O
ser humano tem essência. Terá. Mas as idiossincrasias portuguesas bradam aos
céus. Gastamos a vida a amealhar uns patacos para viajar e conhecer mundo, mas
desconhecemos as paredes que nos rodeiam e pouco sabemos dos lugares que
habitamos. O quotidiano neutraliza-nos a curiosidade e conviver com os monumentos torna-os banais. Facto que,
em Braga, não é excepção. Na Praça Conde de Agrolongo, uma parede de
monumentalidade a impor-se e ninguém
soube esclarecer-nos a que pertencia, que nome tinha, de que século datava. Sob
influências de mapa mal gerido, atirámos uns nomes que todos desconheciam. Nem
os transeuntes, nem o rapaz do quiosque da sagres montado no largo e vizinho diário, arriscou uma piscadela curiosa à exuberância gigante que lhe
dá sombra.
Para
agravar a situação, há mentes sem bússola: as ruas não interceptam, os largos
expandem sem direcção, as casas são alheias a endereço; tudo pertence a uma rua
que não se sabe e beneficia de número desconhecido. Incluo-me nesse
emaranhado que ignora onde está e a quem a cartografia pouco ajuda
porque empreende e se pensa num fora de sítio constante.
Na
sexta-feira, mercê de aguda confusão, o Palácio dos Biscainhos escapou-nos e,
se não fora no sábado a informação de um bracarense simpático a situar-nos e
que nos levou quase até à porta, escapulia-se de todo. Uma coisa tão de
maravilha não pode mesmo perder-se.
Até
hoje, não lhe encontrei razão para o nome, mas há-de haver, que fui olhar e não
lhe vem das famílias que o ocuparam. Pelo que me foi dado observar, ao tempo, e sobretudo naquele palácio, a vida era mesmo muito recatada e nada
teria de biscainho no sentido usual de delambido, gente de resposta
irreflectida e acerada, sempre na ponta
da língua. Se houve mesmo um proprietário a engastar no conceito, não consta
dos anais públicos, chegados via google. O monumento data do século XVII,
sofreu várias actualizações e foi doado à cidade pelo último visconde do Paço
de Nespereira (não é por nada, mas um visconde de nespereira fica logo menos
visconde, que as nêsperas não se prestam à realeza; se até como fruta são uma
lástima!). Em Braga, foi o que mais me luziu. Conjuga em todas as dependências,
mas o que aflui e corre por ele inteiro é o sentido de quotidiano.
Na
compra do bilhete, fomos avisados que a visita seria acompanhada mas não guiada.
Admirei, se nos acompanham por que não nos guiam. Resposta, porque não iam
falar para nós em inglês ou alemão...e eu ainda sem entender – compreensão lenta
-, mas eu não preciso que se esforce tanto, qualquer explicação em português corrente
me serve. E ele, ahnnnn...pois... mas há ingleses e alemães. Esclarecidas, fomos
admirar as cavalariças e os jardins enquanto esperávamos pelos ingleses e
alemães que faziam parte do grupo.
No
palácio do Raio conquista-nos o romantismo do edifício, mas não propicia outras
leituras. Olhamos a escadaria onde o turco nos espera e nem uma aragem de
pessoas, não perpassa um cheiro, uma emoção, um tom de voz. Nada. Ali, a voz da
pedra diz de quem a moldou e pediu. Mas no solar dos Biscainhos eu vi as mãos
da criadas de fora a receber hortaliças e grossuras sanguinolentas de carne a
escorrer, observei-lhes o torso debruçado sobre o fogo, rosto afogueado, um
braço que roda a colher num caldeiro pendurado. E vi-as a entornar suor e cheiros a fumo e gordura de acepipes. Senti o impo das mãos vermelhas em garra, o indicador a amparar, calejado de cortes, encardido. Dirigiam-se à antecâmara de acesso
ao andar superior a deixar apressados tabuleiros que seguem depois para o
salão, pãezinhos embrulhados em paninhos finos bordados a S. Miguel, frutas
acamadas sobre parras viçosas, travessas de loiça das índias repletas de carne
assada, terrinas de Sévres de que se furtivam odoríficas volutas de fumo.