que a casa resplendia, irrisória promessa de um dia sem nuvens. Entretanto, ela,  os pés numa indecisão de ora à frente ora atrás, parava o corpo e arreava o peso a interpelar um transeunte que apontava a rua em frente, junto à igreja da Misericórdia. Maquinal, a mulher abanava a cabeça, olhos compenetrados na amplitude gestual do interlocutor, a mão colada na asa do carrego. Escorria-lhe da figura o insólito de objecto fora da prateleira. Talvez os gestos fossem comedidos em demasia. Ou seriam as pernas e pés a denunciar-lhe o receio, que muito nos revela a forma como pisamos. Retomou caminho e  já esvanecia nevoeiro dentro, na esquina da igreja, quando me decidi a sair. Ainda a fechar os últimos botões, empurrei a porta e estuguei o passo, queria apanhar o barco das oito e quarenta e cinco.
Percorri ruelas ensonadas e friorentas, lamentosas da sua estreiteza, suspirosas do sol que faltava e entretive-me a contornar viaturas quase coladas umas nas outras e encostadas a passeios onde gente tão apressada como eu se deslocava aos repelões. Atravessei a Luísa Toddi  já com três filas de viaturas e autocarros nos semáforos e dirigi-me para a beira rio, mau grado o vento húmido que soprava.Junto ao porto, o de sempre: a azáfama matinal de guindastes e barcos, pessoas diminutas na dimensão das gruas. Dirigi-me ao cais de embarque para viaturas. Os veículos, quais garotos bem comportados, alinhados em bicha silenciosa e ordeira, aguardavam boleia para a travessia. Comecei a ultrapassá-los. A manhã não convidava a vidros abertos e os condutores, pintos no quente do ovo, olhavam brevemente o barco que atracava, bocados impondo-se aos olhos, a atravessar a névoa: uma risca laranja que se interrompia a meio como se ao pintor faltasse tinta, o agudo da proa, uma incompleta fiada de janelas. Depois, desviavam a atenção para a rádio, mudavam a frequência, ouviam o humorista de serviço e esfregavam as mãos uma na outra a espantar a frialdade.
Ao lançar da ponte, a pressa automóvel precipita e o barco inicia a desova. Ainda não saíram os últimos veículos e já a fila começa a mover-se no cais, primeiro lenta, depois em rodado regular. Oiço o deslizar dos pneus no alcatrão molhado, depois a zunida na ponte de ferro e o breve estalido dos veículos na transição da ponte para o barco. Começo a correr, sei que a arrumação de viaturas é rápida. Obedientes, os condutores ajeitam-nas em lugar que a mão do funcionário destina e salvaguardam espaço a vindouros. 

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Viver

A frequência com que desatinamos da sorte marca-nos o carácter. Porém, e a vida é prova irrefutável, a sorte tem rota circular, dá sempre a volta (por gosto amarrado às elipses condescendo, pode ser elíptica a curva). Portuguesmente falando, algum bem dela resulta. Há-de irromper.
Falta assertividade ao parágrafo acima. Releio e verifico que as ideias meio dúbias, a entortar  na concretude. Sugestivo, o delete espreita.  Resisto-lhe a gosto e não por esforço da vontade, acontece que entre duas hipóteses - deletar uma ideia ou conservá-la na sua impureza -  prefiro a segunda. Julgo que seja a noção de irremediável o que me tolhe os dedos. É que substituir palavras ou expressões é dar à ideia um acinte de maior rigor, aproximar a escrita dela. Mas deletar um parágrafo é matá-la. A perda da ideia assusta-me. Ora, esta tendência conservadora, como é sabido, não previne dissabores. 
Extrapolando preâmbulos e subjectividades mais largas: o que pretendo fixar em letra portuguesa é que a boa e má sorte existem e dependem em parte de causas externas, acontecimentos e pessoas, estados e situações. E outros que não me ocorrem. Mas também de cada homem. E lá vem a determinante e perturbadora causa interna.
Fiz em tempos a apologia da vontade, amava Sartre de paixão (a mente e não o homem que os vesgos impressionam-me um bocado) e tinha a ideia de que o ser humano era um camião a fazer estrada em caminhos inaugurais. A pulso. Comandado por essa vontade inquebrável e a mesma ao longo dos tempos. Ora a vontade não é inquebrável, o homem não desbrava nada, dentro dele há um matagal sem destino e às vezes sem direcção, e coisa alguma é a mesma ao longo dos tempos. Na correnteza dos anos (muitos), descobri, ó coisa incrível, que  o que mais importa na sorte (boa e má ou assim-assim) é a atitude de recebê-la. O como de olhá-la. Dir-me-ão, tanto ano para encostares  a coisa tão pequena, um átomo na poeira universal. Ah, pois é. Mas é o meu átomo. Tenho plena consciência que toda a gente descobre isto. Mais tarde. Ou mais cedo. Mas já não busco os tais caminhos inaugurais. O que espero dos outros homens, sinceramente e para o seu próprio bem, é que também eles façam a sua descoberta. Não vale recolher do chão a certeza dos outros, ou retirá-la de sobre a mesa, ou fisgá-la de um livro. Porque as vitais certezas de outrém não são firmes em nós. Essa é que é essa.
E agora pode vir tudo, porque me encontro uma pessoa de sorte. E como já vivi muito ano, de muita sorte. Herdei uma alma – bem sei que não me pertence e só a uso – que se comove com as pequenas coisas (o que dá muito jeito porque as grandes não me aparecem), vivo a menos de 100 km de Lisboa e posso, de vez em quando, passear e ver e ouvir o que aprecio. O facto de ser esporádico  aumenta-me o desejo e os planos. E tenho duas ou três amigas que gostam de mim e vejo pouco; mas se acontece, inunda-se-me o coração. E posso comprar um ou outro livro que aprecio um imenso, desde o estar a comprá-lo ou até antes; faz-me parte do prazer pensar em lê-lo. E gosto das manhãs e do pequeno-almoço com cheiro a café pela casa. E ainda posso nadar (não sei até quando, mas isso faz mais raro o gosto e o momento). E escrevo se me apetece. Puro prazer, sim. O meu amor à escrita deve ser verdade porque até actas e listas de compras me entusiasmam.

E as coisas maiores? Deixo. Despojo-me. A alegria está sempre em botão. Ora os botões são lindos, mas quase sempre diminutos.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

António Zambujo

António Zambujo é Alentejo que chega à cidade. Andam-lhe os alentejanos nos meandros do canto como quem dá a volta ao monte e os seus apartes em palco tomam-nos eles por voz da terra. Quando justifica, meio a brincar, o facto de cantar sentado como verdadeiro alentejano que é, “eu gosto, é mais confortável – e com sorriso maroto -  encolhe-se a bochinha”, a afirmação abre um claro de riso na plateia. Os alentejanos presentes – e há muitos, Alentejo é lugar de migrações - sorriem a reconhecer-se. São conterrâneos em  recuperação de raíz, a relembrar o prazer de ajeitar  o boné sobre os olhos, navalha aberta à rodela fininha de chouriço, um quadrado de pão com preceito, pronto a embarque conjunto. Ouvem-no e alargam no assento, refastelam-se a regressar ao fundo de quem são, orgulhos carinhosos derretendo ao som da terra amada que toda perpassa na dolência sentida do concerto. Depois de Amália, é em António Zambujo que escutam o fado em prece. Bem sabem, há outras vozes. Grandes e bons fadistas, gente nova, de valor. Mas nenhum(a) canta o fado alentejanamente, vagares sinuosos a enlear no sentimento. A melodia é mais docemente triste na tirania suave do cantar de além Tejo, permeado por mornas e coladeras, com um quê de trópico brasileiro. Se fecharmos os olhos, vemos a casa fechada e irrecuperável de amores antigos, a chave no cofre do Tejo; e existe “a lambreta” que para na beira da esperança; fazem-nos pirraça as urgências exuberantes do par de “flagrante”; amamos o Z no decote aberto e simpatizamos com a garota do pica. O certo é que na voz de António Zambujo as palavras emprestadas ganham marca d’água,  autentificam em fundo requebrado de alma Alentejana.
Enche salas de espectáculo este rapaz baixinho de cabelo ralo e rosto de ajudante de taberna cujas mãos dedilham as cordas da guitarra, mas podiam limpar o balcão com um trapo sujo de vinho. Quando ele entra em palco todo nove horas,  posto em fato e gravata, quase parece uma traição ao avental e boné. Mas, depois da primeira canção, elide-se a roupa e a figura e resta o que enche as salas, uma voz quente de arrebatar, que sentimos tão nossa que mais não pode ser. António Zambujo é como o sobreiro plantado na paisagem: insubstituível.
Foi-me apresentado por uma amiga muito querida, um cd a tocar dentro do carro. E ela, “escuta bem e diz-me se gostas”. Mas sabia que sim, o olhar cheio de certezas alegres. Atentei e saiu-me, “tem voz de alentejano e canta tão bem!”. Ela a dar-me a sua avaliação de bandeja, “não é um encanto? Pensei logo que ias gostar” e eu perdida e achada na escuta, “há um toque de Cabo Verde e Brasil misturados na voz deste alentejano chapado." Ela a certificar o contentamento, “mas gostas? É que pensei logo em ti quando o ouvi”.
E na voz do Alentejo solarengo os alentejanos gostam de fado. Derretem no seu jeito arrastado de entoá-lo, a torná-lo um choradinho manso da região donde vêm e que não tinha ainda quem a cantasse tão propriamente. A verdade é que a “Sapateia” açoreana não lhe cai pior que o fado ou o canto espanhol, ou, supremo gosto, o cante alentejano. E também é verdade que, em cada espectáculo, ele puxa pelo Alentejo e não o faz apenas nas canções. Como é verdade que há nele um ecletismo de ser aprendiz eterno e se deixar misturar sem se perder na mistura, que lhe dá esse sabor novo, o vai apurando. Este rapaz – é um rapaz, pois - não se fecha às novas experiências, canta canções de outros autores que  - eles que me desculpem – só beneficiam com o seu peculiar.
Tudo em António Zambujo parece fácil notando-se que já foi difícil. O canto, a guitarra, as graças que entremeia nos espectáculos – ele que se diz tímido -, as pessoas que convida. Aprecia e respeita o público. A forma airosa e sempre brincalhona de aceitar os elogios das garotas presentes, o carinho embevecido com que o escutam os alentejanos dos quatro costados e os outros. É assim como se ele seja família chegada, lá de casa.

Muito obrigada, António.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Cidades que Falam e Murmuram

                Conheci-a éramos jovens. Ou os meus olhos eram jovens e assim a olhavam. Insisto: éramos jovens. As duas. Ordenada pela cronologia, foi a minha segunda cidade. A primeira, Évora, não me seduziu para lá do período inicial, cidade antiga e provinciana, portas cerradas ao crepúsculo, submersa em invernos de frio gélido que associo a claustros varridos de vento e encerados a cieiro de sete da manhã, nós dos dedos inchando gretas sanguinolentas. Cidade onde o ar do verão queimava no rosto de homens extenuados, as pedras milenares dos monumentos escaldando agonias por pequenas fendas, suspiros de morte às três da tarde. Évora guardada por mil portas intransitáveis e proibidas, cidade onde desgostos vitais me mudaram rumo e mente. Évora-gólgota que o meu ser de polvo afasta em inconsciente força de braços.
            Depois da cidade-museu, por um daqueles acasos tristes com términus feliz, chegou-me o ar marítimo que é de rio, com seu cheiro misturado de peixe, limos e sal, pleno de vozes que arrastam erres, o cansaço de autocarros urbanos ressumando o encardido de sujidade piscatória e hormonas, agonia de narizes engomados. Caminhei-lhe as ruas, ombro a ombro com  pessoas leves e retocadas, roupas que riam mal o sol repelia névoas. Junto à linha do horizonte, em contemplação aquosa, o corpo da serra, impúdico e reclinado, nudez quase abusiva, enlanguescia. E o rio a alargar. Que dizem azul e sempre me foi verde. Mesmo a água salgada do outro lado, a saltear ondas preguiçosas, esverdeava em pupilas espantadas. Foi um amor lento, imperfeitamente perfeito. Que Setúbal mereceu. Os anos voaram sobre nós e assisti-lhe arroubos da política, fúrias futebolísticas, festas de barcos engalanados que volteavam no estuário gratos a uma Senhora invisível e protectora, brigas feias de porto e bebedeira, assaltos de esticão, drogados numa bandalheira pelos bancos, alheios a tudo, lábios e pele em aguda denúncia.
Notei-lhe a transfiguração quando, sobrecarregada de gente, foi deixando cair a juventude. Assisti-lhe a invasão de varizes nas artérias, escalavrões na arquitectura,  fundas cicatrizes talhadas por pedreiros amadores disfarçados de empreiteiro inconsciente e que ninguém parou. Democrática mas escaqueirada de alma e corpo, foi-se escangalhando, apavorada de mudança e quebra de identidade. Sobra-lhe o desgosto da beleza ausente, aberta à selvajaria e ao desleixo que lhe sujou paredes e destruíu o físico. Como qualquer ser que se preza, Setúbal rói-se da velhice prematura, da deterioração invasiva, da falta de critério no crescimento urbano. Dói-lhe a ausência do tranquilo envelhecer, a impossibilidade de transpirar a madurez de ternura que abortou e lhe poliu paciência  engastada em conformismo.  
Só o rio quase idêntico. Nele toda se debruça anelante, como noiva envelhecida aguardando barco que não volta.  É ali, no cais que se prolonga, que a cidade se imagina. E eu que sou alheia e sinto por ela uma ternura toda humana, vou desfolhando um álbum antigo onde inteira se revê. 
Mas o seu sorriso debruçado vale bem o piar de todas as gaivotas.

(continua)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Por vezes, mesmo durante o sono, a sensibilidade mantém uma atenção de relógio interior, antena captando pensamentos longínquos que a estremecem. Dentro da sonolência nocturna, os pensamentos são raios rasgando rios de silêncio.
E não há voz com admiração bastante para afirmar o milagre.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Azar


Todas as coisas têm a sua vez primeira. Por algumas esperamos anos a fio, esvaídos em cansaço que rodeamos de imprecações danosas, cacos de vidro a inibir a esperança. Não foi o caso. A primeira ópera aconteceu-lhe. Ou, completamente expurgada de casualidade, foi mera consequência do seu carácter: escolheu-a ao acaso e sem lhe saber o género, não buscou informação do que fosse e arrumou-a logo que o concreto da vida se impôs repleto de factos, e pessoas, e horas, e pormenores ínfimos batendo-se por um espaço. Sem razão, fixou um horário que não era e apôs-lhe a súmula: é trabalho de orquestra, há um maestro e tem momentos de canto, deve ser isso.

E hoje é o dia. Logo, imprime o bilhete, verifica o engano e parte em companhia, a calcular a demora da viagem, avaliando tarefas que deixou inacabadas e esquecimentos inevitáveis. O telemóvel. Por exemplo. Chega e logo as suas mãos circunscritas ao fogão, a preparar um agrado de paladar, gosto para si insalubre por  apressado. Parte de novo. Só. À descoberta. Muito pouco sabe de Mozart e também por isso o escolheu.

Como de hábito, chega sobre a hora. Senta-se esbaforida meditando naquele ansiado hiato de espera, o campo de hipóteses uma vastidão ainda em aberto. Ilumina-se o palco e surgem os elementos da orquestra. É um campo incrível o que as mãos transportam e treinaram na morosidade das horas, harmonia conquistada ao esforço, grácil suavidade com morada inscrita na persistência. Em tons de Inverno, acintosa face ao “casual” da plateia, a elegância das mulheres destaca. Usam traje longo, braços sombreados por ligeireza de véus que os homens acompanham de fraque, em rigor de pés que refulgem verniz. A entrada dos músicos esparge uma beleza vagarosa que a reanima. Caminham  sem pressas, o instrumento na sua frente, mãos em cuidados de flor a que a brisa insuspeita pode roubar pétalas. E vão tomando posse do lugar que habitarão em plenitude. Movem-se como se em vez do palco pisem nuvens e seja ali o Olimpo. A plateia não lhes existe. No lugar da muita gente erguem uma parede, concentram-se, isolados na função. Ela anota que se vão entretendo, murmúrios surdinados de um a outro, gestos de endireitar pautas e brevidade de acordes soltos, aqui e ali um sorriso para alguém do outro lado do maestro, ainda ausente. Pensa, estão a reconhecer-se como parte de um todo, a imbuir no papel.

A plateia olha-os expectante. Quem sabe, curiosa. Ou apenas distraída, aquietando-se. No ar, o som morno de vaga vai subsumindo na proporção directa dos pés em descanso. Se olharmos, pensa ela, estamos todos a existir entre a cabeça e a cintura; os mais baixos, talvez só a partir do peito. Porém, o maestro interrompe-lhe o delírio. Faz uma entrada sob palmas, cumprimenta, as luzes baixam incompreensíveis e o silêncio condensa, qual matéria. A um sinal seu, a música cresce e caminha sobre ele, avança alcançando as pessoas, a rodeá-las. Forte. Concêntrica. E ela revive o tamanho da saudade, sente-lhe o princípio de morte no prazer da harmonia que irradia.

Pensa no Mozart de Amadeus de que só viu o início e entende-o ali, em afirmação furiosa de vida, trocista, talvez até um pouco ingénuo. Ainda tudo é possível, não sabe que é uma ópera, ignora-lhe a história, desconhece o francês que a escreveu.

Mas não a move como a música sozinha. No belcanto ouve estridências que não são e lhe repugnam. Terá má vontade. Preconceito. Está armada contra ele. Contudo, salva-lhe o canto mais saudoso. Ou o mais infeliz, talvez. São ambos suaves. Que os agudos doem por dentro, esgatanham-lhe a cabeça até à dor física que não pára.

Sai zonza e apalermada para a noite, a respirar golfadas de poluição que lhe surge purificada, o barulho do trânsito numa toada agradável. Lisboa fecha-se em casa e recebe-a deserta de gente. Nos automóveis, pessoas ajeitadas em conforto, a enxotar o frio da noite que a si apraz. Sorri ao passar junto a uma casa apalaçada, a brancura translúcida de cortinas a resguardar indiscrições. Como será o espírito de quem vive imerso nesta beleza quotidiana, que preocupações escarafuncham a mente de tais pessoas. Pára um momento, admira-lhe a harmonia de linhas, o bom gosto da arquitectura de pormenor, o seu ser acabado e airoso de solar em serventia. Apetece-lhe atravessar a rua de novo, aproximar o rosto das grades, ficar ali a espreitar-lhe um jeito familiar esquecido, um sinal de humanidade que se lhe escape do hermetismo e garanta que não se plantou ali por magia, caída do nada, a espantar quem a descubra. Ah! Poder investigar-lhe o sinal inequívoco de não ser a casa encantada da floresta de betão que se esvai pela manhã. Mas, em vez disso, mergulhou na boca escancarada do metro.

 Dirá mais tarde das bodas de Fígaro, “Gostei; já vi uma ópera”. Contudo, bem o sabe, é diacronia a não repetir.