terça-feira, 23 de junho de 2015

Circe No Alfa Pendular

Tão linda a Carina! Trabalha no Circo Cardinalli (o Cardinalli é seu tio) e suponho que seja a figura principal do espectáculo. Tem dezassete lindos anos, é aluna de quadro de mérito e faz todos os exames em Lisboa devido à transumância da profissão. Gastou um ano a aprender e treinar o número com as faixas. Agora treina, pela primeira vez, um número de trapézio que lhe fere as pernas na parte de trás dos joelhos onde, depois do treino, os exercícios deixam feridas quase em sangue aberto (mostrou-nos uma foto, não treina em época de exames porque a escola está primeiro) e as mãos idem (também vimos). Aprendemos que não pode parar de se exercitar por estar ferida, que treina sobre, com dor redobrada, a magoar, a magoar, até ganhar o que chamou “o calo”.
A espontaneidade desta garota mostrou uma inquebrável vontade de viver e executar na perfeição o número de trapézio, facetas que não encontrei por exemplo nos jovens da mesma idade – maior parte deles – que cursam as escolas sem outra profissão além do estudo. Ouvi-a falar inglês e espanhol perfeitos (namora em espanhol, a mãe é inglesa). Soubemos que tem pais e irmãs artistas; a mais velha trabalha num circo internacional e foi tão boa aluna quanto ela; e a caçulinha tem sete anos bem formosos e promissores. O pai é supersticioso e tem bom augúrio nos números sete: todas as filhas nasceram em dias com sete. E este ano é um bom ano para a família, as filhas têm dez anos de diferença entre si, uma com sete, a Carina fez dezassete e a mais velha vinte sete. Estivemos assim até ao Porto – ela ia para Braga –, dependuradas no mundo da Carina, onde a noção de família convive com a de empenho e gosto no que se faz. Encantei na miúda que se exercita vezes sem conta em duas horas diárias, sem feriados ou dias santos, até que o número difícil pareça fácil a quem o vê (a prática não retira dificuldade à execução). Confidenciou-nos que  é esse o objectivo, tudo parecer liso, fluente. Deixei um obrigada aos pais. E como nos fez bem observar o que aquela garota gosta da vida, do circo e da profissão.

Com tudo isto, não vi a paisagem que acelerava na janela. Já atravessávamos a ponte quando soubemos que Campanhã estava próxima, o casario do Porto ali tão perto, em sua geometria específica. Observar aquela adolescente feliz ao longo de três horas naturais – a partir do meio da viagem, até eu compreendi que não estava apenas contente –, foi bálsamo no meu coração. Lamento ter guardado as palavras, talvez lhe fizesse bem sabê-las, que a gente ignora a medida em que os outros nos agradecem. Mas disse-lhe outras. E prometi que, se o circo se apresente na minha terra, eu que nem aprecio o espectáculo, vou vê-la actuar. Em directo. Palavra de escuteiro.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Circe No Alfa Pendular

As viagens com estadia existem-nos desde a concepção. Alegra-nos a vida sabê-las no horizonte: curtas ou longas; a média, pequena ou grande distância. O certo é que vivê-las nos enreda num mundo diverso. Salvíficas, pescam-nos à cronometria das horas e, sobretudo, dão-nos tempo livre. É isso mesmo, tempo livre. Não o tempo de ler, de ver televisão, de ir ao cinema. Rigorosamente, dão-nos o tempo de coisa nenhuma. Um tempo para nada. Tempo que é, enfim, ele mesmo. Nosso e sem finalidade, portas seladas ao quotidiano de deveres. Pessoalmente, o que mais me descansa é o tempo de nada a fazer. Sem compras e contas sobre contas, refeições, máquinas de roupa, ruas a limpar, flores a regar, visitas. 
Pode o leitor dubitar em solilóquio, e não terá esta mulher um tempinho de coisa nenhuma em sua casa, e é claro que sim, sem ele, já eu teria encarquilhado, o completo do meu ser ressequido e todo espartiçado. Porém, esse é alívio momentâneo, cálice de brevidade. Desconta mais do que conta. Viajar sim, conta.
Não sei de que substância dependo, mas a verdade é que as viagens acenam-me do longe e logo se me amplia o espaço de viver, a concentração da alma a derramar por ele inteiro. Neste anteparo do estado de graça,  apuram-se-me os sentidos: noto o sol e a lua, e distingo tão claramente as supernovas como as ervas mais brandas e rasteiras do caminho. Não sendo dada a grandes e pormenorizados planos, o futuro aparece-me, então, como tapete que rola com vagar e nem sempre sem atrito, que emperra e tem de ser desmontado, oleado; que, reposta a engrenagem, retoma o curso uma e outra vez. E o que sem a cenoura me aparece um ziguezague esforçado e aleatório, como que ganha forma e figura se, lá à frente, um sopro agita a bandeira que sonho empunhar: uma viagem.
Foi em conversa banal que a ideia despontou. Talvez viesse apenas como vontade de evasão, pura necessidade – um fim-de-semana à vontade. Fora de órbita.
De rompante, na catadupa das horas e dos deveres, abrimos uma brecha e demos por nós dentro de um comboio.
Da viagem retive, no outro lado da mesa, uns olhos lindos e verdes, cabelo loiro, figura esguia em blusinha de alças, boca grande e sorridente a que um aparelho não tirava figura. Rosto limpo de maquilhagem, um moreno pesseguento e apetecível de dentadinhas na pele. Estava contente poro a poro. Depois da troca de sorrisos e dos comentários afogueados sobre a fatalidade de um calor a rondar os 40 graus em comboio preparado para arrefecer apenas 10 (não volto a viajar sem o leque, nem que vá para o polo norte), compreendemos que vinha do último exame de 12º ano. Perguntei como tinha corrido e o sorriso satisfeito em antecipação. Por desfastio, indaguei o que queria seguir. E ela, não quero continuar, não preciso. Devo ter feito um ah pouco convincente, que acrescentou  em contentamento qualquer coisa que os ruídos do comboio me impediram. E a minha irmã de olhos postos nos meus, a esclarecer-me, é circense. E eu sem pio, meio tontinha, para dentro de mim, mas há algum país ou lugar de nome Circe, então a Circe não é a deusa que reteve o Ulisses por anos e anos… E a mana que já olhava em frente e tinha continuado a conversa que eu não entendia, perante o meu silêncio idiota e a baralhar-me ainda mais, apontou na sua vozinha terna, diz que trabalha com os panos. A minha atordoada cabeça, trabalha com os panos como, que profissão será essa, em Circe e a trabalhar com panos (palavra, que me parecia coisa da Grécia antiga). E disse alto, para não me comprometer, ah sim, e como é. Então, a garota, um tudo nada de orgulho no olhar, prime um botão, passa-me o telemóvel  para a mão (sei lá o que era) e mostra-me em filme um número de contorcionismo acrobático espectacular executado  com auxílio de duas faixas de seda que descem quase desde o tecto de uma tenda de circo – a minha mente a acordar, ah sim, circense, circo, tá bem –. Um corpo extraordinário e inverosímil (seu, dela) que me assustou de cada vez que se desenleava e descia, repentino, mais uns metros (veio vindo naquele espectáculo desde o cimo). Sempre a baixar artisticamente, o cabelo solto feito mancha amarela oscilante  se de cabeça para baixo ou a fazer ângulo com a faixa. Uma Profissional!

terça-feira, 9 de junho de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

No caminho, a minha pensativa companheira abriu um súbito de riso e apesar dos meus protestos, desceu o vidro, deitou a cabeça de fora e gargalhou que nem uma perdida enquanto eu suava qual estivador, a cara numa abrasa. Devemos ter sido um espectáculo, ela era e ainda é linda, a sua longa e solta densidade capilar toda fora do carro a baloiçar com o ímpeto, para a frente, para trás, para a frente para trás. No meio da diversão, fi-la prometer que não propalava a história, mas foi a primeira coisa que fez mal pôs um pézinho fora do automóvel. Bem vi os olhares e os risinhos frouxos a perseguir-me dias e dias.
            A peça seguinte aconteceu quando saía do parque de estacionamento junto ao local de trabalho. Tinha ido a um funeral e abandonara-o cedo, convicta de que o desgosto privado se deve manter nesse registo e que há momentos em que cabe aos outros o respeito.  Saí sozinha, dirigi-me ao local onde deixara o carro e  esperei que passassem todos os automóveis antes de me meter à estrada – passou um comboio deles. Quando não avistei qualquer veículo fiz-me à estrada nas calmas – talvez não assim tão calma –. De repente, senti qualquer coisa a bater-me na lateral do carro. Travei, saí e vi um motociclista caído. Comecei a suar a toda a brida. Intrigada, fui ajudá-lo a levantar e perguntei-lhe, mas o senhor saiu daonde?! E ele a equilibrar-se com muita dificuldade enquanto eu lhe levantava a lambreta, muito obrigado, menina, Deus lhe pague; foi aquele maluco que me bateu, e apontava um carro a desaparecer na curva. E eu, não, não, eu é que lhe bati, não foi mais ninguém. Ele, ai foi a menina?! – e olhava para mim desconfiado, a preterir-me, preferindo o motorista do outro automóvel. E eu, sim, o carro que lhe bateu é este – apontava o meu carro – e insisti, mas o senhor saiu daonde? Estive ali a olhar a estrada, esperei que passassem todos os automóveis que vinham do funeral e não o vi a si. E ele a abismar-me na resposta, eu também vim do funeral, e foi por esta estrada. A verdade é que a psicologia tem uma explicação para este fenómeno em que os sentidos obedecem estritamente à ordem cerebral "não atravessar enquanto passam automóveis", mas continuo a culpar-me por não ter visto o senhor.
No meio deste desencontro em que atropelei um homem e uma lambreta invisíveis e o ofendido assegurava que tinha sido um maluco qualquer a atropelá-lo, e, portanto, nós os próprios mesmos, estaríamos isentos de culpa,  levei-o ao hospital e em seguida a casa remoída pelos estragos do trambolhão: quase não andava; além de esfolado, o braço estava perro como tudo; coxeava que só visto. Este quadro prostrou-me, permaneci o inteiro de uma noite em ânsia desmedida, a imaginar que lhe teria partido sei lá bem o quê e que nem fora radiografado. Tudo acrescido dos demais temores que a noite traz. Nesse interim de remorso, chorei o que Deus dá e não chegou. A forma como o velhote se deslocava e quanto o tinha magoado imperaram na minha noite branca.
No dia seguinte, entreguei o caso ao seguro e prometi em casa que não faria visitas ao senhor ou nunca mais estancava a torneira das lágrimas. E à noite, tu sabes aquele homem que ontem atropelaste? Pois tinha-lhe dado uma trombose e está paralisado do lado esquerdo.
 Palavra, jamais imaginaria que um avc me desse jeito.

Volantes Que Me Fazem O Ser

 Hoje, a água cai em pingos grossos, desviados uns dos outros como se não queiram tocar-se e executem o seu trabalho, profissionais, num mutismo cerrado que os trovões cortam a arrastar os móveis pesados do céu, cómodas enormes de gavetas a abarrotar, camas grandiosas e gigantescas. E os trovões aos pontapés a eles, a riscar luz no céu a cada movimento, vaidosos de calçarem ténis luminosos; e arrastam-se a murmurar na sua voz antiga, como gigante ou deus engasgado que se eterniza a limpar a garganta, cheios de sons guturais, autênticas garras para o medo humano. Palermices de quem se veste da água que cai do céu. Ou de quem a vê e sente. Abençoada chuva!
            Agora que a cabeça me ficou literalmente fresquinha, concluo que na relação eu-volante, encontrarei sempre alguma coisa nova para acrescentar à longa enumeração de despropósitos. Portanto, vou assestar baterias a outro tema – saturei deste – e abandonar o assunto sem o esgotar. Consola-me a ideia de que um filósofo - Giorgio Agamben – partilha da minha opinião: nos seus livros, os temas não estão fechados. E cita Giacometti, “nunca terminas uma pintura, abandona-la”. Prefiro este sentido de inacabado, o inconcluso fustiga-me mais que o encerrado, o completo, o final. O imutável sem acrescentos é inumano. E bastante desumano.
             Não deixo o tema com um episódio-chave, mas com excertos de dois, que não amiúdo. Pálido será este acrescento, que as minhas experiências com volantes são mais o eu que o eles.
            Certo dia em que fui mais cedo para o trabalho, encontrei uma garota conhecida, abrandei, rodei o manípulo do vidro, pus a cabecinha de fora a chamá-la pelo nome e logo lhe ofereci boleia. Ela aceitou contente, riso aberto, o horário e o local de trabalho eram comuns. Sentou-se e fui guiando devagar, na busca de um lugar onde proceder à inversão de marcha. Passara vezes sem conta nessa rua em corrida para um comboio. Porém, a perspectiva de um pedestre da minha qualidade, em nada favorece o eu condutor, era como se nunca a tivesse pisado. A garota ia-me assinalando os edifícios um a um, havia sol, a manhã augurava um dia luminoso e seguíamos contentes e descontraídas. Já íamos quase no final da rua quando vi um portão aberto e o julguei oportuno para o que me interessava. Porém, tal como na noite de chuva – o problema não foi ser noite nem haver chuva –, encostei demais. E, claro, repeti tudo, travei e saí do carro. E ele não desencostou. Estava ali, coladinho no portão. A fixidez das coisas pode ser apavorante.
Entretanto, a minha companheira saiu, mirou a asneira e disse muito descansada, eu ainda não tirei a carta nem tenho nada com isso, mas já riscou o carro. E foi sentar-se no seu lugar, sorriso um tudo nada mais curto. Quanto a mim iniciara a fase de suor abundante, mãos viscosas por inteiro. Entrei, saí, voltei a entrar…
A pendura, muito mais nova mas com bastante mais senso que eu, já estamos atrasadas e não pode deixar o carro assim, não sei se reparou mas está um bocado atravessado na estrada. Cada vez mais aflita, confirmei a sua afirmação e fui de novo verificar o portão. Pousei-lhe o meu extremo de atenção e reparei que tinha uma estrutura em madeira a toda a volta e o resto eram quadrados de arame ondulado, outrora verdes. Apliquei a receita de meu pai. Sem resultado. O palerma não se afastou nem um bocadinho. Já a contrarrelógio que o tempo escasseava, sentei-me de novo a matutar. De repente, viro-me para a garota e, Maria João, de quem é o terreno? Ela, não sei, está sempre assim de portão aberto, mas não me parece que viva aí alguém. Saímos a averiguar.

Espreitámos. Lá dentro crescia um matagal onde duas ou três cabras sem pernas mastigavam um contentamento clorofílico. Olhei a garota a medi-la enquanto sentia o suor a correr nos escaninhos mais imprevistos (não era só costas abaixo, não) e adiantei, se a gente arrancar o portão deste lado? As traves estão todas podres – e a apontar um lugar -  Deixo-as aqui para o caso disto fazer falta. Ela a abrir a porta do carro num desejo quase perverso de estar sentada, a monologar, eu não vi nada, nem sei de nada, pode fazer o que quiser que eu não vejo; - e num desabafo sussurrado - ai se a minha mãe sabe. Então eu, uma mulher cheia da força dos fracos, sem olhar para lado nenhum senão para o barrote, arranquei o bocado que oprimia a minha manobra, coloquei os despojos muito direitos ao lado da ombreira do portão, terminei a manobra e fomos ao nosso destino. 

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

Do meio do desalento, suspirei de alívio. Estava em presença da fase terna; por assim dizer, a melhor fase de uma bebedeira, se é que alguma tem serventia. Nesse estádio intermédio, o bêbado trata toda a gente com apreço e tem coração de ouro que por norma abre em mostra de penas. Sem gritos ou implicância. Entretanto, o meu pai beijou o neto que embrenhava a ligar um ferro eléctrico a uma torradeira usando extensão e ficha tripla, e parou a olhar-me. Inquiri sobre o favor e ele, ó filha tens que me levar e mais ao Luís da Vitalina ao Velório da Laurinda, a gente tem que lá ir acompanhar, tão amigos que éramos da rapariga. Eu, muda e queda. Lamentosa. O pensamento egoísta, carraça fixa no automóvel, sem se deter naquela morte para que não havia hipótese, injusta. E ele a saltar tudo, catapultado por preocupação irreflectida,  como é que o tiro dali sem riscar mais. O meu pai atentando-me no franzido, que é que tu tens filha, aconteceu-te alguma coisa? Tás doente?  - e num amor súbito – Diz lá ao pai. Este tipo de discurso, tão a desábito no meu progenitor, fez-me sorrir. E, no embalo do interesse, contei-lhe. Com alguma dificuldade, o meu pai veio vindo e sentou-se a meu lado no cadeirão, a verga a ranger por todo o lado. Olhou-me com olhos estagnados e vermelhos e despediu o seu oráculo, ó filha, qual é o problema, o que entrou tem de sair - e rematou na lógica da batata -  tudo que entra, sai. Agora, fazes marcha atrás, tiras o carro e pronto. Concluí que o intelecto já lhe estava embotado e não valia a pena tentar. Mas, ainda assim, expliquei. E ele oraculou de novo, imutável. Então, agarrei o guarda-chuva e a chave do carro, ordenei à criança que não saísse e levei-o ao local do crime. Debaixo de uma tempestade com tudo que lhe pertence, o meu pai observou, avançou dentro da garagem até onde conseguia, avaliou o espaço com a mão a entrar entre veículo e parede e pespontou, tens razão, se fizeres marcha atrás, fica mais riscado. – e demonstrativo, a mão colada aos dois – é que encostou mesmo. E a Chuva impiedosa.
Sentei-me ao volante na disposição de riscos duplos, mas sem vontade para ligar a ignição. Gostava tanto daquele carro, como é que podia riscá-lo sabendo que o estava a fazer. E estava nisto, porta entreaberta, quando vi o meu pai lá atrás, encharcado, guarda- chuva à banda, ó pai, segure isso como deve ser, não vê que se está a molhar todo?! Mas, à medida que a chuva lhe escorria pelo rosto e os cabelos do arrepio colavam à testa aparecendo sob a boina como mortos, ele ia esclarecendo as ideias. O meu pai pensava. Pelo retrovisor notava-lhe o esforço de roldana perra a puxar uma ideia annnhhnnnn….annnhhhhnnn…., os olhos pequeninos, assanhados, a ganharem expressão em câmara lenta. A chuva quase vertiginosa e ele todo vagares. Sentia-o concentrado, a enxotar a nevoeiraça bacenta e sem vislumbre que lhe toldava as ideias, o intelecto preso, avançando penosamente no raciocínio. Tentava encadeá-lo e as ideias fugiam-lhe do laço, escorregavam. E ele recomeçava. Insistia. E eu para mim, a incentivá-lo de cabeça, não desista, não desista; força, força, força. Eis senão quando, num rompante, endireitou o guarda-chuva, veio até mim, segurou a porta e, ó filha, já sei, não precisas de riscar mais o carro. Ligas o motor e eu vou para a porta da garagem e empurro a parede em que ele encostou, não vês que isto é em madeira, há-de dar um bocadinho. E depois, faço-te sinal e tu sais descansada. E foi tal qual. O meu pai deitou as duas mãos e um ombro à parede da garagem e fez surgir um desenho animado (ou um milagre, como se prefira), por artes mágicas (ou força dele) logo ali se abriu o espaço que antes não havia e pude sair sem perigos. Por causa das coisas, não voltei a entrar. É indubitável: ainda que embotado e sem saber conduzir, o meu pai foi – e continua sendo -  bem mais expedito e perspicaz que eu, pessoa encartada e supostamente consciente de si e do mundo.  
Voltámos. Mas, enquanto eu regressava de alma nova, ele retomara o feed back e já mergulhava enovelado na morte de minha mãe, a misturar lágrimas com costas da mão e gotas de chuva. Sentou-se de novo na verga rangente, tirei-lhe o boné a escorrer e ali ficou em solilóquio, os pingos do cabelo  sobre as calças pesarosas, confessando tristezas e erros – nesta fase também despontam os arrependimentos - enquanto eu dava banho e jantar ao garoto meio intrigado do comportamento do avô. De onde em onde, atirava-lhe umas linhas de continuação, expressões de valor zero, pois claro; ou, então pai, que é isso agora, não chore…
Esvaziado o desgosto, o meu pai levantou-se, foi até à porta e, já venho, filha. Regressou outro, mudara de roupa e estava decidido, vamos?, assenti e saímos.

Não me lembro de ter conduzido em temporal maior, mas esquecemos tanta vida e tenho tal apetência para emparceirar com chuvas torrenciais que pode ter acontecido. O meu pai, ainda estacionado em sua fase sacrossanta, de filha assim, filha assado, inchava a meu lado. O vizinho, que apanháramos na curva do caminho e a quem tive de abrir e fechar a porta, seguia no banco traseiro em silêncio comatoso, um pivete atabernado dentro do carro que não se aguentava, os vidros baços e a escorrer, o limpa para-brisas num virote cheio de fernicoques. E o meu pai dando largas ao seu orgulho sem geometria por a filha saber conduzir no meio de tanto raio e corisco, a apontar ao vizinho os estragos do caminho como se voássemos dentro de uma nave espacial, a coberto de qualquer maldade  da natureza. E tudo era um achado, parecia-me estar a meio da primeira viagem de circum-navegação. Contudo, seguíamos apenas para o resultado de uma burrice médica: uma rapariga morta em cirurgia de carácá. 

Volantes Que Me Fazem O Ser

Quanto se pode gostar das coisas santo Deus! É um apego desaforado que desarvora por dentro de nós se deixam de ocupar o espaço habitual. Se desaparecem sem aviso. Mas com algumas acontece, não se sabe como que não têm pernas, nem pés, nem nada que lhes permita movimento autónomo. Mistérios.
Ignora-se por que razão somos assim ligados aos objectos mais díspares. Pode-se aventar timidez, insegurança, carácter reservado e introvertido do sujeito; dizer que o homem é um  animal de hábitos; explicar que os afectos são necessários e tal e tal; intuir que a relação com os objectos é mais fácil – a ausência de vontade e apetites lima muito aborrecimento  e a sua oralidade inexistente resume-se, nuns poucos, a monossílabos repetidos, técnica alimentada a pilhas que não conta para o caso -; pode-se mesmo aduzir que o sujeito exerce sobre eles uma relação de poder exemplar. Etc. Tudo isto é um molho de chaves inúteis, não há uma que preencha a fechadura. Por mais que a psicologia estude e a psiquiatria desconfie, ninguém descobre. E que não fiquem as ciências irritadas. Pela sua natureza, a questão isenta-se de solução, é de viver e aceitar. Prefiro chamar manias aos particulares de somenos que nos apoquentam a existência se nos falta este ou aquele objecto. A vida sem manias é inconcebível, desinteressa de tão insossa.
Com o primeiro automóvel que guiei aconteceu isso mesmo: não conseguia imaginar a vida sem aquele volante, aqueles pedais, a dureza precisa dos estofos. E o mais. Quando começou a parar por isto e aquilo e era hora de o trocar – coisa que não faço sem um espesso véu de tristeza a envolver –, palpei-o cirúrgica, a garantir que o mal era apenas interno; olhava-o como a familiar próximo e sentia o remorso pairando na intenção de largá-lo na velhice. Gastei cerca de um mês em ternas despedidas e, a meu pedido, certa incógnita manhã acordei e dele restava o espaço. Às vezes ainda o encontro parado e discreto, meio decrépito, e quase me afronta que nem um frémito o percorra, que não escancare portas e baixe vidros, que não se vire para mim, as rodas numa alegria a rimar com os meus olhos que o miram a escorrer ternura grata. Parece-me sempre amuado, de birra. E, se o encontro no trânsito, lá segue o seu caminho vagaroso, burrito que mal se tem nas pernas. Porém, em seu tempo áureo de volutas juvenis, vivi com ele aselhices inúmeras e seus remendados.
Nesse tempo, vivia na aldeia, acordava com os pássaros e os sons familiares de meu pai a descompor os porcos invectivando-os tão acirrado que me confrangia, admirada que eles não se ofendessem e galgassem a cancela numa saída sem regresso. Depois sentia-o a arrumar o carro de mão da ração, dobrar o mau humor até ao dia seguinte e entrar em casa. E era como se, até àquele momento, eu fosse exterior à vida e a mim, só então reencarnava.
Certa noite de chuva e trovoada, regressada do emprego em horário nocturno, e depois de uma carga de trabalhos  para domar o limpa para brisas, que o carro era bem mais voluntarioso que eu e caprichava em dizer-me de si e que tinha voto nas viagens que fazíamos, deixei-me entrar em mais uma asneirada. Ora, como vinha dizendo acerca da intempérie e de nós dois, estava eu acabadinha de chegar a casa quando, ao entrar na garagem, o deixei encostar à parede. Travei mal senti o desastre, deixei-o meio fora meio dentro, tirei a criança e a pasta e fui desalentada remoer o problema para o cadeirão de verga da cozinha enquanto o garoto brincava com extensões eléctricas num afã de enfia e desenfia a sugerir o electricista potencial que o futuro negou. Eis senão quando, no meio dos trovões, surge o meu pai na porta da rua. Mão no puxador, deu uma espreitadela e pude ver o boné, a pála  cronometrada, ping, ping, ping e olhos piscos. Logo entendi que estava com os copos. No passo seguinte, mal ele abrisse a boca, eu sabia a fase da bebedeira. Esperei. O meu pai entrou meio trôpego e começou, ó filha, o pai queria-te pedir uma coisa.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

De súbito, um condutor solitário passou perto, lentamente. Em inspiração repentina, saltei para o rebordo traseiro do carro dele e agarrei o pau comprido que faz o contacto eléctrico na rede sobre a pista. O jovem não se apercebeu da minha acrobacia e fiz bem umas duas voltas naquele esterlaio, desejando que se abeirasse das passadeiras laterais, os meus folhos cor-de-rosa todos empolados, calculo que o cabelo a ir para trás e possivelmente uma data de gente a pensar, o que é que aquela maluca anda a fazer santo Deus, há cada uma…. Eu, atrapalhadíssima, continuava ali, de pé que nem bandeira inusitada, sem saber que fazer. E, de repente, os meus amigos passam por mim, vêem-me naquela figura e caem na risota de tal forma que enfileiram com uma data de carros (castigo divino, sem dúvida). Aí eu acordei para a realidade e, com conhecimento de causa sobre choques desamparados, saltei para dentro do carro: uma perna, depois outra e pumba, sentei-me. Impecável. Olhei o meu companheiro, lindo, muito aprumado. Era Setembro e os meus folhos subiram talvez demais, mas nem pensei no bronzeado a destapar. Apenas mirei o meu abismado companheiro a quem, a meio de uma volta, caiu uma rapariga cor-de-rosa no assento do lado. Por sobre o chinfrim, enveredei por afogueada explicação, avançando que vinha agarrada ao varão já há duas voltas e era melhor sentar-me antes que um maluco qualquer se entusiasmasse a fazer-me cair. Se ele riu foi para dentro, porque me fitou atento e breve e logo se quedou compenetrado na condução. Guiou tão mas tão bem que não chocámos uma única vez e me pareceu até caminho de estrada, sem cheiros que detesto, as buzinas de repente longe, a milhas de nós. Voltei a agradecer-lhe no final da corrida e segui para junto dos meus amigos que, feitos  parvalhões, riam a bandeiras despregadas. À conta deste episódio, ainda hoje oiço troças descabidas. Abandonaram-me à sorte e não se coíbem de piadas brejeiras. Ó injusta e cruel mente juvenil que ainda neles estrebucha.

Não voltei a encontrar aquele rapaz que bem se podia chamar Salvador. Não perguntámos nomes e desaparecemos um ao outro. Mas é indubitável: ficou em ambos este comum assimétrico, esquisito lendo-se o u. Engraçado, vá.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

Palavra que ainda hoje me intriga o afã das gentes que acorrem aos carrinhos de choque para uma volta gaseada, de encontrões sem destino fixo e com períodos de curral encalacrado, o volante em desespero, a um lado e a outro qual barata tonta. E tudo isto no meio de grande barulho e infalíveis buzinadelas que ainda não entendi se propositadas. Se eu mandasse, não havia uma pista livre mas uma estrada ou similar. Com direcção definida.
Porém, não se pense que deixei de espreitar os bólides de feira, centro de aprendizagem de garotos desmamados. Já frisei que me intrigam. Portanto, surgindo ocasião, investigava o motivo desse gosto apócrifo e denodado à diversão. Sem proximidades indesejadas. Cuidadosamente.
Entretanto, fui crescendo cada vez mais próxima dos gostos de minha mãe e deixando cair feiras, ruído, ajuntamentos. É pena, mas herdei somente os gostos – e sim, também a sensibilidade - que sou repentista e nada comedida no uso do verbo. Estaria na primeira metade dos meus vinte anos quando, no aniversário de uma amiga, aflorei o assunto de ter medo de andar nos carros de choque. Logo ali se fizeram dois pares e combinámos – fui arduamente convencida – ir à feira, que por acaso era vizinha da casa dela, andar nos carrinhos de choque.
Ora eu, como possivelmente mais gente, tendo a ceder lugar a quem o dispute comigo e sou uma pessoa indecisa para tudo que temo. E temia tal viagem. Além disso, o meu parceiro(a), que já nem recordo, não me estofara o medo em confiança. Portanto, à palavra de ordem, “agora”, não fui muito lesta a correr para um carro e deparei-me com o outro par, a minha amiga e o seu fiel amigo, a sentarem-se no carro para onde também eu correra. Sem qualquer intenção de mo cederem. A empurrarem-me dali, vai ver se há outro carro livre. E enquanto os olhava bovina, bem no meio da pista, soou o sinal de começar outra viagem. Palavra que não sei o que aconteceu ao meu par. Mas eu estava corderosamente no meio de uma pista de automóveis que podiam cruzá-la por todo o lugar, o meu vestidinho de flores a agitar folhos e gregas, “cuidado!”. Olhei para os dois lados pejados de  frenesim a motor. Os amigos, indiferentes à minha sorte, tinham colocado o disco na ranhura e desaparecido. O que é que eu podia fazer, pensei enquanto o meu viés de drama antevia pernas e braços partidos ou me esmagava sob um daqueles arremedos de automóvel, uma coisa meio romba e de feira, que nem sequer rodas tem. Subiu-me uma revolta ante um fim tão sem brilho, espaventoso e assistido por uma chusma de mirones deslaçados. Era demasiada falta de qualidade. Revi as minhas opções em fracções de segundo: correr não podia, até porque as minhas pernas têm o péssimo hábito de paralisar nos momentos de stress, deixo mesmo de saber como se anda. Procurei uma saída, mas estava rodeada de carros indiferentes que, ao mínimo movimento, decerto me trucidavam. Portanto, aceitei a fulminante certeza de não conseguir atingir nenhuma das laterais da pista.

Volantes Que Me Fazem O Ser

Há pessoas a quem o bulício não entusiasma. A minha mãe pertencia a esse número. Tinha jeito recatado e palavras de acinte, e bastante me apraz que um dos netos use às vezes o mesmo estilo. São pessoas que estão nos lugares sem que a ninguém pese a sua atenção, expressam-se em parca e luminosa  palavra e  avaliam cirurgicamente.  O seu raciocínio é cristal simples, beleza maior que agradecemos.
            Na infância, estas qualidades de minha mãe desanimavam-me. Avessa a burburinho, afastava-se de mexericos e festas e eu gostaria de festas, feiras, gente. Mas é verdade que a única vez que fomos os três – eu e meus pais – a uma feira, não passámos da primeira barraca de comes e bebes. Que horas longas. Já muito tarde, todas cansaço e fome – só havia bebida -, o meu pai, numa alegria e força avinhadas e caprichosas, arrancou-me ao colo onde dormitava e obrigou-me a ir com ele para os carrinhos de choque. Nesse tempo, tinha um medo irracional dele e dos carros de choque e desatei num berreiro apavorado que o fez reverberar na decisão, a insana robustez da teimosia ébria a impôr-se sobre razão e afectos. Lembro a minha debilidade estéril que ansiava por minha mãe e os seus braços a magoar-me o corpo como grades de prisão rentes à pele, sem afrouxamento, uma respiração etilizada que me há-de agoniar até à morte. E da aflição no rosto de minha mãe doendo-me não sei onde, mas pode que no corpo todo. Entretanto, a corrida começara e o ruído ensurdecedor dos carros em andamento tomou conta do recinto e abafou os meus gritos de medo, colou-se hipnótico às faíscas que chispavam do chão, ao pesadelo dos choques dos carros uns nos outros. E no meio deste desatino devo ter ficado inerte de terror e houve o repentino do meu pescoço atirado para trás como puxado por uma mola e o sangue a correr. O meu pai de bebedeira aflita para a minha pobre mãe de olhos enevoados e braços estendidos, bateu no ferro do carro, não se segurou, a culpa foi dela. Ou qualquer coisa assim. E queria desaparecer dentro daquele colo, pouco importada da dor e dos soluços imparáveis, a pensar contínua se as rugas do vestido me escondiam o suficiente para que ele não me visse mais, não me puxasse de novo e nunca nunca me encontrasse.

            O primeiro contacto com carrinhos de choque foi traumático. À séria e com sequelas. Mas os traumas superam-se. Como? Sobrepondo-lhes situações muito mais irrisórias e até hilariantes. Com objectos da mesma natureza, pois claro. A vida fez-me esse favor. Preencheu os espaços em branco. Porque eu, por mim mesma, nunca mas nunca mais, pus, voluntariamente, um pé num carrinho de choque.

terça-feira, 2 de junho de 2015

29 de Maio de 2015

Todos temos as nossas pequenas manias de família, pormenores que são laços a segurar as relações e onde descansamos. Não são fundantes, mas colaboram na tonalidade própria de cada célula, são a sua clave de sol. Por vezes, ocorre-me que sou parte dessa clave no meu núcleo familiar. As minhas manas pedem-me ideias e esperam propostas de refeições, doces e surpresas com o jeito repousado de doente que confia no médico. Pouco discutem o que avento e cumprem a sua parte de boa mente. E este ano, repetiu-se o ritual no aniversário de meu pai. Combinámos um jantar surpresa com os netos e avisámos os visados para que guardassem lugar na agenda – é malta muito preenchida.
            Mas a vida – sendo mais justa, as pessoas – surpreende. Se o mundo físico se enche de imprevistos, os homens são, felizmente, as criaturas menos sujeitas à fixidez do hábito. O mesmo é dizer, esperamos neles uma coisa e sai-nos outra. Foi o que sucedeu. Quando liguei de véspera a tentar saber a que horas começávamos a limpar a casa de meu pai, a minha irmã, uma pitada de alegria na voz, o pai já limpou a sala; entrei lá e até cheirava a lixívia, podes ficar descansada. Desligou e fiquei parvamente a olhar o bocal meditando na atitude de meu pai. Ele bem sabia que eu não deixaria passar a data. Calculo que, conhecedor da minha vida, tenha querido ajudar. E gostei tanto. Prefiro pensar que foi este o motivo, serve-me melhor. E acredito que sim, que talvez o meu pai tenha adivinhado.
 O jantar foi-me quase penoso e não consegui o meu normal. Mas estávamos juntos e é uma alegria e um orgulho olhar os nossos filhos e sentir que cresceram e têm um querer independente, cada um na sua forma de estar. E o avô contente deles, os olhos de um a outro, a contar histórias de um tempo que, felizmente, não conheceram.

            O meu pai. Há anos que reitero o meu gosto por ele. Engasga. Atrapalha. Fica com o pigarro preso e os olhos húmidos. Mas um dia destes respondeu-me. Talvez não repita nunca mais. Ouvi-o pela primeiríssima vez a murmurar, também eu filha, também eu gosto muito de ti. Calculo os valados que pulou, cabeços sem fim lá por dentro a rangerem, mas conseguiu. E aconteceu numa hora tão certa e exacta como não há outra.