sexta-feira, 29 de março de 2013

O Rapaz de Bronze



Tenho mania de coleccionar alguns poucos autores e raro deixo a livraria sem que um deles a balançar-me no braço, contente de sair da estante. Se me move a busca de um preciso livro, saio com dois. Ontem, divaguei olhos por títulos e fui andando a tomar gosto a capas. Tenho em relação aos livros a atitude de alguns homens em garrafeira: embevecidos pertinazes, são ensimesmados contentes de si, enquanto assim. Mas Sophya. E o irresistível Rapaz de Bronze. De que só conhecia o título. Não vale disfarçar, gosto mesmo dos contos dela, assentam-me na idade, sei lá porquê. Amo-lhe a suprema elegância de onírico maravilhoso. A delicadeza das palavras que tão bem descrevem um mundo de faz de conta que existe afinal dentro de nós. A linha depurada e fina a delinear a essência das personagens.
Os contos da Poeta não coabitam com maldade a valer e até nos defeitos, alguma graça. E, por isso, toda a história é descarregada de sombras. E o resto é a poesia a brincar com o imaginário em jeito infantil e verdadeiro,
E eu sou uma flor. Poiso a minha cabeça na doçura da noite e as minhas mãos são frescas e perfumadas.
                Cativa-nos a verdade transparente, aquele leve perpassar de sentimentos fundos em elevação simples e não transitória, mão dada ao imaginário. Que o convoca:
Florinda – disse o Rapaz de Bronze -, vou-te ensinar um grande segredo: quando tu vires uma coisa, acredita nela, mesmo que todos digam que não é verdade.
E este segredo surge da confidência de Florinda que assistia a nocturnas conversas e danças entre as folhas de tília à beira do quarto e em que ninguém acreditava salvo, como se lê, o rapaz de bronze. E, contudo, existiam. O livro é mesmo sobre o aspecto outro que tem a realidade, se nocturna. E conta a festa das flores que, pela noite, andam e falam e sentem como as pessoas. Vivem num jardim maravilhoso onde o rapaz de bronze é rei; embora, à luz do dia, apenas estátua. E não esquece a importância dos cheiros e aromas que têm algumas flores pequeninas como a flor do Muguet, com quem o Nardo dançou atraído pelo odor.
E desconhecia esta flor miúda que tão bem serve a Sophya. Um impossível estilizado.
Não gosto do Cristo da agonia, que dele só entendo o humano grito:
Pai, se é possível afasta de mim este cálice!
Quem sabe, a flor do Muguet lhe perfumou os pés e o corpo quando as mulheres o prepararam já sendo nada. Quem sabe, se ao reviver ressumava ainda o desvelo perfumado dos unguentos. E apresentou a Tomé a ferida do lado, exposta em ausências de sangue. E, no ar coalhado de espanto, apenas um leve aroma a flor do Muguet.

Boa Páscoa


quinta-feira, 21 de março de 2013

E Se Deus Há...



O pensar adolescente é feroz. Alarga-se num mar de inocência que falha a justiça e salta sobre males quotidianos, como se o mundo um deserto apenas povoado dos sonhos e verdades que planta e faz florescer. Floresta intrincada de si sozinho, impõe-se a proliferar no grande de si mesmo, cego para o mais. Por isso, tudo me parecia fácil. A hipótese de que a Bernardette na minha terra, que não passa de um lugar e perde para qualquer aldeia, bastava-me; garantia-me que a iriamos receber.
A satisfação que me possuía arredou ses. Descontei a evidência da doença. Desviei o macilento grave da minha mãe que mirrava diária, à força de quase tudo deitar fora, o inchaço de uma perna a arrastar. Os médicos no IPO, a senhora não precisa voltar, agora vai ao seu médico. E ela sozinha no encapelado da doença, mas não estou curada, sinto-me cada vez pior; eles em pressas de pena, talvez, não podemos fazer mais nada por si. Ela e a doença. As duas. Perdidas nas ruas de Lisboa. A olhar para onde. Pedindo o quê. O pensamento dela, de certeza, os meus filhos.
Mas ultrapassei  tudo isto e não me assaltou a lembrança da tosse persistente a desfazer-lhe a vontade e roubar-nos o sono, eu a prometer impossíveis de terços diários e até a temida consagração religiosa. Noites e noites a elevar a fasquia das promessas à medida da tristeza em desesperança. A contar horas e meias horas no relógio da sala, enquanto a sistematicidade da tosse, imune a remédios e mezinhas, a arrancava de si mesma. A tosse  que rematava o trabalho do cancro e escavava no corpo as suas crateras, as minhas pálpebras a incharem sem préstimo. Mas um Deus barreira. Em rejeição determinada. Que nada quis do que ofereci e nem sequer me tomou quando propus a troca.
Talvez eu tenha querido esquecer essa aflição de loucura. Ou apenas uma vitória da idade, bandeira a agitar, estou aqui, existo. Quem sabe… Obliterei tudo: a nossa casa quase despida; o não termos maneira de alimentar tanta gente; a ausência de lugar para deitá-los; a minha doce mãe a quem já um tão excessivo no quotidiano.
                E talvez que um Deus compassivo. Na manhã seguinte, a mãe do meu primo, nossa tia preferida, chegou inesperada; uns dias connosco e com o filho. A minha tia era alegre, trabalhadeira de maneira e feitio, e, nas horas de calor, o ar a tremer, enquanto nós espapaçados no poial da rua, à sombra quente da casa, ela corria ao tanque de rega a encher baldes de água que deitava no cimento do quintal. Se eu, só a mexer a boca, o suor a alagar, tia, isso para que é? Ela atirava a água com raiva, uma nuvem de calor a exalar da fervura no cimento, sei lá filha, não posso estar quieta, ainda me faz mais calor. As visitas   da minha tia passavam em alegria. Fazia-nos surpresas doces e refeições novas, cozinheira de mão cheia que era. Pelo meio dos dias, entremeava gargalhadas em histórias de gente desconhecida com vida díspar, num país que lhe vinha na voz e nos soava bem melhor que Portugal. E nunca um lamento do aperto de saudade que o longe do filho lhe trazia. Nunca uma lágrima pela submissão de vida toda. Não sei se a minha tia era alta, mas era mulher de encher lugares. Contudo, não encheu o coração do único homem que gostou. O meu pai não distinguia o meu primo dos filhos e gostava da cunhada; e ela estar ali desfazia-nos os nós. Porém, dessa vez, a minha tia séria e pensativa em ocasiões muitas.
                A mãe queria dar-me o gosto de conhecer a francesa; mas não sabia nem tinha saúde para pensar no como de bem receber. E logo dividiu com a irmã. Num ápice, ela alisou refegos preocupados, planeou refeições e deitou cálculo a doces que faria com os ovos que tínhamos na capoeira mais os que viriam. Mal destinou o jantar dos franceses para o dia seguinte, tratámos do almoço. Sob a sua batuta, decidiu-se o que fazer durante a tarde e repartimos funções: a minha mãe matava e arranjava a criação; eu limpava a sala e faria um bolo. Os meus irmãos e os meus primos iam aos pinhões, ou seja às pinhas, com que a tia adoçaria os franceses; ela ia escrever a lista de necessidades da mercearia e tratava das carnes. Unidas neste conluio, serenámos; e a mãe quase contente.
Os meus primos (a filha de uma outra tia que vivia no monte, quis acompanhar) e os meus irmãos, imediatamente a seguir ao almoço, foram para o pinhal, contentes e livres. Entretanto, comecei a limpeza enquanto a minha tia listava compras num monólogo  de substituir ingredientes quando nós, não há; ou, também não há. E a minha mãe, gaveta dos talheres aberta, entretinha-se a verificar o agudo das facas, a fim de minorar a agonia dos pobres galináceos.
                E, de repente, uma batida apressada no vidro da janela da cozinha. Viemos a correr e afastámos a cortina. Uma outra vizinha do monte, ar abismado, o rosto no completo do vidro, olhos escancarados de admiração como se ali marcianos
- Ó Vizinha, vêem aí os franceses!
Olhámos umas para as outras, a vizinha dentro do circuito. A minha mãe, faca na mão, embasbacada. Eu olhei a estrada e vi um carro muito comprido, com uma roulotte atrelada, a entrar no portão que não havia. E no meio do estupor que nos pregava ao chão, murmurei estupidificada
- São mesmo eles, mas era só amanhã à tarde...
E o rosto da vizinha ainda a encher a janela, uns olhos desmedidos.

domingo, 17 de março de 2013

O Tempo das Musas



Por vezes escolho um espectáculo só porque sim. Sem pesquisa ou inquietação. Aposto. Um feeling. Vou, não sabendo bem a quê. Atrás de uma intuição. Talvez por isso, depois, o agrado mais redondo. A música clássica é uma descoberta recente, desuso-lhe a confiança, leiga de grau um. Inaugurar a Primavera com um concerto. Mas nestes dias ininterruptos de bolor, humidade e más notícias, antecipá-la pareceu-me melhor. Pela mão de Ludwig van Beethoven. Comprei o bilhete reparando que além da Orquestra Gulbenkian, o Coro. Pareceu-me boa ideia. E foi todo o meu saber.
Ontem, cheguei sobre a hora e sentei-me esbaforida e satisfeita. Tirei os óculos e, na minha frente, cabeças com horas de pente. Havia no ar um leve cheiro a guardado, mas podia ser da sala ou uma réstia de perfume, que as senhoras fazem gosto em aromas de estranhar. E, de imediato, ainda a limpar as lentes, eis que o palco uma enchente em fileiras. Gostei que na orquestra e no coro gente em flor. E cada instrumento em descanso tinha um modo tão  de pertencer e cuidar, como mãe que dá a mão ao filho e mesmo distraída a não desprende. A discreta elegância nas mulheres de costas direitas, perfis suaves, contrapunha-se à contenção dos homens, apertados em cerimónia, as pernas,quero esticar. E eles, não, não, não. Durante os aplausos, admirei as árvores lá atrás, contente de uma tal sala em que o pano de fundo é natureza. Grata porque eu ali. Lembro-me de ter pensado que um concerto assim seria uma prenda de dar. E antes da tristeza, ao mesmo tempo que música e vozes tomavam posse, um pássaro branco ascendeu a voar em diagonal. E tomei como sinal. Sim. Não lembro mais nada exterior. Deixei de ver as cabeças à minha frente, de sentir a pasta que tinha no colo; a dada altura pus a mão e a cara molhada. E daí a bocadinho as pessoas batiam palmas e tinha terminado. Fiz como elas. Enquanto saía, uma senhora comentava nas minhas costas, é a missa de Beethoven, não podia perder.
Garanto: a missa em dó maior de Beethoven é um extraordinário.
Cá fora, o mundo, as horas aos gritos, o ruído do trânsito. Ainda eu  flutuocaminhava, a habituar as pernas ao de todas as horas, quando fui ultrapassada por uma garota ligeira, caixa a tiracolo, quem sabe um violino dentro, num tão normal de qualquer pessoa. Olhei-a. A pressa de chegar ia-lhe no corpo, olhos fixos, rabo de cavalo a um lado e a outro, pernas de rapidez. Iria jantar, queria um cinema, tinha alguém a esperá-la. Para mim, ela era parte da missa de Beethoven. Para quem a esperava, Beethoven é profissão. Que ela sim, importante.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Anúncio


Olhando para trás, reparo que os meus ímpetos repentistas não deram os frutos mais doces. Mas, ainda assim, defendo o despontar dos pêssegos que inauguram o verão, o negro oscilante das primeiras amoras, e até o sabor meio aguado de melancias apressadas. E é na vida também assim. A doçura, toda ela, precisa de tempo e calor próximo, maturação de suavidade que acentue o sabor açucarado a alargar pela polpa. Ora, os repentinos de nós, idênticos aos primeiros frutos, vêm a desejo, falta-lhes a macieza aromática que só tempo e calor conseguem. Mas têm um quê de alegria inesperada, uma força de vingar que se impõe a despedir. Não intencionais, portanto. E que podem até, ser golpe na paisagem.
Pensei que o jantar seria boa altura para o anúncio, a modorra do dia a esvair no próximo de haver noite. E, toda gente concentrada na refeição, atirei, “a Francesa vem à nossa casa para a semana”. E logo um inabitual de talheres. Os meus pais suspenderam-se-me os dois no rosto e, o quê? Não pode ser. As minhas irmãs e o meu primo remelgaram  os olhos e pararam de mastigar, o mecanismo das bocas avariado a meio caminho da função, esquecemo-nos, podem-nos dizer como continuar? Só o meu irmãozito, a cara a despontar do tampo da mesa, é quem a Fancesa? Limpei-lhe a boca com a rodilha enquanto, é a da fotografia, quando chegar logo vês. E no meu entusiasmo continuei, está em Braga com os pais e diz que me quer ver. Vem com a família. A estas palavras, um raio de novidade esperançosa brincou nos olhos dos garotos. O meu manito, desligado da  conversa,  fixava-se na sopa, às voltas com um veio de espinafre que pretendia fora do prato, o dedito a ajudar. Limpei-lhe a mão, não se põe o dedo na sopa. Mas o dedinho de anzol com vida própria, a insistir na direção do espinafre que lhe fugia. A minha mãe sem ver nada disto, a decepção uma doença a comer-lhe os olhos, a voz sem fundura, em constatação, tens de escrever à Francesa. Dizes-lhe que não pode vir. O meu pai do seu lado da mesa resmungava qualquer coisa parecido com, a francesa, a francesa… tu só arranjas chatices. Entendi de repente que os meus pais não a queriam em nossa casa. Mas eu já tinha respondido que sim e a data da visita estava marcada para daí a dois dias; não tínhamos telefone e carta que enviasse, já não a encontraria. Mal disse isto, o meu pai exaltou-se a acusar-me que eu não mandava e não podia decidir e a minha falta puxou uma lesta gritaria que devia estar atravessada em qualquer lugar, tal a presteza com que se apresentou; e desatou a esbracejar, quem sabe a afugentar a francesa. E logo os talheres caíram de medo e os garotos só olhos, a diminuírem nos lugares, as cadeiras, que é isto, são outros, sobra-nos assento; o meu irmão, sinais de sopa por toda a cara, fazia beicinho na cadeira, os olhos postos no pai a arrasarem de água. Eu contive-me a princípio e apresentei razões, mas a certa altura fiz o que me apetecia e larguei a chorar na lengalenga do costume, lágrimas, ranho e palavras em simultâneo, que, como é sabido, não é boa solução de nada. E logo o garoto mais novo alinhou na choradeira. Creio que alimentámos a fúria do meu pai com lágrimas porque começou o tilintar de copos e pratos. Nesse momento, entrou um ânimo inusitado ao meu irmão que embalou o choro e abriu em berraria. A minha mãe pegou-lhe ao colo e tentava calá-lo, silêncio apertado nos lábios. A essa altura do campeonato, também ela já era culpada do meu erro e por várias razões disparadas em tal força que, mais tarde, ao levantar da mesa, procurei estragos, um buraco em qualquer lugar, uma amolgadela… Entretanto levantei-me e fui assoar-me e lavar a cara; quando voltei para a mesa, a calma reinava e o meu pai comia muito interessado nos desenhos de passarinhos do prato; talvez estivesse a jogar o nosso jogo da sopa, que ia de vitória em vitória: ganha quem descobrir primeiro o ramo dos pássaros inteirinho, agora ganha quem descobrir os dois riscos do meio do prato, agora ganha quem descobrir o desenho do fundo do prato. Morta a nossa alegria, tudo era silêncio. E não parecia a minha casa onde todos falávamos uns com os outros na hora das refeições, e sempre as peripécias de crianças: alguém entornava o copo da água, deixava cair a rodilha, o pão, os talheres. Não comer descansados era a nossa forma de descansar e nos divertirmos. Os meus pais eram muito tolerantes acerca da nossa maneira de estar à mesa e creio que gostavam de nos ter assim infantis e vivaços. Era muito raro zangarem-se por brincadeiras que davam mal, como entornar o copo da água, deixar cair comida na toalha nas pressas de corridas que inventávamos para comer mais rápido. Mas quase nunca escapávamos à palmada se deixávamos cair a colher da sopa quando empreendíamos em alimentar-nos uns aos outros com a boca – não podíamos usar os braços, segurávamos a colher nos dentes e alimentávamos assim o colega do lado. Se nos ríamos, perdíamos a força nos dentes e a colher caía a respingar sopa para todo o lugar.
E quando o meu pai se levantou da mesa, olhou-me sério e disse, Não quero saber da francesa para nada, arranja-te com a tua mãe. Desenrasquem-se. Não me interessa onde cabem mais oito pessoas nesta casa. Quero lá saber disso. Os meus irmãos e o meu primo, um imediato de sorrir. A minha mãe baixinho, Ai valha-me Deus. E eu, inconsciente e meio burrinha, exultei.

sexta-feira, 8 de março de 2013

La Source des Femmes


Realizado pelo romeno Radu Mihaileanu, o filme aborda a condição e luta das mulheres árabes e situa-se algures numa aldeia entre o Norte de África e o Médio Oriente. O título, “A Fonte das Mulheres”, diz de certa forma da sua luta pela água. Mas o filme é mais. É a poeira amarela que sobrevoa uma aldeia despida e pobre, que dista uns bons quilómetros da única fonte. São os carreiros de cabras, pedra e pó que levam as mulheres até à água. É a preguiça dos homens que ficam sentados enquanto elas carregam aos ombros os baldes. É a espécie de união que divide a aldeia em dois grupos, o dos homens e o das mulheres, e me lembra um mundo que conheci há muitos anos atrás, com as minhas tias-avó.
É um filme de outro mundo, sim. Que por mais que se pense a Terra global e unida, vimos de cadinhos diversos. Somos todos homens e mulheres. Mas não vivemos idêntica a condição. Não é o mesmo ser mulher em França ou no Mali. Na película, como na vida, essa condição vive-se em cacho – toda a aldeia – ou de um para um – cada casal. E não adianta estarrecermos: O mundo dos homens tem muitos mais direitos que o das mulheres. Tem-nos na Europa, na América, na Oceânia. Onde calhe. Salvo se existam algumas poucas tribos primitivas onde as mulheres detenham o poder. E também aqui apenas se invertem os papéis, a igualdade de género ausente. O islamismo parte do pressuposto: a mulher é subalterna. E o que para nós é violência sobre o chamado sexo fraco, para eles é segunda natureza, mandamento de Alá, possivelmente. São elas quem trabalha: carregam a água e a lenha ajoujadas ao peso; tratam da casa. São quem tem filhos de enfiada e os cuida. Os homens podem, se o desejarem e tiverem meios, aprender a ler, ser instruídos. As mulheres, não. Eles são donos e senhores da casa, sem bulir nela um dedo. As mulheres servem. Na mesa. Na cama. No trabalho. Na vida. E o preconceito desta dualidade está em todos: homens e mulheres.
E a quem não segue o islamismo, que dizer? Que dizer das admiráveis mulheres de Atenas que todas somos em pelo menos alguns momentos. Porque nos afronta uma religião que não é a nossa. Mas nos calamos a quotidiano tão desigual. E tanta vez, nesta sociedade de trabalho em que entrámos, ufanas de lado a lado com os homens, somos elas. Elas à europeia. As perfeitas mulheres de Atenas. Que chamam tudo a si. Na ilusão de que o trabalho seja uma forma de poder. E não é. O trabalho, se excessivo, aliena.
Na aldeia do filme, as mulheres formigam. E os abortos espontâneos sucedem-se. Acontecem, na maioria dos casos, se escorregam nos caminhos da fonte, baldes cheios. E o que todas as outras pensam hábito, cria numa delas, a mulher do professor, uma revolta a fermentar. Chegada de outra aldeia, o marido estremece-a, ensinou-a a ler, trata-a como sua companheira. E, entre várias peripécias (o filme é bem humorado) ela consegue unir as mulheres numa greve ao sexo até que, ou os homens vão eles mesmos à fonte, ou, como ela julga, eles façam alguma coisa para que a água chegue à aldeia. E aqui começa a forma como cada casal interpreta a diferença de género e a ousadia das mulheres: há o marido bruto, que exige e toma pela força; o marido que ama sem deixar de seguir o Corão; e aquele doce professor (tal pessoa não existe senão em filme, portanto nada de procurá-la, ou não se faz mais nada a vida toda) que ampara a mulher que ama, se recusa a tomar outra esposa e a repudiá-la como lhe sugere o pai, a ajuda a preparar-se para o embate com quem pode atingi-la com as leis do Corão, espera pacientemente que a greve termine e move todos os cordelinhos que conhece para a ajudar a vencer.
Pareceu-me contra natura e um defeito do filme que numa aldeia tão pobre as mulheres apareçam de base, olhos pintados, cabelo cuidado. E nem sei se o filme um bom retrato do mundo muçulmano. Com toda a herança que não consigo alijar e me pesa, a educação que me atrapalha o vertical…ainda assim, talvez que a Europa preferível.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Kahaani


A provar que a filmografia indiana está de boa saúde. E a lembrar-nos que o filme policial é um género onde a Índia não descansou ao sétimo dia, a crer nesta película de bom argumento, surpresa feliz do nosso imaginário.
Uma Índia tão pobre que me traz à memória a única parte do Brasil que conheço, a zona de Fortaleza: muita gente, muito calor, uma sujidade repassada nas paredes que desbotam a pintura, cores outrora vivas e ora arremedo, a miséria solta por ruas e homens. E, tal como nos brasileiros, a lentidão a raiar o ingénuo de viver, a naturalidade que ergue, à força de braços, os dias pesados, o ar entre o cândido e o matreiro, a explicar os revezes da fortuna. A uma queixa da personagem sobre a inexistência de banhos de água quente no hotel, e que o chuveiro só água fria, violando o anúncio da entrada, responde de pronto o proprietário: a publicidade não é enganosa, há no hotel uma criança que basta chamar e logo leva a chaleira com água quente a quem o deseje. Mas a isto se resume a semelhança entre indianos e brasileiros. Que no Brasil não paira a alegre bonomia indiana. E se ressente da miséria com tiros e roubos sem destino. São gente de pouco sorriso grátis, revoltada da riqueza a seus pés. De outrem.
No pecaminoso dos dias, a brancura dos uniformes policiais mostra a Índia de contrastes. Arrebata-nos a religião que cresce das funduras de cada um, qual Parvati de mil mãos; o trabalho infantil que se aceita sem mérito ou ódio, as crianças sorridentes, a encará-lo como segunda natureza; a boa índole dos indianos em geral. E, mais que um halo, fica-nos a extensão infinita do calor e o cheiro palpável do suor. É nessa Índia sensorial, repleta de copos de chá vendido pelas ruas e que imagino mal lavados, que passeiam os olhos de veludo das mulheres; diz-se que tal profundo suave é do khol, mas lhes vem de passos de fêmea em alma indiana. Das brechas dos saris, o fruto macio e castanho da pele espreita  o mundo onde o poço dos olhos se derrama. Liquidamente. E neles, um quê de especearia rara a tocar todas as coisas.
No resto, o filme segue as normas de um policial. E uma mulher a respirar – ou transpirar - uma sensualidade muito grávida.
Aprecio filmes que não vivem de abraços, beijos e posições de kama. Que apontam os muitos sentidos de viver.

segunda-feira, 4 de março de 2013

"360"


Em garota imaginava que as coisas aconteciam porque um Deus as fazia acontecer. Só para mim. Acompanhava-me a íntima convicção de não saber adorar nem a Deus nem a nada - o  que me ralava bastante, porque, cartesiana inesperada, julgava ser a única pessoa incapaz de tal sentimento, por desconhecer  queixas deste teor (ainda hoje não as conheço). E fenecia-me a coragem para me informar de observâncias próprias à adoração, sentimento sublime de que excluía obviamente o meu pai que falava demasiado alto, se entusiasmava na gritaria e tinha irritações espumosas, o corpo a sobressair voracidades; faltava-lhe pendant. Nem ele nem eu chegávamos perto da elevação subjugada, do anular completo e de tapete que o sentimento exigia. Mea culpa por nós dois.
Ao jeito de marteladas na cabeça, o tempo foi-me modificando a ideia de existir um Deus atento aos meus pormenores, que, para além do mais, governasse o mundo inteiro e os escaninhos de toda a outra gente. Mesmo sendo Deus, Omnipotente, Omnipresente e etc, era missão impossível. O final da adolescência trouxe-me estas questões que chegaram cinzentas à juventude; em pousio. Até que, na maturidade, um dia que pensei nisso, entendi que tudo está ligado na vida dos homens (não garanto que seja verdade). Que as minhas sortes são, bastas vezes, azares de outros. Que, sempre que escolho, não me escolho apenas a mim, interfiro, de acordo com o peso da escolha, na vida de outrem. E que, ainda que o não deseje, pode acontecer que seja para eles negativo o que para mim é um bem. Ou seja, as minhas certezas de decisão são azares do destino e acasos de muita gente ou pelo menos alguma. E o inverso. Chegar a esta relativização generalizada, onde o dedinho de Deus já não me apontava a toda a hora, não me deixou melhor do que compreender que sou incapaz de adorar. Mas situou-me.
E se Deus não houver? Pois é. Pode não haver. Essa é a resposta que cada um tem de procurar, sem nunca sair da pergunta. Que religião não é descanso. Move-me a este monólogo o filme que vi hoje, “360”. Não é um grande filme, apesar de recheado de bons e até bonitos actores. Acredito que o realizador pense, ou tenha pensado à época, um pouco como eu acerca de destino, decisões e acasos. Porque, o que nos parece de início uma panóplia de pessoas com histórias desligadas termina a encadear. Pouca gente fica fora da zona de influência da relação. A ideia central é a de um sábio anónimo, que desconfio nem existiu, cuja descoberta é que, nas bifurcações que a vida nos apresenta, temos de optar. É de rir, este sábio. Porque a vida tem caminhos não necessariamente bifurcados, há-os circulares, onde a máxima grega de que o círculo é a figura perfeita, soçobra. E a escolha não existe entre dois; dois é, tão só, número mínimo para que possa acontecer. O ser humano é bem mais criativo nos caminhos que encontra e nas opções que faz. Todo o filme sublinha o desencontro entre as pessoas. E o sexo surge, sem novidade, no foco. Como factor de desencontro e desencontro em si mesmo. Ou, se se quiser, há o desencontro dos praticantes e os desencontros colaterais. E os incompreensíveis de cada um a procurar nele alguma coisa. Julgo eu.
 360 graus é muito grau, um ângulo giro. Assim o filme “360”: demasiada gente a passar demasiado depressa. A personagem com que simpatizei, acabada de sair de uma prisão onde permanecera seis anos por crime de violência sexual (já não tenho certeza absoluta), faz um papelão: uma garota que volta a casa em revés de sexo e amores, numa noite extra de aeroporto e bebedeira de esquecimento, resolve apostar no acaso; o meu personagem surge-lhe como o bom acaso. Não acredito que alguém como ele, com tara de violência sexual e após seis anos de abstinência (a tara dele visava as mulheres e a prisão era masculina), uma garota simpática e bêbeda a oferecer-se…consiga mudar para anjo da guarda (ainda que à custa de sangue suor e lágrimas). Não posso crer. Mas foi o meu personagem. Também pelo incrível. Ficou-me no entanto um acaso muito comum. No aeroporto, ele procurara uma mesa vazia para se isolar, receava-se da noite entre tanta mulher. E ela veio sentar-se, casualmente, nessa mesa. Foi mal recebida, mas não foi embora e interpretou tudo ao contrário, achou-o bem quando ele estava a entrar em crise. Não me interessam muito as lições de moral. Gostei da ternura do gesto dele quando, depois de uma crise severa na casa de banho, reentrou no quarto e lhe passou a mão no cabelo adormecido; um gesto de que ela nunca soube. Desconheceu a razão por que  ele saiu; que voltou a entrar e ficou a vê-la dormir; não lhe sentiu o leve da mão. 
Aquele homem esvaneceu.
Como as pessoas são tão outras do que as pensamos.