sábado, 25 de junho de 2016

Palácio dos Biscainhos

O ser humano tem essência. Terá. Mas as idiossincrasias portuguesas bradam aos céus. Gastamos a vida a amealhar uns patacos para viajar e conhecer mundo, mas desconhecemos as paredes que nos rodeiam e pouco sabemos dos lugares que habitamos. O quotidiano neutraliza-nos a curiosidade e conviver com os monumentos torna-os banais. Facto que, em Braga, não é excepção. Na Praça Conde de Agrolongo, uma parede de monumentalidade  a impor-se e ninguém soube esclarecer-nos a que pertencia, que nome tinha, de que século datava. Sob influências de mapa mal gerido, atirámos uns nomes que todos desconheciam. Nem os transeuntes, nem o rapaz do quiosque da sagres montado no largo e vizinho diário, arriscou uma piscadela curiosa à exuberância gigante que lhe dá sombra.
Para agravar a situação, há mentes sem bússola: as ruas não interceptam, os largos expandem sem direcção, as casas são alheias a endereço; tudo pertence a uma rua que não se sabe e beneficia de número desconhecido. Incluo-me nesse emaranhado que ignora onde está e a quem a cartografia pouco ajuda porque empreende e se pensa num fora de sítio constante.
Na sexta-feira, mercê de aguda confusão, o Palácio dos Biscainhos escapou-nos e, se não fora no sábado a informação de um bracarense simpático a situar-nos e que nos levou quase até à porta, escapulia-se de todo. Uma coisa tão de maravilha não pode mesmo perder-se.
Até hoje, não lhe encontrei razão para o nome, mas há-de haver, que fui olhar e não lhe vem das famílias que o ocuparam. Pelo que me foi dado observar, ao tempo, e sobretudo naquele palácio, a vida  era mesmo muito recatada e nada teria de biscainho no sentido usual de delambido, gente de resposta irreflectida e acerada,  sempre na ponta da língua. Se houve mesmo um proprietário a engastar no conceito, não consta dos anais públicos, chegados via google. O monumento data do século XVII, sofreu várias actualizações e foi doado à cidade pelo último visconde do Paço de Nespereira (não é por nada, mas um visconde de nespereira fica logo menos visconde, que as nêsperas não se prestam à realeza; se até como fruta são uma lástima!). Em Braga, foi o que mais me luziu. Conjuga em todas as dependências, mas o que aflui e corre por ele inteiro é o sentido de quotidiano.
Na compra do bilhete, fomos avisados que a visita seria acompanhada mas não guiada. Admirei, se nos acompanham por que não nos guiam. Resposta, porque não iam falar para nós em inglês ou alemão...e eu ainda sem entender – compreensão lenta -, mas eu não preciso que se esforce tanto, qualquer explicação em português corrente me serve. E ele, ahnnnn...pois... mas há ingleses e alemães. Esclarecidas, fomos admirar as cavalariças e os jardins enquanto esperávamos pelos ingleses e alemães que faziam parte do grupo.

No palácio do Raio conquista-nos o romantismo do edifício, mas não propicia outras leituras. Olhamos a escadaria onde o turco nos espera e nem uma aragem de pessoas, não perpassa um cheiro, uma emoção, um tom de voz. Nada. Ali, a voz da pedra diz de quem a moldou e pediu. Mas no solar dos Biscainhos eu vi as mãos da criadas de fora a receber hortaliças e grossuras sanguinolentas de carne a escorrer, observei-lhes o torso debruçado sobre o fogo, rosto afogueado, um braço que roda a colher num caldeiro pendurado. E vi-as a entornar suor e cheiros a fumo e gordura de acepipes. Senti o impo das mãos vermelhas em garra, o indicador a amparar, calejado de cortes, encardido. Dirigiam-se  à antecâmara de acesso ao andar superior a deixar apressados tabuleiros que seguem depois para o salão, pãezinhos embrulhados em paninhos finos bordados a S. Miguel, frutas acamadas sobre parras viçosas, travessas de loiça das índias repletas de carne assada, terrinas de Sévres de que se furtivam odoríficas volutas de fumo. 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

A Gata que é minha e não é

De quando em quando, escrevo sobre os meus gatos. Que chegam insuspeitos. Alguém os abandona por aqui, dão-mos sem que os espere, ou vêm pelo seu pé (patas, patas) da casa dos vizinhos, cheios de força para ficar – perante esta eloquência de veludo nasce-me o  derriço e  de imediato me pertencem.
            Não é que sofra de paixão por gatos. Não chega sequer a um amor banal, corriqueiro, daqueles que ninguém gostava de ter, mas calha à maioria de nós. É mais uma “queda”, um olhar bom que lhes derramo. Mas pagam-me tudo, os queridos gatos.
            Gosto deles por serem animais silenciosos. Acompanham sem chatear. Além disso, por deformação profissional, admiro que aprendam depressa. Os gatos, prestes se habituam à higiene que nos convém. A gente esmurra-lhes o focinho no chichi e eles não voltam a fazer nada em casa. Nem precisamos esmurrar com força, mas é preciso que se sujem um bocadinho, detestam o mau cheiro e a sujidade, ficam mesmo ofendidos.
            Mas esta gata leva-me à certa. É pachorrenta, pacata e tem olho azul. Acho-a magnífica, mas nem por isso é muito bonita e na verdade parece muda. Só para o essencial se lembra que tem voz e mia levemente, como a dar-me um toque de cotovelo.  Se quer ir à rua e a porta de casa está cerrada, oiço-a a miar baixinho.  E, se não lhe faço caso, vem para junto de mim e queda-se a olhar-me perplexa, numa admiração vidrada e azul onde paira um ar de repreensão que me  embaraça deveras. Na sua euforia de caçadora – que não é excessiva, já tive gatos que rilhavam o dente à vista de uma mosca -, traz-me lagartixas desrabadas e mortas; pássaros ainda a estrebuchar nos dentes aferrados que, conhecedora dos meus gostos, me mostra já a dar meia volta; silenciosas folhas secas com que engraça e deposita no chão da cozinha. E pouco mais. Nos dias de caça leio-lhe nos olhos um desdém de ironia fina, um “palerma, eu a dar-te uma prenda e tu a mandares-me embora”. Por via deste pendor gatil, sentei-a no colo e expliquei com calma que as minhas prendas são livros, flores, viagens, lembranças trazidas delas, almoços, lanches e companhia de quem gosto...olhou-me em silêncio, a tentar entender a razão de um pássaro ou uma lagartixa estarem fora do rol. Penso que não compreendeu. Num instante, alçou o rabo e foi embora.
            Contudo,o céu da minha gata é andar na rua comigo (arrisco que com alguém de confiança, mas prefiro dizer comigo como se só para mim, que sei que não). Salta; sobe  muros, trepadeiras e árvores, numa alegria esfuziante e de corpo inteiro; deita-se no chão para uma festa de que muita vez me distraio; corre na frente e volta atrás a esfregar-se nas pernas e quase me faz cair. Atoleima, a gatita. Quando enigmática se arruma no parapeito da janela, conversamos (eu converso) e olha-me em silêncio como se entenda. Mas não deve. Termino a pedir-lhe com toda a confiança, dá um beijo à dona. E fixa-me de olhos hipnóticos, como se em mim o mundo inteiro e arredores e não haja mais que ver.  Mas nem um músculo de esforço. Se se esgueirasse um nico, esticasse o pescoço...
            A minha gata macia e independente que encolhe as garras e me toca de pantufas. É prazer da mão deslizar-lhe o corpo. Passa horas por aí e, à chegada, cruza a calma do portão com donaire peculiar, ao modo de quem cumpriu e descansou de recados. Beijo-a de vez em quando – a ver se aprende como é – e a anunciar, vou dar um beijinho à gata. Ela estaca ao cumprimento e olha-me em profundeza toldada de inexplicável.

Um dia a gata surpreende-me e estica o pescoço. Aposto que.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Solstício de Verão

No amanhecer do verão
A humidade da maresia pulsa como um mistério
Ondas meninas de beija pés trouxeram
conchas e búzios de maré vaza
que adormecem, lânguidos, na saia de areia.
Tácteis, as ondas de mil dedos rodeiam-na a toda a volta
refazem-lhe o remate rendado
esmeram a filigrana de espuma
aqui uma frioleira, ali um pico de bilros
lá atrás um abraço de remoinho em arte veneziana.
Fora de ser si mesma,
sem densidade, a areia rodopia etérea e vaga. Entrega-se.
Por um instante a água tinge, empalidece, faz-se morena
e mansamente murmura, vem.
Ó tortura de ser presa do tempo e da natureza!
A onda recua devagar, docemente, ainda a segurar-lhe a veste, vem.
Mas as areias são das praias como as conchas são do mar
esperam vaga que as devolva.
Por mistérios casuais e delíquios insondáveis
Todos os anos os elementos embevecem fiéis,
matam saudade e gozam do aquoso solstício.

                                                                                  Benditos sejam!

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Uma Viagem a Bracara Augusta

É difícil desenvencilharmo-nos da vida que deixamos. Mudamos de ares e ainda nos alapam problemas, pessoas, situações. Nós a enxotá-los, xô, xô, quero ver a paisagem. E eles a plantarem-se na memória aos mitetes, existimos, existimos, nhanhanhanhanha. Lugares diferentes convidam a arrumar bagagem mental, a dobrar os problemas pelos vincos e pendurar, a envolver as pessoas em capas protectoras e correr o zip, a pôr em époché uma ou outra situação. Entretanto, as descobertas vão ganhando espaço. Daí não ser razoável permanecer apenas um dia na cidade que se pretende conhecer. Ainda que o conhecimento seja uma pretensão do espírito que não coaduna, um desejo assimétrico com a realidade. Por norma, nem as coisas conhecemos por inteiro. Não nos damos ao trabalho, são de somenos. Seres inanimados. Seriam, se conseguíssemos empenhar-nos nas pessoas. Mas também não. Somos volúveis e voláteis, enjoamos a compreensão fatigosa. Desagrada-nos o impenetrável de cada um. Se muito misterioso, entregamos os pontos. Aos animais não queremos compreendê-los, queremos que eles nos compreendam e nos sirvam o seu prato de fidelidade. Não existe pretensão mais descabida. Mas esta é outra guerra. Voltemos à augusta Bracara.
Ao segundo dia, a estranheza evapora. O banho esfuma sono, suor, lembranças torcidas. E o pequeno almoço sintoniza-nos. A cidade já se insinuou e criamos a ilusão de visita que pertence. Para trás fica o apalpar de terreno. Hoje, o corpo voga sem paragens bruscas ou reticências de volta atrás. A mente despe-se de teias, determina-se.  Revemos ruas como velhas conhecidas, largos onde podíamos ter jogado ao lencinho da botica, mas que só conhecemos um dia antes e de mapa na mão. À luz da manhã, Braga é cidade que apetece. Detenho-me a apreciar uns atoalhados e não resisto a uma oferta antevendo o soslaio dos meus príncipes, sim, tá bem. Mas os objectos ficam. Permanecem. Quem sabe seja também por isso que os damos. Uma ânsia de presença. Coisa de pés juntos que não arredam. Ou pode ser assim o amor.
E deste entretém de gente a palpar maciezas em tons pastel, nos chegou o conselho sobre o Palácio do Raio. Embora o nome lhe venha do segundo proprietário, ajusta na perfeição: é uma luz de beleza a azular ao fundo da rua. E que loucura possuiu Miguel José Raio, visconde talvez por obra da fortuna amealhada no Brasil, que luxou casa de tal teor emoldurada em rua condigna. Que mandou rasgar com o carinho de quem engasta jóia de valor. Braga é, em grande parte,  barroca; nesta casa, de um barroco lírico.
Fruto de restauro recente, o solar oferece-se com o orgulho de mulher sedosa e recamada, dona que muito tem e muito exige. A fachada é o seu vestido de tufos e laços, rendas entrevistas, pérolas que serpenteiam por colo e pescoço, bordados que assomam rente ao nácar que os decotes limitam. E tudo isto num décor posto em dois andares de bom gosto. De ornatos assimétricos,  marca do arquitecto André Soares. Dir-se-ia que ele lhe deu o espírito e os proprietários o respeitaram alindando. Porque os azulejos vieram depois; o embelezamento dos tectos e da caixa de escadas; a porta de vidros coloridos que dá fim ao átrio. O visconde Miguel tomou-se de amores pela casa e vestiu-a condignamente, laço aqui, pérola acolá. Num amor desvelado, como quem beija o pézito que calçou e espreita sob a saia. E ela posta em seu donaire, senhora de belo porte.
Quem a vê do exterior e lhe sobe os degraus até ao primeiro patamar onde o Turco nos espera de espada e luminária, compreende que, como em todas a beleza, ali se harmonizam  o dentro e o fora: a parte central, interna e externa, é a que mais surpreende pelo bom gosto e riqueza de pormenores heráldicos.

Pena que não esteja mobilada. Pena que o seu ser mundano guarde tanto artefacto sacro, tanta foto sisuda, tanta opa bordada...e até os antigos aparelhos da medicina que ali houve e não quadram. Alguém  decidiu sem a sentir ou gostar e não lhe respeitou o espírito. Encolheu os ombros. Mudou de assunto.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Uma Viagem a Bracara Augusta

Instalámo-nos e, no vago espírito do investigador em férias que não depôs tiques profissionais, verificámos camas, ambiente geral de armários e gavetas, e casa de banho. Depois, calçámos sapatos baixos e fomos curtir a rua. Cá fora, o dia, subindo ao patamar das doze, aprimorava. E, para onde nos voltássemos, uma ou várias torres de igreja, braço em viseira sobre os olhos, que é como quem diz sobre os sinos, espreitavam-nos, hirtas de autoridade pétrea, bisbilhoteiras. Por detrás das casas, policiavam circunspectas e interrogativas, que é que querem, vocês. E os sinos numa indiferença ao sorumbático da pedra, bem vindas, dlim-dlão, dlim-dlão, dlim-dlãããooo. E ficavam a retinir em gargalhadas alegres  que traziam à alma efeitos  de tangerina eflúvia. Nós gozando o prazer raro de nada a fazer, isenção de compras e nota de faltas, o eu a subir em quarto crescente. Doces momentos de receber a novidade e transformar o que os sentidos acabidavam. E a envolver, a certeza de muita hora à nossa espera. 
Excepção feita à Sé, todas as igrejas e monumentos fechados. Feriado nacional. Impossibilitadas de interiores, flanámos por jardins e praças, ruas coloridas de esplanadas vivaças e a borbulhar de dolce fare niente, feirinhas disto e daquilo, pares de namorados que se atardavam no beijo, a estátua que não viam num orgulho parolo a protegê-los, escolheram-me. E nós em solilóquio, sorrindo da ternura empedrada, então, nunca mais acaba o cumprimento, queremos fotografar. E eles mais concentrados em si que um matemático na sua equação, submersos em humidades com ventosa, que floresciam na pele como líquenes. Desistimos e fotografámos as ruínas em arcada, uma rosa a pendurar sobre mim num pedido desajeitado, também quero ficar na fotografia. Fiz-lhe a vontade. E lá está a sua atenção de flor vigilante virada às pequenas ogivas. Descemos a Rua Central para apreciar as tíbias que me chamavam desde a manhã e eu já não encontraria se não fora a mana. Boa aposta. O trabalho dos pasteleiros regalava os olhos e entumescia bocas hipotéticas, as papilas incrédulas, posso? A mana entusiasmada à vista da diversidade, tão apetitosos e bonitos, vou só olhar para eles, satisfazer a visão. E aproximou-se das fileiras cerradas. Um exército alinhado contra a dieta. Sucede. Quando o serviço de pastelaria tem esmêro, há pingos doces que nos reclamam do seu breve de lágrima; brilhos cetinosos que entontecem o gosto e despertam saliva; crocantes de massa folhada que o maxilar deseja e a boca apetece, os dentes no avanço involuntário de uma trinca; fatias húmidas e túrgidas que se oferecem impúdicas ao corte suave da faca a deslizar sobre o corpo macio que dá passagem em movimento de anémona. Um tudo de tentação. A pecaminosa pastelaria de Braga.  

Mas cedo nos recolhemos, em consumição de cansaço e novidade. Mais doces que pudim do Abade de Priscos. Noves fora, nada. 

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Uma Viagem a Bracara Augusta

Os comboios são fetiche de deserção. Duas rectas paralelas. Assim me pareciam os carris deitados de atravesso sobre as traves de madeira que rescendiam. Mais tarde, descobri serem infindáveis segmentos de recta. E por esta nomenclatura me fiquei. Atordoada. Sem saber se os segmentos se diziam assim por serem pequenas partes da infinita recta, ou se bastava haver neles princípio e fim. A meus olhos de incógnita herdeira de Tomé o apóstolo, linhas a que não via princípio ou fim não podiam ser segmentos. No entanto, por vezes, denoto já um pendor para descrer nos sentidos, uma insinuação de dúvida (suponho que seja velhice, que a filosofia nada conseguiu). Descrer dos sentidos é a autodefesa dos velhos. Olhamos o espelho e, “a juventude de espírito é que interessa”; lemos mal o título do filme e, “ não tem importância. Importa é a inteligência da coisa e a história não nos escapa”.  Ou seja, já não apanhamos as legendas do mundo, mas fingimos que, para o compreender, basta ver os bonecos. Até hoje ainda não entrevi a grande sabedoria dos velhos. Ou então confundi-a com rabugice. Tenho que investigar, não é assunto encerrado (ai de mim se for só rabugem).
Ora mas eu quero mesmo é contar o passeio que fiz a Braga e começou numa linha de comboio inodora, sem traves de madeira, mas ainda com carris (vá lá, que com carris). No Alfa Pendular que não pendula, antes segue direitinho ao seu destino, menino obediente a dar conta do recado. Mas cumpre o horário e portanto o pendular está-lhe nas medidas. Pronto, é verdade que mal me sento no comboio e ele começa a deslocar-se, me vem aquela certeza parva de que vou no sentido inverso ao pretendido e me enganei na gare; acresce que não é provocado pelo fenómeno de ver a paisagem andar, é mesmo o meu mapa mental que está sempre do avesso. Mas o hábito já me desvaneceu o medo. Fica-me apenas a estranheza de ir na linha do norte a pensar que vou para sul, a desconfiar que quando espero Coimbra me sai Beja ou Cuba e que afinal desemboco em Faro e vou a banhos sem ter onde aportar. Mas não. Mais clever que eu, o maquinista passou Coimbra, Porto-Campanhã e ganhou Braga. Olhei e o comboio todo se aperaltava para a estação, num conciliábulo de olhinhos que não desgrudam, passo terno junto à gare. Ou a certeza de chave em fechadura certa.  Saímos iluminadas pela simpatia das gentes que cruzavam e se manteve Braga fora. E logo um repique de sinos que alguns acham de mau tom por lembrar o ranço das igrejas, maceração de velas que quebranta, flores a apodrecer ao calor das luzes. Porém, em mim, sinos são festa. Talvez por me lembrar de tocar o sino a meias com outras crianças e da paródia que era andarmos a balançar agarrados na corda para cá e para lá, a zeladora da igreja aos gritos para a torre e nós a badalar mais que o sino, descemos já. Portanto: eu podia viver em Braga de muita igreja e melodia festiva; com janelas de vidro duplo para não haver interrupções no sono que pouco tenho. Ok, ok, os frades da Cartuxa precisam deles que rezam de quarto em quarto de hora. Espero que se revezem e não rezem todos ao mesmo tempo, senão metade já endoideceu. Os frades são poucos, precisam de se preservar. Além de que um maluco, mesmo silencioso - e ninguém sabe se um maluco consegue manter-se em voto de silêncio -,  deve dar muito trabalho e não convém à diária de um convento. E veio tudo isto a propósito dos sinos. Bracarenses e de muito efeito.

Enquanto subíamos puxando as malas como se fossem o carneirinho dócil que o S. João festeiro carrega nos ombros, os meus olhos cirandavam por ali, a elucidar razões. Dei conta de pastelarias a que prometi voltar, de ruas amplas e sem trânsito todas engalanadas para os santos populares, de gente bem disposta a gozar um feriado siamês do fim de semana, da temperatura amena e brisada, de largos e praças arrumados para a festa. Não podia ser melhor. 

domingo, 5 de junho de 2016

"No tempo da Escola"

Mas o último mês do ano ia ficar-nos na memória. Mercê de inesperados acontecimentos,  ainda hoje se apresenta em malha extensa e borbotada, sem dobras de plissado, um tecido grosso que se aguenta de pé e sobrevive a expensas próprias, cheio de si.
Talvez o mundo das crianças citadinas se teça com outras linhas, mas a nossa vida aldeã, imersa em irreflectida miséria comum, vivia de pormenores e pequenos acontecimentos: mudanças de casa, um passageiro que a carreira deixava na paragem, um chapéu de palha novo e com fita,  o carteiro a subir a um monte inesperado, uma gravata que sobressaía na camisa, um corte de cabelo fora de hábito, compra de maior vulto na mercearia. Coisas que hoje se perdem no quotidiano e, então, fosforeciam. Mas ninguém estava preparado para o ribombar que nos estremunhou na friúra de uma madrugada, internando-se até às fundações.
Certa noite, quando a aldeia gozava o sono pesado que antecede o acordar, fomos sacudidos por um trovão que nos pareceu despenhar directamente no chão, caindo a partir o mundo. Ouviu-se o som catastrófico de coisas a quebrar e sentimos, nítido, o arrepio da terra.  Quedei-me transida, esperando,  enquanto minha mãe saltou da cama em camisa, ai nossa senhora nos valha, e sem acender o candeeiro de petrólio começou a vestir-se e a enfiar os chinelos assegurando, aconteceu uma desgraça. Compreendi num rompante que ia sair de casa, enxotei o medo, dei um pulo da cama, aferrei-me à sua mão e corremos as duas porta fora. Na rua, o mundo começava a acinzentar e o dia espreitava em parto difícil.  Casas e vegetação dobravam-se ainda em manchas escurecidas sob a indiferença de estrelas sentadinhas e muito descansadas no firmamento. E os olhos de minha mãe a um lado e a outro, espreitando as sombras dos vizinhos a avultar. Juntando-se-lhes na beira de estrada deserta. E eu friorenta, a receber no mão a mão o cálido intravenoso de minha mãe. As vozes alvoroçadas e a meio tom, prenúncio de desgraça, o que foi, que estrondo foi aquele que até a minha cama tremeu, de que lado veio. Até que um vulto chegou correndo e largou a bomba, foi a casa que o Leão andava a fazer que caiu toda, está por terra. Apertei com força a mão de minha mãe e gemi aterrorizada, Lídia. A casa que o Leão construía destinava-se à irmã de Lídia e era contígua à casa da minha amiga. Desatámos a correr. Sombras negras na  paisagem descolorida. Eu corria de aflição, dava uma mão a minha mãe que me puxava e quase fazia voar enquanto com a outra segurava as calças do pijama por via do elástico relaxado. Apesar dos meus pés darem tudo que conseguiam e ficarem fora do chão algumas vezes, à medida que nos aproximávamos íamos ficando para trás, a minha mãe, não largues o cós das calças senão cais. E olhando-me, não tenhas medo, a tua amiga está bem, não lhe aconteceu nada, senão já sabíamos. Mas o meu coração batia descompassado da corrida e do susto, tinha que ver Lídia e certificar-me. Ainda desconhecia a história de S. Tomé e sua humana desconfiança, mas já lhe comungava o humano sentir. Na aragem desentraitada de Dezembro, minha mãe preocupava a derramar-me a doçura dos olhos, ó filha, vais apanhar uma constipação, então nem o casaco vestiste.
Ainda nem bem tínhamos chegado e já me desatava, já venho. E voei para a casa. À porta, um monte de gente cheia de conversa sussurrada aglomerava em sururu que voava baixo por via da hora, temendo espantar a apresentação do dia. Completamente despercebida, entrei pela porta da cozinha saltando tijolos, paus e pedras a esmo e estaquei abandonada de forças, o coração a descansar no novelo que me dava as costas, acocorado  junto à brevidade do  lume de chão. Com a adrenalina a descer súbita, as pernas fraquejavam à medida que tentava  aproximar-me dela.