quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Desencontro


Dar é um prazer muito humano. Dar. Porque se gosta. Porque os outros precisam. Sem porquê, além do amor. Dar só existe se é transbordo do coração. O resto são entregas; pagas; moeda de troca; compra de favores. Mimesis.
Quem dá, dá de coração e não espera retorno senão o do sentimento. É este pensamento que me orienta o espírito de Natal, aniversários, comemorações e situações de coisa nenhuma em que simplesmente me apetece dar; porque alguém se me presentifica numa montra ou num objeto e intuo como sinal. E nunca tal me foi engano. Dou a quem gosto. Na esperança da irrupção da alegria. Afinal, sei-lhes vaidades e gostos; e também necessidades. Conheço-lhes a vida.
Por isso me surpreenderam os teus olhos fugidios, nevoentos, quando recebeste a minha prenda de Natal. Comparaste? Quando ta comprei pensei que abdicava de qualquer coisa para mim, e ta dava a ti. E fez-me feliz a ideia. Palavra. Talvez por isso, deixei cair o teu olhar sombrio, as tuas palavras de vento a cortar, este ano só dei prendas baratas; não mais os lembrei. Até te ter visitado, tempos depois. E quando me mostraste a compra que fizeste com a minha prenda – tão linda, tens melhor gosto que eu, deve ficar-te bem -  que não vestiste para que eu visse, antes me estendeste um livro. Toma, comprei-to no mesmo dia.
E eu que gostava e era verdade, que não sou capaz de não gostar de livros. Mas senti um aperto cá dentro, porque nunca antes me deste um livro sem quê;  pagavas-me a prenda de Natal. Não compreendes que és incapaz de ma pagar.
E um frio de seda entre nós. Que decerto não sentes.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Avó Luísa


Em primeiro lugar, estou à vontade porque a avó Luísa se chama outro nome, não sabe ler, nunca mexeu num pc e não imagina que alguém a queira de assunto. Em segundo, estou à vontade porque não é minha avó e menos ainda suspeita que eu escreva o que quer que seja, sem ser o de obrigação. Em não sei quantos lugares, estou à vontade porque este espaço é meu e faço nele o que muito bem me apetece. Acima de tudo, tenho enorme prazer em pensar e escrever sobre a doce velhota.
A avó Luísa é o meu protótipo de avó. Se penso numa avó, é ela que me aparece na cabeça. O único conto que escrevi tem uma avó Luísa, roubada à minha avó Luísa que nem é Luísa, nem é minha avó. Sou pródiga em relações familiares com quem não me é nada. E também em não ser nada a quem me é do sangue. Os meus afectos desligam-se da consaguinidade e distribuem-se por onde calha, de acordo com as inclinações que Kant condenou.  Os filósofos são grandes pensadores, homens de respeito, sabem o que dizem. Mas, no restante, apostaria que vivem parecidos a nós. E, quem sabe, comungam dos nossos desaires de viver. A verdade é que aquilo que somos não nos vem só de o conhecermos.
A minha avó Luísa não sabe o que é a filosofia, mas filosofa. É uma morena de óculos bem graduados e olhos longínquos e meigos, tornados assim de tanto olhar e compreender. Tem o esqueleto dentado pela osteoporose, os braços, pulsos e joelhos partidos e mal colados várias vezes. Nela existem erros médicos graves que a afligem de dor constante, a impedir movimentos ad aeternum. Temo que caia por onde se movimenta em cautelas de bengala. Vive ainda em sua casa, com o marido que tudo lhe faz. Após tanta queda e operação, não consegue sequer lavar loiça. Visito-a e abre um sorriso bonito, que me faz valer os passos. Porém, sofre imenso. Mostra-me os aleijões da artrose, inchaços inexplicáveis do corpo, um dos joelhos igual a uma bola de basquete. Sem uma queixa, os olhos muito sérios fixos nos meus, lábios apertados num veredicto de imutável, mãos púdicas a subir meias e a baixar a saia. Chamo-lhe avó com o prazer de a ter escolhido para sê-lo, mas ela trata-me com alguma cerimónia e já lhe fiz notar que não é modo de falar a uma neta. No seu coração, não sou igual às netas. Ou sequer às bisnetas.  Mas a indiferença não consegue tal alegria. A avó Luísa carregou no colo um dos meus filhos e nunca se esquece de querer sabê-lo. Certa vez, ainda mal a conhecia, trouxe-me um pombo já depenado, para uma canja. Vinha embrulhado no avental, como se fosse nada. A minha avó Luísa dá e quase não se vê que estende a mão. Várias flores do meu jardim encontrei-as à porta, pela manhã ou tarde, sem saber do dador. Depois, passado algum tempo, contava-me que fora ela.
A avó Luísa tem a minha atenção de amor. Se um carro à sua porta, corro a saber o que se passa. Dá-me ramos de salsa, fala-me dos regos das couves e do cebolo, conta-me proezas da descendência…e não se queixa das dores, de quase não poder andar, de tanta vida que deixou atrás.
                E gosto de estar com ela a apanhar um solinho, viradas à horta em simetria; olho-lhe a artrite dos dedos, as sardas das mãos a pintalgarem o regaço. E a minha mente espreguiça-se no desejo de ser empírica e devir incólume folha branca. Em paz.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Escrita a Duas Velocidades


Pensamo-nos seres originais e novos. Mas não. Somos quotidianos, feitos para uma linha melódica de continuidade, o anterior a preparar o seguinte. Por isso, sempre que os imprevistos nos tomam de assalto, a mente devém um buraco agressor de agitada incompreensão e não saber, a nova afirmação apenas sons estranhos numa língua desconhecida, nós a duvidar da inteligência enquanto as palavras, ensaio de um pequeno caos, dançam cá dentro sem significação. Devem ser apenas segundos, mas parece-nos este rodopio muito tempo. E mal encaixam no lugar certo, a normalidade. As minhas irmãs expectantes e eu mão no travão, no impasse de entender. E logo que, o quêêêê???!, onde é que está a carta? E larguei a bicicleta no caminho. Corria e ia anotando as informações, está na cozinha pequena em cima da mesa. E era uma carta bonita. Tinha selos às cores e um envelope de papel grosso que os meus dedos correram ao comprimento e à largura, impressões digitais em cada milímetro.
Galguei até ao quarto, sentei-me à secretária com o dicionário de francês-português à espreita, e li-a de ponta a ponta. Na primeira página, a Bernardette tinha escrito a sua alegria e contava a odisseia da missiva.  Os selos estavam errados e a carta ficara retida, com multa, nos correios. Entretanto, ela mudara de casa. Quando o pai passou na estação de correios para saber se haveria correspondência para o antigo endereço, o funcionário mostrou a minha carta; porém, ao vê-la, ele recusou-a; estava multada e desconhecia o remetente. Mais tarde, talvez ao jantar, contou o episódio; deslembrada do que fosse, a Bernardette intrigou e, no dia seguinte, passou lá, pagou a multa e satisfez a curiosidade. Foi assim que o destino me cumpriu os intentos. Teriam passado uns três meses. Do outro lado da folha, pacientemente, “a francesa” respondia todas as minhas perguntas e enviava-me uma foto. Muito loira, olhos azuis, gordinha. O meu oposto. Achei-a o máximo. Depois de a ter relido várias vezes com o coração a transbordar, condescendi em ler para as minhas irmãs que ouviram tudo debruçadas no meu ombro para ver a letra, não sei para quê, não sabiam qualquer palavra de francês.
Orgulhosa daquela amiga francesa, fui ter com a minha mãe que andava a trabalhar na cova e li para ela. A mãe não parou o trabalho nem fez qualquer comentário. Mas eu comentava pelas duas, a fazer intervalos na leitura sempre que me apetecia. Ela sachava o feijão frade e eu lia a deslocar-me ao mesmo ritmo, os sapatos a asfixiar no pó que o sacho ia levantando, coisa que me não apoquentava. A mãe, chega-te para lá senão faço como o Nardito, corto-te as pernas. Eu desviava uma perna e continuava a ler quase em cima dela. De vez em quando abraçava-a a garantir de viva voz que a gostava muito e ela num sorriso, deixa-me chata, assim nunca mais acabo isto e é quase noite, vai-te embora. Fui sempre muito mal mandada, portanto só subi a encosta quando já tinha lido tudo. No meu egotismo, nunca pensei em ajudá-la nos tantos trabalhos que tinha. E o seu cansaço notava-o apenas quando, sentada à lareira por minutos, logo adormecia. Nessa época, via um futuro endinheirado onde não a deixaria trabalhar senão o que lhe apetecesse, lhe daria prendas infinitas, todos os meses várias. E a vida calada. Sem desmentir. Foi assim que cresci durante quinze anos, as mãos dela a afastarem-me todos os escolhos, a fazerem caminho onde passasse.
Nessa noite, fiz os trabalhos do colégio à pressa e deitei-me mais tarde. Não consegui esperar pelas folhas de carta da mercearia e respondi à Bernardette em folhas de caderno e de imediato. Não tinha fotografia para a troca, mas não me importei. De manhã, levei as duas cartas para o colégio e a Bernardette foi o assunto das conversas. Com tanta novidade, a aula de inglês correu como gostava, falei pelos cotovelos.
À medida que o tempo ia passando sobre nós, verifiquei que eu respondia na volta do correio e a Bernardete era infindavelmente mais demorada. E nunca isso me desanimou. Sem qualquer incidente, mantivemos contacto a duas velocidades. A francesa passou a habitar o vocabulário de minha casa e no colégio foi absolutamente esquecida; das três correspondentes, era a única que se mantinha e ninguém se interessava em demasia pelos meus assuntos, o que nem me aborrecia, a Bernardette deveio toda minha. Ainda hoje conservo esse princípio: se o que dizemos desinteressa os outros é melhor calá-lo, não vá o assunto ofender-se de não ser escutado. Não somos desimportantes aos outros. São os assuntos de que falamos que não lhes interessam.
Passaram anos. Saí do colégio. Fiquei um ano a descansar em casa. Voltei a estudar. E nas férias dos meus inconscientes dezassete anos, recebi uma carta da francesa. Que estava em Braga com os pais, na quinta da Galinha Assada, de que ainda hoje só sei o nome. Queria conhecer-me. Perguntava se podia vir a minha casa.
Sem mais pensar, respondi imediatamente que sim.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Grão de Areia



Podemos nem reparar, mas sempre que pensamos em alguém, a razão não o isola. A memória  liga, une. Ninguém nos surge na mente sozinho e em si mesmo, cada pessoa arrasta um conjunto de atributos, verdadeiros ou fictícios, que lhe apomos. É por isso que, se penso no meu pai, não lhe penso o automóvel mas a zundap que já não tem e, se acontece passar de carro por mim, abro em estranhezas, quem será aquele senhor que me acenou; anexo os gritos e as cóleras súbitas que nos assustavam (ou me) e que ainda treina por desfastio e eu um continuum desagradado; e vislumbro o seu jeito sério que ganhou olhos de horizonte – as pessoas quando vão para a idade vestem esse olhar, como se já não estejam inteiras na terra e exista nelas uma nostalgia de tudo que é, em função do não ser que há-de vir. Ou a consciência da saudade que não vão ter. Os olhos do meu pai podem ser duros como aço, cortar como faca afiada no lugar que mais dói, mas não são olhos lúbricos, malvados ou escarninhos.
Às vezes, que são agora mais vezes, visito-o, dou-lhe pequenos nadas que sei que gosta. Ele não visita. Excepto quando há uma doença que considere grave. Uma vez adoeci e entendeu que. Aparecia ao domingo de manhã, quando estava sozinha, a fazer-me as suas próprias queixas e distraía-me um pouco das minhas. Porém, se elas me tomavam de assalto, ele torcia as mãos de desconforto. Gostava dessas visitas de médico em que chegava cheio de pressas, a anunciar que tinha de ir a um sítio, me dava um beijo rápido e, então filha, estás melhor, e depois a meio do quarto, muito interessado na janela, até que eu, pai sente-se aqui ao pé de mim. É assim, o meu pai. Cumpre o dever, deixa-se afectar pelo sofrimento, mas não consegue mostras. Vi-o chorar duas vezes. Soluços grandes e quase sem lágrimas, de costas para mim, o rosto entre os braços encostados numa parede. Imagino que possa ter chorado mais vezes. Talvez. E já vivemos juntos difíceis estrangulamentos de ampulheta.
Noutras ocasiões, encontro-o em serviços fúnebres, como se nós velhos conhecidos ou familiares mais ou menos distantes. E sou eu que o vejo, os olhos de horizonte cavalgando a figura hirta de silêncio, boné na mão, nunca dentro das igrejas. Junto-me a ele. Penso que o meu pai tem um certo orgulho em mim, mas não sei se alguma vez que eu o não repare, ele se aproxima. Há pouco tempo, encontrámo-nos assim, acompanhei-o e deu-me, depois, boleia. Quando me deixou, meteu a mão ao bolso e ganhei uma chave do portão. Lembrei a quinta a que chamamos “a nossa terra” e nome que mais lhe quadre, não existe. Os vizinhos erguiam muros e vedações e a nossa terra à solta. Ainda assim, dizíamos, vou até ao portão, parei ao portão, a mota do pai caiu quando virou ao portão (e quanta vez aconteceu). Mas não havia portão nenhum. E agora, que já foi para aí há uns dois anos, só por causa das coisas, o meu pai pôs mesmo um portão no que era só o sítio. Fiquei a olhar para a chave e a pensar nisto tudo ao mesmo tempo, o meu pai atrapalhou-se com ter demorado dois anos a decidir dar-ma e gaguejou umas explicações, mas eu pensava no portão imaginário, sem grades nem limites. E enchi-me de pena da terra feita poeira queixosa, em remoinhos cinzentos, num isolamento sem destino. Depois agradeci e tratei de o descansar, na verdade não esperava tal chave. E despedimo-nos como se eu uma miúda, não percas a chave, ouviste.
Portanto, se o visito, saio do carro, abro o portão, entro de novo, passo, saio para o fechar à chave e sigo até à casa. E à saída repito tudo. O meu pai fica no meio da rua a ver a manobra. Todo importância, como se o portão uma coroa. E palavra que não entendo para que serve este enredo. A vedação da quinta é baixa, tem malha larguíssima e já rebentou em vários pontos. Ainda assim, o meu pai exige a toda a gente que feche o portão à chave por causa da ladroagem.
Na última visita, avisei-o e já me esperava como quem não quer nada, conversando com a vizinha que por acaso é minha tia, a deitar rabinhos de olho ao portão. Gosto que me faça lumes e sempre lho peço, apesar de me ser difícil a televisão com o som no máximo. É um dia. E logo me disse que não tinha feito o lume, estava calor. Era verdade, o dia pedia rua, a brancura de braços e pernas às espreitadelas, a avançar confianças e despudor de decotes e brechas na tepidez do dia, gratos ao sol e aos ardis da brisa. E ficámos conversando por ali. Depois calcei as botas de borracha dele e, de saudade, fui apanhar laranjas e tangerinas a falar com elas e com as ervas que quase me chegavam à cintura. E o meu pai na rua a ver, talvez contente. Quando deixei os sacos de fruta no porta-bagagens, ele recusou lanchar connosco e foi para casa. E nós, eu e a minha tia, para a mesa. De repente, o meu pai a chamar-me da rua. Fui ver. Toma lá para o lanche, e quase fugiu para casa. Era um pacote de bolachas de baunilha. O meu pai. Que, em pequena, me deu coisa nenhuma. Tem vezes em que o amor é simples.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Lisboa de Perdição


Em sentido literal, o que é palpos de aranha? Talvez a forma como as aranhas tateiam o desconhecido, a agarrá-lo a suas patas peludas e colantes que o deixam assarapantado e fora de sítio. Assim nós por vezes, a vida a colar fora da ordem e nós, deslarga-me, e ela a colar acasos sem mais, a estética  amarrotada, e é impossível encolher os ombros e deitar fora como fazemos à película aderente, corto outra e pronto. Porque temos de continuar e nem sabemos como, mas parar não se pode.
E, contudo, devia ter desconfiado quando cheguei ao restaurante e ele fechado, vá-se lá saber porquê. Podia que um Carnaval no Rio ou assim. Levei na boa. E tudo bem. Mas a vida a colar. Ou eu. Que, no metro – quero dizer na mente -   troquei Santa Apolónia por Cais do Sodré e querendo a segunda estação fui em direcção à primeira. Não sei porquê, mas sim. E se haja um Deus benévolo, era ele a dizer, estás enganada, por outras palavras, que quando dei por mim estava a ir para um corredor, Amadora Este. E para mim a Amadora é no estrangeiro, seja qual seja o ponto cardeal que indique e não sei aquela língua, é melhor não arriscar. Além do mais, tinha outro destino. Voltei atrás. E, perseverante no erro, encaminhei-me para Santa Apolónia. Mas como queria o Cais do Sodré, saí depois da Baixa Chiado. E não o reconheci. Nada dizia com nada do Cais Sodré. Para mim tudo é possível, portanto, imaginei logo que tinham arrasado todo o Cais Sodré (Santa Apolónia) e feito um novo na minha ausência. Natural, pensei eu sem saber onde me dirigir e a achar as obras um bocadito rápidas. Eis senão quando li numa placa, Praça do Comércio e uma setinha a direccionar-nos. Olhei e ela ali estava, mais ou menos igual à da memória. O tal deus benévolo acenava, mas vemos muito o que queremos. Pensei, bom, afinal há uma paragem na Praça do Comércio e não me lembrava. E entrei de novo. Mas quando saí em Santa Apolónia não reconheci nada outra vez. Mau! Já era azar. Olhei melhor a estação: não tinha ideia de que fosse pintada de azul, mas também é verdade que a realidade do mundo me escapa e já nem tento captá-la; acho que não nos gostamos, passa-me. Rememorei, de que cor é a estação? E não sabia. Logo, podia ser azul. Resolvi ir a uma paragem de autocarro perguntar como chegar ao meu destino. E um senhor com ar entendido – só pergunto coisas a pessoas que têm esse ar – disse-me que para ir onde queria precisava dois autocarros porque inda tinha de passar à Praça do Comércio. Fiquei zonza (pensava estar no Cais do Sodré, claro) e perguntei se precisava andar para trás. E ele que não, que era sempre em frente. E eu mentalmente, mau, mau, há aqui qualquer coisa que não joga. Entretanto, o relógio, sobranceiro aos meus enredos, marcava a hora da consulta. Resolvi contrariar os meus propósitos e apanhar um táxi que me levasse ao destino a ver se clareava as ideias. É que a viagem, qual trovoada súbita num mundo de papel, me estava estragando os esquemas mentais. E só no táxi entendi todos os meus enganos. Hélas!  Gostei de passar no novo Cais das Colunas, a refazer a memória; agora lhe apus a poesia que não tinha, o olhar perdido dos namorado frontais, a centelha  dos sonhadores, a vaga de nostalgia que nos percorre a todos à vista do rio, no leve de ser dia e haver sol.
Mal cheguei, na recepção, desiludiram-me. Que não era ali. E lá me indicaram onde. Levei com bastas horas de corredor e um esquecimento que tive de fazer notar e logo muitas desculpas. Entretanto, anoitecera. No final, e para fechar a estadia, fui ao bar e entornei tudo o que tinha no tabuleiro. Não sei como consegui em tão curto tempo tal bodega, foi mesmo só pegar-lhe. Valeu-me um empregado simpático que me repôs o stok e limpou a metade do bar que sujei. Eu tentei limpar o casaco e a saia enquanto os outros dois empregados só murmúrios supostos pouco abonatórios. Saí convencida que estava na hora de correr o pano. Mas não sabia sequer onde me encontrava.  Desci a rua pensando que subi-la seria mais difícil e por isso, não (os meus motivos são quase sempre deste teor). E fui andando a pensar se ao fundo seguiria para a esquerda ou a direita, com uma ideia vaga de esquerda e a certeza de precisar perguntar. Firmemente resolvida a não ir de táxi. E fiquei ali um bocadinho à espera que passasse alguém com cara de saber por onde anda. Perguntei a um rapaz de boné, decerto parte de uma farda. Deu-me a única indicação do dia que consegui seguir e entender, depois de lhe dizer que sou míope, só tinha comigo os óculos de sol e não via nada do que me apontava lá ao longe. Entrei num autocarro que passava ao Rato que, como todos os lugares, nada me dizia. Mas tinha de descer ali. Fazia-se tarde para outros enganos – isto de nos enganarmos também tem hora – portanto, resolvi ficar chateando o condutor, que também era um belo de um rapaz e se prestou a deixar-me e deixou mesmo, no Rato. Bem haja. Perguntei pelo Metro e logo um senhor me indicou a direcção. Andei meia dúzia de palmos e não vi nada, voltei ligeiramente atrás para perguntar a uns namorados e já eles tinham pendurado o letreiro não incomodar. Então, passou um rapaz e levou-me até à boca do metro. Afundei-me nela e lá consegui chegar ao destino.
Não me parece que isto se resolva com GPS. E nada escreveria se o tivera.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

In the Mood for Love


Filme de 2000
É um filme de amor e tormento. E primorosa elegância. Os sentimentos nascem e evoluem sem contacto físico e, como em todo o amor, numa crescente necessidade de presença. Ambos sabem que os respectivos cônjuges são amantes e se encontram juntos no Japão. Mas o que em americano faria um filme de final feliz é no império do sol nascente um desenho de tinta-da-china em papel de arroz: pura delicadeza sugestiva. Os dois abandonados alugam quartos em apartamentos vizinhos. Ele, intencionalmente. E começam por fazer-se companhia, juntam mágoas quase desabitadas de palavras, a tentar o entendimento de como se chega à traição e à mentira que vivem. Ele pretende nela a vingança, quer ajudá-la a desmascarar o marido. Impressiona o sofrimento daquela mulher e não é explícito se apenas por humilhação. Entretanto, ao espectador começa a ser claro que o inquieta aquele sofrer calado num corpo de bissectriz; e começa ali a gostá-la sem propósito. O realizador filmou em contenção de palavras, gestos…mas foi pródigo em beleza e silêncios; e o corpo no silêncio é mais atroz, na escuridão qualquer luz é mais. O sintoma do amor é essa necessidade de estar com, que se insinua como um aroma, primeiro sub-reptício e depois consentido, ansiado; uma necessidade de presença tão forte que é a medida da intensidade. Não se beijam. E que me lembre só uma vez se abraçam. E no entanto procuram-se, telefonam, passeiam, comem juntos, ela dorme enquanto ele trabalha… E quando o amor diz quem é, a inocência recolhe-se. Começam a esconder-se dos outros e dão-se conta de copiar quem criticavam, mentem para o mundo. E ele resolve afastar-se.
Mas não morre amor por quilómetros de permeio.
No final, ambos procuram o lugar onde se encontraram. Ela, que tem já um filho, encontra a casa para venda e compra-a. Quando ele regressa, também visita quem lhe alugou o quarto, mas o  proprietário é já outro. Depois, pára na porta da casa dela, sabendo apenas que tem novo locatário. Mas não bate. E, por falta de um gesto, as vidas dos dois continuam exteriores.
Gosto de pensar que o filho é dele, ainda que o filme em nada o indique. E que, quem sabe, ele volta atrás, bate à porta. E o amor flui. Mas a vida não é cor-de-rosa. Fica a memória.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A Vida de Pi


Filme de 2013
Fui ver “A vida de Pi”. Pareceu-me que sim desde o título. Sem mais saber. Um feeling comum a todos os filmes que. Ir ao cinema no cinema é um dos meus extraordinários. E ontem, um extraordinário. Cheguei sobre a hora, a penumbra instalada no seu conforto e eu a levantar os pés, imaginando degraus, sem identificar a letra da fila – não que fizesse diferença, a sala só tinha mais um ocupante – o saco da mão direita a resmungar papel o tempo todo, até que encontrei o lugar. Gosto de me sentar onde pertenço, mesmo quando, como ontem, me pertencem todos os lugares menos um. É claro que fechei os olhos vezes inúmeras; em situações de perigo, tenho esta balda, como dizia uma colega na primária. Na sua maior parte, o filme desenrola-se no meio do oceano; um tigre de Bengala esfomeado – tantos anos pensei que eram tigres que faziam habilidades com bengalas e afinal… - com um rapaz ao alcance das garras, tem necessárias cenas de impasse, só menos passionais e não sangrentas porque sabemos ser o rapaz o contador da história e temos presente o início do filme: está inteirinho; a viver a sua condição de indiano tranquilo. E, nesse aspecto, me fez lembrar um tipo de filmes que detesto, 007, em que, por maiores as atrocidades, todos sabemos: o herói sai ileso. Mas as semelhanças acabam aqui. Ou talvez não.
O que mais gostei no filme vem, curiosamente, do início. Há nele uma certa identidade com o que penso seja a cultura indiana. A própria ideia de divindade a ligar todos os homens, independente de crenças específicas, foi o grande princípio de Vivekananda e a forma de unir os indianos e ser respeitado internacionalmente, fazendo respeitar a Índia até aí dividida em credos religiosos diversos. Narendranath Dutra pertence à História Hindu, foi marco do progresso a que gosto mais de chamar proposta de humanismo socio político assente em princípios religiosos. No filme, este espírito Pan encarna, supostamente original, em Piscine Patel, o rapaz, Pi, que sobrevive ao naufrágio do barco onde seguia com os pais, o irmão e todos os animais do seu zoológico. De posse da sabedoria infantil, o seu deus reunia todos os deuses das religiões por si conhecidas. Sem fronteiras, Pi limpa de supérfluo a casa da religião e deixa  ficar aquilo com que hipoteticamente, irá viver a vida toda. Para além desta, a segunda impressão foi do maravilhoso que percorre o filme. Ou seja, a maior parte do filme é impossível. Irreal –  ainda assim, quase de certeza dei uns gritinhos, mas pensava no 007 e acalmava – Não é crível tanta provisão num bote, menos o é uma viagem em que o rapaz se vê com uma zebra que aterra lá dentro, a macaca Orangejuice e o tigre Richard Parker, nadador espetacular. Além do mais, o início do naufrágio mostra pessoas no bote e é repentina a viragem para a companhia dos animais. Depois seguem-se as peripécias incríveis de sobrevivência dos dois, de que saliento uma chuva de peixes voadores mesmo na hora H; mas são todas tão espectaculares quanto fictícias, e em que o único real podem ser impulsos e crença, a vontade de viver de ambos e a confiança religiosa de Pi. E o mais incrível, para quem ainda não tenha dado por isso, é a ilha onde aportam. Tudo nela é mágico desde o chão. Tudo. Como se o realizador queira apagar dúvidas, tomem, aclarem a mente.
E quando, quase no final do filme, o contador Pi diz ao jornalista escutador que a história contada à companhia de seguros teve de ser outra, sabemos ir conhecer a verdadeira história. Mas já não acreditávamos na anterior. O jornalista preferiu o mito. Talvez porque Richard Parker o olhava. Tranquilo. Da selva.
E quem quiser saber mais, vá ver o filme. Leia os, de certeza muitos, outros posts. Por certo digladiam o sonho e o real, falam da necessidade de imaginário quando o real nos afoga no hediondo da sobrevivência. Da razão que não é caminho de preferência, do relativo entre bem e mal, da luta entre instinto e razão que é fraca ou nenhuma perante a iminência da morte.
Deixo uma arenga a todos os que, como o jornalista, preferem a luta titânica de um rapaz e um animal selvagem entre si e contra os elementos: ela não seria possível sem a realidade. Eros falou sempre mais alto. E não há como desligar os dois mundos sem criar desumanidade.

PS1: talvez a minha análise seja um pouco diferente. Será porque me esqueci de colocar os óculos 3D, ainda virgens na minha mala :))

PS2: Apesar da ausência dos 3D: Há qualquer coisa de luxuriante e sensorial a irradiar em todo o filme, do sotaque à ponta dos cabelos de Pi. 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Carta


A vida é feita de rituais. Mas gostamos de pensá-los apenas quando um tempo diferente nela se instala. Se assistimos a uma missa, acompanhamos um ritual. Se enterramos um morto ou batizamos um recém nascido, também. Ou podemos vivê-lo, se nele cremos profundamente. Mas um quotidiano celularmente vivido é também constituído por uma série de rituais. Defendo os rituais quotidianos com unhas e dentes e não encontro transcendências e êxtases senão no que é humano. Por isso, ir e voltar do colégio eram rituais. Nossos. Um tempo diferente dentro da normalidade diária.
Todos os dias, eu e uma colega pedalávamos dez quilómetros na estrada nacional, desligadas do ser que éramos no resto do tempo.  Por ser eu uma arvéola (o meu pai dizia arvela, que é afinal o mesmo passarito), ela seguia na frente a comandar a marcha – bondade sua, que o vento matinal era ali bem mais cortante - e como era uma loirinha de bastos cabelos, olhos azuis e pernas muito adolescentes e eu uma criança do Biafra em recuperação, os apitos e adeuses na estrada, as cabeças todas enviesadas no vidro descido, pertenciam-lhe (seguindo sozinha, ninguém se lembrava de me apitar). E tudo endereçado, força loirinha, a loira é a camisola amarela, viva a camisola amarela…e outros piropos engraçados. Só na faculdade descobri a existência de um outro código para abordar as mulheres. Muito mais estranho e indecifrável. Nesse dia, eu desejava chegar a casa para contar à minha mãe que tinha enfim alguém a quem escrever em nome próprio. Pedalei os cinco quilómetros desatendida dos piropos e da própria estrada nacional, os olhos presos à roda de trás da minha companheira, enquanto o pensamento imaginava a França e uma amiga, indiferente a distâncias e outras  miudezas de importância nenhuma. E foi bonita a luz que nasceu nos olhos da minha mãe. Tão de alegria mansa como só nos olhos dela podia haver. Quando contei ao jantar, o meu pai, vai lá buscar o papel, e depois todos queriam ler o endereço, apesar de ninguém senão eu saber ler francês, deixa  ver, deixa-me ver também a mim, deixa-me ver. O certo é que dei logo ali uma aula de francês, que não fazia por menos. Se queriam ler, tinham de ler como eu ensinava. E pareceu-me que um orgulho fugidio nos olhos do meu pai quando meio ríspido, guarda lá isso.  
No dia de ir à mercearia –  uma vez por semana -  a minha mãe comprou-me o necessário para escrever à Francesa. Pois é, a Bernardette nunca soube, mas lá em casa o nome dela era a Francesa. E pertencia-me, a Francesa da Beatriz. E, nesse fim de semana, tratei de iniciar a extraordinária correspondência. Sentei-me durante umas horas a fazer um rascunho e a passá-lo, completamente entregue a mim mesma. As minhas irmãs ainda me espreitaram a carta que, ao contrário das que escrevia às minhas avós, caracolava estranhamente, mas eu logo dei um grito, ó mãe elas não me deixam pensar. A minha mãe deve ter considerado a queixa, porque veio a defender-me, deixem a mana que ela está a escrever à francesa. E ali fiquei eu a redigir a minha primeira carta a sério; até me custava a crer que com selos e tudo. Não sei como se sentirão os escritores quando se entregam à escrita, mas eu estava acima. Sublime. Agarrei-me ao dicionário e enchi umas quatro folhas bem medidas. Contei-lhe tudo aquilo que, pensei, eu mesma quereria saber dela, a minha aparência –  devo ter-me descrito pelo melhor, em objectividade de cores e medidas e sem juízos de valor -  a família, o lugar onde vivia, o colégio onde estudava, o que gostava mais e menos, os rapazes que por acaso não me ligavam nenhuma mas eu dizia que não tinha namorado, que era muito nova… mentiras assim. Escrevi o endereço com um cuidado tão grande que a mão suada me tremia. E coloquei os selos, desconhecendo que o correio para o estrangeiro tinha tarifa diferente. Depois, pus a carta sobre o louceiro da cozinha e pedi ao meu pai que a metesse na caixa do correio. E, passados quatro dias, começou a infatigável espera. Todas as tardes fazia a mesma pergunta, a francesa já me respondeu? E a minha mãe ou as minhas irmãs um monossílabo a cortar cerce a ilusão, não.
Mas os dias foram passando e a minha ansiedade minou de dúvidas. Tinha escrito mal o endereço, a francesa tinha mudado de casa, não tinha gostado da minha profusão de ideias… A agravar, as outras duas garotas já tinham as suas respostas. Passadas três semanas, deixei de perguntar, queixei-me à professora de inglês e pedi outro endereço. Ela fez um arzinho bem pesaroso e respondeu-me que não tinha. Então, esqueci a Francesa. Não sem antes amaldiçoar o tempo que lhe dedicara. Não merecia os meus esforços. Eu, que lhe contara tanto de mim. Intrigava-me o percurso da carta. Onde estaria?
E um dia em que voltava do colégio, quando a Bernardette era uma lembrança a desvanecer, as minhas irmãs a correr para a bicicleta, incontíveis,  a francesa escreveu-te.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Lincoln


Persigo Daniel Day Lewis. Espio-o por bem. Admiro-lhe o génio desde que, completamente por acaso – um bom acaso - o vi em My Left Foot. E tudo dele me aumentou, no filme que procurei a seguir, In The Name of The Father. Depois, assisti ao truculento Bill Cutting de Gangs of New York.
E rendi-me ao talento.

Filme de 2012 
Nenhum dos seus desempenhos é esquecível. E digo-o com alguma propriedade porque se me apagou completamente o enredo de Gangs of New York, mas a figura de malvado que criou, entre o gótico e o humor negro, permanece. Se num filme, os realizadores que me desculpem, Daniel Day Lewis é gene dominante em tal rigor que o resto eclipsa parcialmente. 
E agora, Lincoln.
Penso no que me faz correr para este actor. E concluo, sem originalidade, que é o seu despojamento. Isso mesmo. Que só me parece possível à custa de sofrimentos, tensões, e intensidade dolorosa do personagem. Como se Daniel Day Lewis desista em cada filme de estar e se levante alguém outro, de carne e osso, com tiques, modo de falar e andar próprios. Esta ideia vem-me talvez de me ligar à importância dos pormenores. O certo é que, se o comparo com outros atores e colegas de ofício, o distingo. Tenho pelas mãos de Meryl Streep um fascínio antigo, são emotivas mãos falantes. Contudo, em todos os filmes as mãos dela repetem pequenos gestos maquinais e que conheço, por exemplo, o gesto de alisar o cabelo a acomodá-lo atrás da orelha. Ora Lincoln, todos o sabemos, não é um cume como, por exemplo, My Left Foot. Mas é um extraordinário retrato. Onde não encontro Daniel Day Lewis ele mesmo.
Claro que a História também interessa. Trata-se de uma América sangrada e de um presidente cansado e em luta pela paz que, bem o sabe, exige a aprovação da 13ª emenda à constituição americana. É o princípio da concretização de uma ideia: o fim da escravatura. E a luta entre democratas e republicanos.
Mas o filme vive da humanidade de Lincoln. E nela existem o contributo do realizador e o do actor, a secundar-se. Ora, em toda a história, a vulnerabilidade do presidente sente-se-lhe na expressão do rosto, na voz arrastada e no andar curvado de velho prematuro, tão comum em pessoas muito altas. E é nessa humanidade tão gratamente inventada que o génio do actor exulta. Spielberg, por seu lado, dá-nos as relações de proximidade, um bom pai, um bom marido, um chefe que se mistura e está presente em locais inesperados e comuns, que tem vocação de contador de histórias e a bonomia recta que lhe grangeia popularidade e nos torna simpáticos os republicanos.
Fulgurante Lincoln este.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Un Copain




Coube-me em sorte estudar num colégio religioso para raparigas, única escola da minha terra. Foi uma bênção do Olimpo a esta humilde servidora e, na corrida das preferências, o colégio continua desmarcado. Era um mundo bem diverso do meu, com tudo no lugar, tempo em que vivi aristotélica e organizada, as coisas a tenderem para o seu lugar natural. As minhas freirinhas vestiam hábito e, para mim, espreitava-lhes uma aura sobre a cabeça, o que aguçava a graça natural das poucas professoras laicas que nos entravam vida dentro. Vida, pois. As professoras – com ou sem hábito - eram parte da minha vida. No terceiro ano, a novidade da disciplina de inglês trouxe-me uma nova mestra; e de imediato me tomei de amores tumultuosos e birrentos pela paciente jovem. Lembro-lhe as pernas finas e elegantes em estalidos de ossinhos, enquanto passeava a delicadeza dos sapatos entre as nossas carteiras, eles impantes, Olá, como estão. Aturdíamos no mistério das meias de vidro que desapareciam no alabastro das pernas e nós em dúvida acesa umas para as outras, traz meias?, e logo as mais sábias, se não trouxesse, a irmã directora não a deixava nem entrar. Descansava-me a voz calma, a juventude da pele, a ternura verde do olhar. Uma Miss. Que ainda por cima me passava à porta, sentada muito direita, ao volante de um carro verde comprido, moldura adequada ao etéreo da sua beleza. O máximo. Faladora inveterada, tornei-me a tagarela das aulas de inglês, o resto da turma ainda imerso no fascínio francófono e em retaliação a rudimentos de conversa anglo-saxónica. Aplicava-me de gosto na disciplina, estudava a fonia das palavras com o empenho de um cientista ao microscópio, mas, se a professora me calava ou ousava interessar-se por mais alguém, do meu ressentimento de birra nasciam aulas tumulares. Quando mais tarde a reencontrei, o único que recordava de mim eram as birras. Portanto.
 Uma manhã, a D. Maria Luísa abriu a aula com uma novidade: ia oferecer às três melhores alunas o endereço de garotas francesas que se dispunham a ser nossas copains, palavra que só valorei depois de lauta correspondência. Não entendi por que razão as garotas haviam de ser francesas e disse-lhe isso mesmo, no despudor de inconveniência que ainda hoje me caracteriza. Ela corou, baralhou-se um bocado, falou-me de outra escola e mais não sei quê que já perdi a esperança de entender e passou à frente. Influenciada pelos Corín Tellado das minhas tias, logo imaginei que o rubor tinha a ver com um amor qualquer que, manda a honestidade, nunca descortinei.
Fui a última a escolher. Desdenhado  pelas minhas colegas, o endereço da Bernardette sorria-me de um papelito dactilografado. Agarrei-o satisfeitíssima. Mal sabia a francesinha com quem se metia. Como diriam as minhas queridas professoras, Maria Auxiliadora dos Cristãos!, apelo que me trazia à memória grandes e renhidas lutas de cruzados. Pelo que, sendo esta a sua exclamação preferida, o colégio encontrou-me sempre a cerrar fileiras. Um soldado. Mas gostei. A Valer.
Ora, um dos meus maiores prazeres é a escrita de cartas. Escrevia cartas às minhas avós, a encher folhas e folhas de que elas duvidavam, habituadas ao estilo telegráfico de outras escriturárias. Mas, na volta do correio, as pessoas agradeciam sempre as novidades tão de pormenor e eu bem via o contentamento em que os olhos lhes ficavam. A minha técnica era simples, esperava o assunto (a escrita das cartas também daria bons posts) que germinava lá dos fundos e me secava a tinta no aparo. E quando elas saiam do anh, anh,anh… mergulhava a caneta no tinteiro e, borrões à parte, escrevia a meu modo, a carregar de letras linhas e espaços brancos, até abalroar as duas folhas. As margens eram-me obtusas e invadia-as de assunto. E de certeza, misturava frases dos romances que lia, no quotidiano ditado. Esmerava-me para gente que nunca soube quem era, num tempo em que Portugal me parecia enormérrimo. Lembro-me de uma prima que morava no Vale de Santarém, que eu calculava ser o fim do mundo. A palavra vale sugeria-me um lugar muito fundo e só presente depois de subir e descer grande quantidade de montanhas – ai a minha geografia - e a minha avó encompridava a distância a garantir, é muito longe, ela coitadinha não pode cá vir. No meu imaginário, a tal prima perdia-se se tentasse. E agradava-me escrever cartas para o fim do mundo. Imaginava o caminho da carta, a ir, a ir, a ir….
Portanto, ter uma copain foi um benévolo acontecimento. Encheu-me de ideias solares e conversas de mim para mim ( converso muito comigo). Tudo em francês.
E se o Vale de Santarém já era longe, imagine-se a França.