segunda-feira, 28 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Se alguém interrompia o curso das classes, rejubilávamos. Ali, dentro da escola, passassem ou não da entrada, todos os visitantes se tornavam diferentes. As mães que delambiam na loja, mal subiam os três degraus junto à porta, tropeçavam nas palavras, a voz a apoucar, minha senhora para aqui, minha senhora para ali, atrapalhadas na razão que as trouxera. E a timidez avançava-lhes corpo fora na razão directa da proximidade à professora.  Constatavam o ar superior daquela garota bonita, cheirosa e bem vestida, de mãos brancas que pareciam saltar da roupa em exagerado impudor, unhas em pétala, tão vermelhas que mais pareciam gotas de sangue a despedir brilhos. Eram mãos inquietas, agitavam-se durante a conversa, dedos que abriam e fechavam em respiração de medusa. Perante isto, as modestas mãos das mulheres enfiavam avental abaixo e escondiam-se nos bolsos, catando migalhas de pão lá no fundo, um alfinete, um papelinho dobrado, pequenas bolas de cotão que juntavam com a unha percorrendo a costura do bolso, uma aspereza de dedos a embirrar nos fios de tecido e que arranhava a palma se acaso a tocava. E elas a avaliar num repente feminino, se eu tivesse dinheiro comprava um creme e ficava como ela, uma seda; não sou assim tão velha, quem sabe se não temos a mesma idade. E depois sacudiam devaneios, os punhos forcejavam no tecido a afundar ímpetos e, enquanto a força dos nervos esborrachava a bola de cotão entre o indicador e o polegar, tomavam coragem e diziam ao que vinham quase sem olhar a professora, como quem pede uma esmola envergonhada.
As mães sentiam-se menos diante da mestra e eram para nós mais do que elas mesmas. Cada mãe que aparecia na escola subia-nos aos píncaros. Não interessava se vestia melhor ou pior, interessava estar ali junto de nós, a ver-nos. Havia entre elas mulheres mais e menos simpáticas, mas não naquele lugar. Ali, eram supremas: eram as nossas mães. Irradiavam. O resto era penumbra.
Os pais eram caso raro. Ninguém os desejava na escola. Se um pai se deslocava à escola, de duas uma: ou havia morte de familiar chegado, ou uma grande sova nos esperava em casa. Os pais não falavam com a professora, participavam-lhe notícias sobre a saída imprevista do seu rebento. Não atendiam discurso e nem o escutavam; se era por morte, anunciavam e saíam, especavam na rua até que o filho aportasse. Mas se a visita era por mau comportamento, alguns davam-se ao desplante de entrar escola dentro e retirar a criança à bruta, a professora atrás em protestos de tic tic que são nervos de salto alto, não pode fazer isso, aqui quem manda sou eu, faço uma participação... E eles com pernas de metro, sem lhe fazer caso. Nós assistíamos à verborreia da mestra a cair no vácuo da raiva paterna e encolhíamo-nos à visão do cinto desabotoado e dobrado em U. Pronto. As duas extremidades na firmeza da mão direita. O cachopo, era certo, seguia na sua frente até casa, sob vergastada que fervia. Mas o caminho era um nada do que o esperava. O amor dos pais era assim, educava com muita dor. E revolta.
Porém, o que mais nos agastava era a visita do médico e das enfermeiras. Aqueles três de bata branca prenunciavam a tortura das vacinas. E corriam-nos a todos. Não valia chorar, estar doente, com dor de barriga, ter o pai assim ou a mãe assado. À medida que nos chamavam pelos nomes inscritos no cartão de vacinas, punham-nos em fila junto à secretária e, na nossa vez, zás, enterravam-nos sem dó uma agulha comprida e injectavam um líquido que, para nosso desconsolo, demorava tempo demais a entrar no corpo. Com medo da chacota uns dos outros, os rapazes faziam-se fortes, rangiam os dentes e quase nunca choravam. Mas a maior parte das raparigas debulhava e ia para o lugar a segurar o algodão e de olhos muito brilhantes.
De nós três, eu era a pior. Mal apercebia os batas brancas desatava um pranto silencioso e sofria por antecipação todas as etapas, desde a picada da agulha. Sabia aquele momento em que o bico se enterra na carne e sentia depois o líquido a correr vagaroso até à imobilidade do êmbolo, logo seguido do instante em que a agulha se solta do braço e nos deixa em paz. Esta ameaça invadia-me todos os sensores e tornava indistinguível a dor presente da futura.

"No Tempo da Escola"

As crianças crescem de descoberta em descoberta, sem ajoujos e contrapesos de adulto. Em nós, as novidades eram só isso, notícias de coisas e pessoas desconhecidas. Não nos entravam na pele nem coíbiam a alegria. Descobrir as coisas era sabê-las sem consequências; e, se não apareciam geminadas ao nosso quotidiano, depressa as relegávamos para as traseiras da memória. Interessava-nos a vida da escola e os humores da mestra, os pais em casa ou fora dela, a ocupação das horas livres, a catequese em horas de escola. A catequese era o melhor da escola.  A professora devinha um mimo de simpatia e bondade, e padre Baltazar brindava-nos com sorrisos e palavras mansas que abriam portas a sermos bons a vida inteira e nos lançavam ao caminho santidades inquebráveis. Por mim, nos dias que se seguiam à visita, porfiava por cumprir o que ele ditava, embora receando auréolas assustadiças a pairar-me sobre a cabeça, enquanto Lídia caçoava dos meus esforços e, mais entendida que eu em santos, garantia, não há perigo, essa coisa por cima da cabeça não existe, é tudo mentira, não vês que aquilo é só uma argola de arame pintada de amarelo e que brilha. Mas depois, quando eu já quase descansava do temor, olhava-me analítica e estragava tudo, tu podes ser santa sim, está-te nos olhos. E eu que confiava nela a pés juntos, ia ajoelhar frente à cómoda da sala, única faixa espelhada que possuíamos lá em casa, a observar-me com atenção a fim de verificar onde embutia o sinal da sacralidade para eliminação rápida. Depois, farta de experimentar outros olhos sem resultado que se visse, ia brincar e esquecia o assunto. Para o Luís, talvez por ser rapaz, a visita do padre assumia outro pendor. Primeiro a expensas da professora, e depois por iniciativa própria, seguia-lhe os passos qual sombra,  até o carrito preto desaparecer. Parecia-nos impossível que padre Baltazar coubesse lá dentro, razão porque, sempre que podíamos, íamos observá-lo a entrar. Cientes de que um dia lhe faltaria espaço para uma perna, ou a porta não fechava, o volume do corpo a sobrar. O que não aconteceu, o mais perto que estivemos foi quando um pedaço da batina entalou na porta e passou por nós em aceno contente do ventinho que lhe corria. Mas logo o Luís correu atrás e lhe apontou o descuido, o padre abriu e fechou a porta e acabou-se a alegria da batina. Nessa altura, já Luís o acolitava quando ao domingo chegava à escola e juntos empilhavam as carteiras todas lá atrás para a celebração. E nós felizes por respondermos  num latim macarrónico que não entendíamos “e conspirituó”, mudos para o resto das falas que as mães não nos ensinavam. Durante a missa, os homens zurziam o padre na vizinha taberna, entre copos de cinco e de dez, já meios bêbados como era praxe àquela hora da tarde, numa má vontade avinhada, raio do padre, que é que tinha de vir dizer missa à escola, não há igreja não há missa, ora essa. E depois lançavam-se numa maledicência de amantes sem destino que gostavam de lhe atribuir e como que os deixava mais descansados.  No interior da escola,  as velhas todas juntas num mau cheiro de pouco sabão, os carrapitos puxados acima com brio e véus pretos ou lenços na cabeça, a balbuciar contas de terço pegados a mãos encardidas e gretadas, que lhes saiam dos xailes, sem entender patavina do latim, mas cantando no final, com voz tremente, “Hossaaaana, hossaaaana, raiiinha de Portugaaal”. E nós ficávamos boquiabertos da entropia entre a pátria e Nossa Senhora que um rei fizera Nossa Rainha pelos séculos fora e por ouvir bocas afeiçoadas a asneiras e gritos a fazerem-se maviosas; empreendíamos nos olhos diferentes das nossas mães para aquela redondela branca que o padre elevava como se fosse uma relíquia e toda a gente ajoelhar e baixar a cabeça; pasmávamos da força que lhes vinha não sabíamos de onde quando enclavinhavam as mãos uma na outra e mexiam os lábios tão baixinho que nós, mesmo a seu lado e em atenta escuta, nada entendíamos. Não havia senão a imagem do cristo crucificado que nos acompanhava as aulas, e ele continuava igual, mortiço e metalizado, sofredor. Mas elas olhavam-no com ânsia desconhecida, o rosto mais sofrido que o dele, olhos a marejar.  E enquanto isso, Luís apagava as velas acesas na secretária da professora que fora altar, dobrava a toalhinha branca do padre, levava para o carro missal, cálice e tudo que padre Baltazar trouxera. Durante esse tempo, o padre tirava a opa, dobrava-a no braço, ajoelhava e punha o rosto entre as mãos. E ficava assim, sem olhar o crucifixo, sem bolir. E nesses momentos em que a igreja desmanchava e as mulheres saiam aos cochichos cada vez mais audíveis, eu ouvia Cristo, via-o junto ao padre. Era esta a minha verdade revelada: a sua prece final e os olhos de minha mãe grudados naquele pedaço de metal, encontravam-se fora do mundo e daí recebiam força anímica que nos transcendia.

A vida tem seu reverso e cobra cada alegria. E quantas vezes cobra em dobro, como se não lhe quadre que sejamos alegres e nos aponte a contenção. Na escola, também tínhamos visitas desastrosas: a chegada do pessoal médico era o inferno das crianças. Mesmo daqueles que, como o Luís eram fortes e se gabavam de gostar. Ou de Lina que continuava impávida as sua tarefas e a quem médicos e enfermeiras não estremeciam um músculo.

sexta-feira, 25 de março de 2016

The Lady in the Van

Ir ao cinema foi sempre uma festa para mim que cresci num lugar sem ele. Festa rara, portanto. Por questão de temperamento, o mundo de faz de conta entra por mim afora em facilidade desmedida: leitura, cinema, uma conversa sincera, deixam-me satisfeita, são-me gelado em dia a escaldar ou bebida quente em tempo frio. Apesar das diferenças entre elas, usufruo pouco das três, o que me faz gostar mais de cada uma, gozá-las quase perdidamente. E sim, as conversas têm esse ar de fantasia, a gente fala mais sobre o que pensa das coisas, pessoas e situações do que sobre elas mesmas. Fantasia em conjunto, digamos.
Um destes dias fui ao cinema, facto que me começa no primordial instante de decisão. Porém, às vezes atraso-me a decidir e chego à sala a levantar muito os pés – foi o caso – por não conseguir pensar naquelas luzinhas incrustadas a indicar os degraus senão como lâmpadas redondas que temo partir em mil vidrinhos. Subo em cuidados, sempre a ouvir aquele vidro fino a espartiçar e quando me sento dou graças a Deus por não ter pisado nenhum. A cadeira do cinema é o meu porto de salvamento e nem ela sabe o tamanho da minha gratidão. Por duas horas fico ali a pesar-lhe sem dar conta, debaixo da água do filme, num mergulho encarpado e quase sempre impecável. Desta vez fui para Maggie Smith ela mesma. Sem arrependimentos, é uma actriz como manda a sapatilha. Não é um filme empolgante, mas é um filme inglês com sua fleuma; seu humor meio negro-meio sarcástico, fino; um personagem que se divide em dois, um é o escritor e outro o homem; e Maggie a ser ela mesma numa versão pobre e, para o meu gosto, com traços de miséria lastimável. Lamento mesmo, mas tanto saco plástico cheio de merdice deu-me um bocado de má disposição, até por extravasar em alguns bocadinhos do filme. À parte isso e o cheiro que se imagina – e a imaginação quando quer é mesmo pérfida –, aquele quotidiano de uma velha razinza que não agradece e pede como quem exige, tem o seu interesse. Sobretudo pela comparação com a velhice da mãe do escritor, uma senhora asseada, com os seus óculos e camisas de laço (vou tirar os laços às minhas já que os óculos não posso abolir), que termina num lar de idosos, desmemoriada. E as duas velhices, ainda que longe uma da outra, vão sendo cotejadas. Ora bem, aqui é que bate o ponto. O escritor aguenta quinze anos a van de Maggie à sua porta, mas não aguenta a mãe por muito tempo, nunca pensa em tê-la em casa e quando a senhora ainda está no seu inteiro juízo e o visita, gasta-se a mandá-la embora. A distância a que estamos das mães nunca parece suficiente. Ora Maggie não é mãe dele, está-lhe à porta (o que em termos de distância pode fazer-se superior a viver numa terra distante e vir intrometer-se em sua casa). Entretanto, escreve sobre as duas e ele mesmo, e vai encenando e representando as suas peças de teatro. Parece que, com algum êxito.
            Julgo que o filme pretende dizer-nos que uma velhice ocupada  por autodeterminação leva à longevidade que se deseja, com os traços mnésicos a funcionar, vontade de viver qb, e etc. Acontece que não fiquei a invejar a velhota. Achei supremamente idiota morar naquela espelunca de carrinha, não tomar banho durante mais de quinze anos, fazer as necessidades para um saco plástico que atira para debaixo da furgoneta, não limpar a casa de banho do vizinho quando a usa. Enfim, este filme dá-nos um nico do “feios porcos e maus”, no que toca à porcaria. Os sem abrigo que conheço não são assim. Mas talvez os ingleses sejam, sabe-se lá. A senhora era um carácter insubmisso e pouco sociável (nem a cunhada a tolerava), tinha sido freira e expulsa da ordem, tinha estudado piano, o amor da sua vida foi mesmo a música que se recusava a ouvir com grande lamuria. Para mim,  o que a conservou foi a mázura e a persistência em se assumir como o contrário do que era. Papel que encarnou e levou a sério, sem quebras. Um trabalho talvez árduo, a distraí-la da morte.
            Bom, pelo meio ficou a culpa pelo facto de ter atropelado um garoto e a sua fuga à polícia, bem como a comissão que pagava ao ex guarda que a descobrira a abandonar o corpo. A memória tem destes enredos selectivos, não esquece. Selecciona o que a vontade quer olvidar.
            Agora o moralismo da história – e que lá não está: quem sabe a senhora escolheu aquele caminho difícil como expiação da culpa (o garoto é que foi culpado, mas pronto, ela encasquetou a culpa).
            Esqueçam o parágrafo anterior. Ela era assim: robustez de mau génio, porca até dizer chega, sábia de palavras e contra argumentos irónicos; e foi isso que a aguentou. Banhada e limpa, breve morreu. O vizinho, mesmo dividido em dois, era próximo à santidade. Fim.


sábado, 19 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

À medida que avançávamos nas classes escolares, íamos alargando a malha da realidade e intuindo, ou mesmo sabendo, a dimensão das nossas possibilidades dentro dela. Cada um adaptava o sonho a si e ninguém desejava ser trabalhador rural, como víamos toda a gente escrever no rectângulo da profissão. O trabalho rural não era escolha, era o castigo dos pobres. E queríamos fugir ao castigo. Os nossos pais aspiravam que lhe fugíssemos, sem antever como. Mas também isso ignorávamos. 
Portanto, a maioria dos rapazes passou a escrever nas redacções  que queria ser tractorista, barbeiro, carpinteiro, em vez de médico, dono de mercearia ou de herdade, supostas profissões que conheciam. No seu bom senso, Luís mantinha-se a meia haste, e lembrando-se do gosto por comboios, escrevia, vou ser agulheiro, depois estudo e chego a chefe de estação. Eu e Lídia passámos a acompanhá-lo nas viagens que fazia até às agulhas, lugar onde as linhas se cruzavam no que me parecia um emaranhado de carris, de que, sapiente e cheio de pormenor, nos explicava o funcionamento através da alavanca que ali se encontrava para definir os trilhos.  Mais tarde, nós viradas uma à outra, não é uma agulha de coser, é uma alavanca pesada que muda os carris para o comboio poder passar sem chocar com os outros que vêm de frente. E rimos sem descanso do que tínhamos imaginado ser o trabalho do agulheiro. Passámos a olhá-lo com novo respeito, quando se montava na bicicleta a pedal para, sem cair, seguir pela estreiteza que beirava a linha até à agulha, a fim de mudar-lhe o sentido. Depois, enquanto as mães labutavam julgando que brincávamos por perto, mal o agulheiro terminava, facto que espreitávamos sem cessar e de que conhecemos horário, corríamos desabalados até à estação a observar a concretude da mudança. Atravessávamos numa corrida a cancela fechada  e postávamo-nos no deserto da gare, onde só o chefe de estação pontuava, qual oficial na parada, farda e boné de pala, a bandeira vermelha estendida à via férrea, a fazer parar o monstro. Após uns minutos, apanhados pela nuvem de vapor que nos invadia desde as pernas, despedíamo-nos do comboio na semi ilusão de fazermos parte do quadro, o chefe da estação com a bandeira sob o braço e a ralhar-nos, ainda assim algum não caísse à linha. Na mão direita, o apito esperava a deixa enquanto  os revisas subiam e fechavam portas de carruagem. Debruçado na janela, o maquinista aguardava. Ao sinal de partida, saia da janela e o comboio, em obediência à estrídula invectiva  do assobio, como que estremecia e, ainda trôpego, abalançava a mexer-se  recomeçando a chiadeira nas rodas de ferro. E nós, felizes e maltrapilhos, fazíamos adeus aos viajantes que seguiam para Lisboa, imaginando-lhes vidas ímpares e soalheiras, carteiras que se abriam cheias de notas, vestidos e fatos a esmo. Não púnhamos no comboio quem lá ia, plasmávamos o nosso sonho, a nossa ilusão acerca do mundo dos outros. 
Jamais nos ocorreram os passageiros como nós, contando miséria, a visitar família chegada em hospitais da capital, pessoas simples numa aflição que se derramava pelo esófago, faringe, laringe, traqueia e sabe-se lá que outros canais interiores. Gente que carregava sustos descontrolados no garrido polvoró de ruas movimentadas e desconhecidas. Os homens no desconforto do colete abotoado até ao pescoço, de olho no relógio de algibeira que a gatunagem, ouvia-se, era mais que muita. As mãos das mulheres guardando  a palha da balalaica como se fora pedraria fina. Lá dentro, a panelinha de canja que acabidavam maternais, para não entornar; uma muda de roupa interior barata e comprada à pressa para o doente, porque a mais estava puída e pontinhada; o pincel de barba descorado e quase careca e a lâmina pedida de empréstimo a um vizinho. Tudo embrulhado numa toalha de rosto bem limpa, para escanhoar o doente, que barbear no hospital  era pago à parte e dinheiro não havia. Pedira-se um empréstimo ao merceeiro para a viagem, levava-se uma bucha para entreter o estômago revolvido de nervos e bolandas, e que o futuro  fosse como Deus Nosso Senhor quisesse. Nisto, eu e Lídia não pensávamos. Não podíamos enxergar.
 Víamos os tropas fardados, de pé, mesmo por detrás das portas de entrada das carruagens e pasmávamos do aprumo e beleza do porte. Por vezes, saíam para a gare a ajudar alguém a descer ou entrar, bivaque na mão. E só lhes admirávamos a delicadeza. Não nos ocorria a saudade e mau estar que carregavam consigo e não os deixava sentar; não lhes  lobrigávamos no fundo alheado da íris o desconforto da farda; a saudade ao cheiro de casa e ao canto da enxerga que lhes aguentava corpo e sonho; não notámos o receio da vida de tropa e do sofrimento que lhes trazia, arrasto de gente maldosa e mais instruída que os achincalhava e fazia gato sapato e a quem eles, de paga, também enganavam quanto podiam; não víamos a lembrança da namorada nos olhos que sorriam às raparigas e se lhes arrastavam como lesmas pela figura. Ainda ignorávamos que a vida é toda muito igual para demasiada gente. 
Enquanto os rapazes peregrinavam  os sonhos, nós, as raparigas, perante a incredulidade sofrida dos risos maternos, concluíamos que nos era impossível ser professoras e enveredámos quase todas por cabeleireira e costureira. Só a minha parceira manteve o gosto pela enfermagem, acrescentando a desculpa que já dizíamos com ela, "é por causa da mão que não funciona" - e acrescentava com algum receio -. Não sei é se me aceitam. 
 Quando perguntei a Lídia o que tinha escrito, ela virou-se resoluta e disse rápida, páraquedista. Atonitei. Mas depois do rastilho a que ela mesma pegou fogo e de um intervalo de hora de almoço cheio de perguntas e explicações, todas em monte a rodeá-la, ficámos cientes que um páraquedista era alguém que se atirava de um avião em  voo,  com uma espécie de guarda chuva fechado atado à cintura por cordas grossas e fivelas fortes, e que, por força de ser assim, só abria passado um bocado de trambolhões no ar. Por semanas e semanas, Lídia foi a nossa heroína. Nem aquela garota que chegara há pouco tempo, a ultrapassou. Era tão quêda que a julgámos muda. E numa manhã mais contrita, a professora afirmou com gáudio, como se coisa de vulto, a  Luciana quer ser freira. Foi estranho. Olhámo-la em avaliação severa. Mas nenhuma freira chegava perto da coragem da nossa pára quedista

quinta-feira, 17 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Perguntei naturalmente, e onde é que vocês fazem isso? Ela, ninguém pode ver, os crescidos também fazem, mas não querem que a gente faça. Eu a teimar, onde é que é? E ela depois de um silêncio, olhos de confissão, atrás da tua barraca. Revolvi em admiração enojada, o quê????!  Ao pé do monturo para onde atiramos tudo, até os penicos de chichi e cocó que eu levo a esticar muito os braços e sem respirar? E ela, sim, ali ninguém vai...Eu de polícia, inquisitiva, e quando é que vão para lá? E ela, às vezes estava a brincar contigo e dizia que ia mijar ou a casa da minha avó e íamos para trás da barraca eu o Luís, não davas por isso? Eu desconsolada com o engano, não. – e duvidosa -   Tu gostas? Ela casquinou superior, não é como brincar com as bonecas, é de verdade. – e acrescentou convicta - Gosto mais porque é às escondidas. Em Lídia a provocação é natureza a irromper. As bandeiras que agita não lhe interessam tanto pelas causas que representam como por serem bandeiras vistas à distância. E ser a sua mão a empunhá-las. Isso sim, importava-lhe bastante. De início, a nossa união dependia desse impulso que ela dava à vida, do agitar de águas que a iluminava e eu retinha sem copiar. Lídia nunca me foi modelo ou sequer lhe invejei o espírito a tentar igualá-lo. Pertencer a uma condição retira-nos a inveja do possível, aquilo por que cada homem porfia a vida toda é, cada vez mais, ser ele. Só quem não se sabe assim ou confunde o ramo a que pertence, sofre o mal da inveja de carácter. Em nós duas, o tempo paciente ajudou a cumprir a sapiência  do respeito mútuo, dispensou-nos de comparações estéreis. Sinto por ela como por ninguém a admiração do risco, a sua inquietude sempre tão por fora, água que forceja em chegar e esbaforida se despenha enquanto eu corro subterrânea e não caudalosa. Ela alimenta turbinas transformadoras e energéticas, eu corro simplesmente.
Na altura, garanti-lhe a desfazer púdicos e, na minha óptica, impensáveis temores, está descansada, não vou lá espreitar.  – e depois, cortando-lhe outra fatia para o caminho, reguei, a florir-lhe a confiança - eu gosto o mesmo de ti, não me faz diferença. E era verdade, gostava dela assim e nem a conhecia de outro modo. Estava-lhe grata, tinha-me esclarecido. O preço do saber foi sentir-me enganada, mas na vida não há os bónus que pensamos, ela cobra-nos em qualquer altura. Porém,  o objectivo dos dois estava fora dos meus interesses, eu vivia no coração do mundo e eles  na cintura externa.
Contudo, no dia seguinte a caminho da escola, invectivei o Luís. Ele suspirou, ciente de que eu conhecia toda a história. Parou de mala na mão, um olhar reticente à flor dos olhos, juro que é verdade e nunca mais te digo isto: eu não gosto delas, era contigo que eu queria... E eu,  não me interessa, vamos embora. E recomeçámos a andar falando  de tudo e nada.
Passado um ror de tempo, entrava eu em casa, ouvi o alerta das tias velhas a minha mãe, tu tem cuidado com a garota que o malandro vai para trás da barraca com as gaiatas que apanha a jeito; outro dia estava lá com uma e tivemos que os desabelhar. Saí em pezinhos de algodão e quando voltei a entrar  a conversa versava assunto de menos nervura.
Ao serão, minha mãe no seu discurso de voz suave, que talvez não fosse assim tão bom brincar com rapazes e se já alguma vez o Luís... e eu num descanso, brincávamos muito, mas nunca lhe ouvira tal assunto; eu gostava dele e desinteressava-me que fosse rapaz; era com quem brincava mais e me tratava melhor.
Não menti.
Quanto às traseiras da barraca, cumpri o prometido: não olhar, evitar o monturo e seguir cantando se precisava deixar o lixo. Jamais encontrei diferença no montão de estrume. Entretanto, seguimos a vida que forcejava outros sentidos e o que aconteceu cristalizou em  lampejo de natureza e época, natural como o surgir e desaparecer das flores e dos frutos. Em trio e a duo, ainda vivemos anos de imperturbável brincadeira.



quarta-feira, 16 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Certa tarde, andava eu rodando um arco desempoeirado à volta do monte, quando a irmã de Lídia passou a caminho da mercearia. Estaquei de rompante. Sem o apoio do arame, o arco cambaleou  e caiu na lateral enquanto, retida no espanto, observava a fugitiva regressada. Desfigurava em passo lento, a saia a empinar um imenso, muito mais curta à frente que atrás. Esquisitíssima de corpo. Entristeci no peso da mudança incompreensível, a memória a insistir na figura ligeira e juvenil. Recordei a costureira em volta de mim, boca cheia de alfinetes e mãos sábias nas dobras de tecido, as queixas a esgueirarem retorcidas por um cantinho dos lábios sem cor, ai esta menina empina tanto, tenho sempre que deixar a saia mais comprida à frente. Por isso, quis confirmação, ela empina não é? e minha mãe, traz um bebé na barriga. Eu incrédula, então Paris e a cegonha, mãe? E ela, filha, aquilo era só conversa do homem. Fiquei tão chocada que nem perguntei mais. Saí numa pressa, dei um grito ao Luís e ele assomou à esquina, saltei o valado entre as nossas casas e, ainda nem bem chegara, atirei escandalizada, a irmã da Lídia anda de barriga e vocês não me contaram. Parvos. – e sem transição - Tu já sabias aquilo dos bebés na barriga das mães? E ele a olhar para mim e a rir só com os olhos, já. E eu, e como é que vão para lá. Ele entretido a raspar a terra da sola da alpercata com um pauzinho, é melhor não te contar, mas olha que eu sei. Eu, conta-me lá. Não conto nada, pede à Lídia, já te disse no outro dia que ela também sabe. E olha, a tua mãe não te diz de certeza, a minha nunca me disse.  E foi-se embora a assobiar.         Voltei devagar sobre os meus passos, a pensar que tinha caído dentro de um segredo. Só não entendia a razão de ninguém mo contar. Decidi: ia perguntar a Lídia.
Entretanto, a minha amiga mudara de casa e vivia no sentido oposto a nós. Mas, à saída da escola, acompanhava-nos a caminho de casa da avó e, à boca da noite,  ainda metida nas roupas de trabalho,  a mãe passava e levava-a consigo. A mãe de Lídia era a cozinheira  do rancho e ficava ao fogão, a empurrar para as brasas as panelas de barro que tapava e destapava, a deitar água e verificar cozeduras. Viva a alimentar o lume dentro de uma fumarada cheia de estalidos e labaredas e desarredava panelas à medida que couves e batatas  coziam;  só depois do almoço se juntava ao trabalho do rancho.  O manajeiro condoera na miséria de tanto filho e na velhice daninha que espoldrinhava corpo acima e a aperreava nos trabalhos de enxada. No dia de pagamento, ela, maldizendo idade e má sorte,  invejava sem freio de língua a jorna das outras mulheres, enquanto elas, que se batiam por igual nos golpes da enxada, cobiçavam a paga dos homens que arrecadavam quase o dobro, puta de vida, andamos todo o dia com uma enxada nas mãos, fazemos ombro com eles e recebemos só esta miséria; malvadas mulheres que nem no trabalho têm sorte.
Diariamente, nos chegavam as mulheres, suadas e sujas, em secura e incómodo de cabelos pegados ao rosto, a pele um resíduo sob o suor e o pó que chapéus e lenços não evitavam, mãos encardidas e calejadas. Sem um tostão no bolso. Tudo que ganhavam evaporava a abater a conta da mercearia. Contrapúnhamos a professora rosada e cheirosa, nariz empinado, sapato de salto e meia de vidro, lábios pintados e um porta moedas de malha metálica que abria como um vaso e deixava ver uma sofreguidão de moedas, o Luís a escolher uma ou duas para ir aos mandados ou a abrir-lhe a boca redonda para deixar o troco. E não havia garota que não quisesse a profissão: íamos todas ser professoras.
       Naquele ano, Lídia esquivava-se a mim em manobras de enguia e tive alguma dificuldade em convencê-la a ficar comigo um bocadinho, antes de seguir para a avó. Valeu-me o poder do bolo de laranja - a mãe não lhe fazia bolos. Depois de devastar umas quantas fatias, recuperou o antigo à vontade. Perguntei-lhe se queria brincar com os meus brinquedos e quando negou, ataquei, a tua irmã está de barriga...e ela, pois está, mas eu quando briguei com o Luís pensava mesmo que era mentira. Olhei-a a acusar, o Luís diz que sabes como é que os bebés vão parar lá dentro. E ela a sacudir as migalhas de bolo na bata, é a foder, mas eu já experimentei com ele e a barriga não me cresceu. Nunca tinha ouvido aquela palavra e perguntei-lhe isso é o quê? Ela a olhar-me sincera e meio penalizada,  depois já não queres ser minha amiga, vais-te zangar comigo, foi por isso que eu não te contei. E numa decisão de tudo ou nada, olha, é assim, a gente despe-se e deita-se e ele põe-se em cima da gente e misturamos as coisas de mijar. De repente, pôs-se a olhar-me séria e de alto e desdenhou, só tu é que não experimentaste. Nada incomodada, atardei-me um bocadinho a pensar. Aquilo desinteressava-me, não gostava nem tinha habilidade para me despir, fazia birras de léguas para me tirarem um vestido, arrepelava-me os cabelos. Desajeitada, estrebuchava numa aflição, presa dentro da roupa, a choramingar, não consigo sair, não sou capaz de tirar os braços, não vejo nada. 

terça-feira, 15 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

A princípio, mau grado a juventude da mestra, e a despeito de o não confessarmos, todos chorávamos o jeito manso e comedido da professora do ano anterior. Mas a saudade é um sentimento de suave tristeza que nos bate em momentos quietos, e a nova professora era um pandemónio a estrear, não nos dava tempo para suavidades extra. Ou seria a vida na sua violência de hora sobre hora que ocupava com método todos os escaninhos. Vivíamos à beira do naufrágio, no temor do incumprimento, assoberbados pelo amontoado de pormenores e exigências que nos travava lembranças. Nas primeiras semanas, a sala passou do zunzum habitual ao silêncio cortado pela aspereza esganiçada da mestra. Lídia e outros alunos mudaram de carteira por desconfianças da professora sobre copianço e eu ganhei uma parceira loira de olho azul que o pai trazia até à escola num despacho motorizado que, garantia o Luís, carburava mal do cano de escape, olha p’aquilo, olha pá cor do fumo, não tás a ver. E eu que só via fumo, punha um ar entendido e abanava a cabeça, pois é. A minha atitude deixava-o contente e, a escorrer confiança, ia contar aos outros. A nova parceira era despachada, tinha um braço maior que o outro e mostrava-nos a assimetria a esticar os dois, o menor involuindo como criança tímida e ela a pegar a mão inerte com a outra e a elucidar, neste não tenho força nenhuma,  tive uma paralisia.  Apesar do seu braço quase parado, Maria Laura desenhava melhor que a professora. Se faltava um desenho, Maria Laura vem ao quadro e desenha uma árvore com um ninho ali no canto direito, põe-te em cima da cadeira que eu quero passar a cópia no quadro. E a Laura sorria-me a levantar-se, arrastava até ao estrado a cadeira encostada à parede, subia e, e em dois ou três riscos, satisfazia o pedido. Nós pasmados da habilidade. E ela, minha senhora posso fazer um passarinho com o bico aberto? A professora displicente, a mirar o verniz das unhas em labareda, faz lá e depois vai-te sentar. E para nós, que é que estão a olhar, não têm que fazer?, e punha a mão sobre a régua. Havia o baixar de cabeças regulamentar que, mal ela se concentrava na brancura da mão erguida, a observá-la ao feixe de luz da janela, aprumavam em sincronia de desenho animado, trejeitos só de lábios, soletrando em risonha satisfação, o passarinho.
Enquanto por isto e aquilo a professora enrijecia as classes a reguadas, as mães iam à escola afirmar o que contrariavam em casa se nos viam de mãos vermelhas e inchadas de vergões a arroxear, arreie-lhe pra cima minha senhora, que é o que é preciso; só se perdem as que caem no chão. Motu próprio e instada por invectivas que lhe precaviam a sorte, a professora banalizou os castigos e a régua tornou-se parte da nossa vida: se havia brigas, se não fazia os trabalhos de casa, se não estudava a lição em casa, se dava mais que três erros no ditado, se não obedecia, se não aprendia, se a professora estava de mau humor. Havia gente que sofria a régua duas e três vezes no dia. A mesma gente, todos os dias. Nos intervalos, mostrávamos as mãos uns aos outros a cochichar o sonho de concretizarmos a formula mágica: untar a mão com azeite, esconder um cabelo numa das linhas que a percorriam e oferecê-la ao castigo.  Sem conhecimento de facto, conencíamo-nos uns aos outros,  era “remédio santo”; juntos numa palma, azeite e cabelo quebravam até uma viga; e antegozávamos o momento, dava-nos uma reguada e zás, mal a régua batia na mão, toda se estraçalhava. Em discussões açodadas com o Luís, eu desconfiava do disfarce,  dado que, talvez incúria minha, experimentava e não conseguia esconder um cabelo na mão aberta, mas ele retorquia que tinha de ser um cabelo loiro, que disfarçava melhor e eu descansava, a minha parceira não se ia importar de tirar um cabelo. Mas, e apesar dela ter anuído, nunca aconteceu e nem sequer experimentámos a receita. Continuámos pelos anos a sofrer as palmatoadas, as mães nas costas da professora, precisa é de uma queixa à inspecção, é má como as cobras; tão pequenina e tão má. Enquanto isso, alguns de nós a bater com a cabeça na ardósia por erro nas contas de dividir ou enganos na tabuada e um galo a inchar na testa. A professora assustada, Luís vai lá molhar-lhe a testa com água. Ou punha-nos de pé virados à parede dos mapas, horas esquecidas, uma perna a descansar de cada vez. Até que tomávamos coragem, e sem nos virarmos, minha senhora já me posso sentar, e ela, ainda aí estás? senta-te. Os mais tímidos aproveitavam a professora virada ao quadro e faziam sinal ao Luís; ele acudia de boa mente, minha senhora o fulano de tal já está há mais de uma hora de castigo. Ela nem se virava e lançava-nos um, senta-te, que nos comprazia mais que copo de água em torrina de Agosto.

Por essa altura, desgostosa, Lídia desinteressou da escola. Retaliava castigos  com faltas, atrasou-se nas contas e nos ditados, irritava a professora com a sua passividade nunca vista e vivia amorfa e atrasada  para a escola, a encher as manhãs com justificações que a professora desdenhava. No fim do ano não passou de classe. Entretanto, a meio do ano, numa vingança cinzenta, cortara os caracóis. Continuava baixinha e resmungava o tempo todo comigo e com o Luís se preferíamos fazer primeiro os trabalhos em vez de brincar. Ao invés dela, eu tornava-me aplicada e boa aluna e a professora deixava-me vogar entre as revistas infantis que comprava e atulhavam a chaminé da sala. O Luís fez-se um garoto obediente e a professora descansava nele muitas tarefas, Luís, rega-me as flores; Luís, vai-me comprar pão; Luís, o meu relógio parou, vai à mercearia perguntar as horas. Mas o que mais gostávamos era quando a professora lhe pedia, segura lá o espelho para ver a minha garganta. E deitava a língua de fora a observar as amígdalas. Em seguida, tirava-lhe o espelho, fechava-o com um estalido e ordenava antes de esticar a língua e parecer um cão encalorado, vê lá se tenho pontos brancos. E ele sábio, um raio de pesar admirado, hiiiii....está cheinha minha senhora. Esses eram os nossos momentos altos e de descanso. Aquela professora que achávamos tão má, mal adoecia ou pensava em estar doente, tornava-se um anjo. E a régua ficava parada na mesa. Dias a fio. Mal a saúde retornava, logo voltava às mãos na mesma fervura e nos ensurdecia de batidas raivosas na pobre secretária, como se as nossas diabruras fossem a causa de todo o mal na galáxia.

sábado, 12 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Brincámos ao de sempre, mas alguma coisa mudara em Lídia. Talvez em mim. Ou em nós, essa entidade abstracta, tecida em cordas de atracção e dever, que nos aponta e mistura aos outros. Mau grado a saudade que lhe sentia a desfazer nos objectos invejados, ela brincava diferente, os gestos desprendiam uma pressa nova,  aqui e ali, uma mancha de desinteresse. De espaço a espaço, interrompia a brincadeira que antes a encantava, subia o valado onde o avô se sentara em solilóquio com os animais, e exibia-se para mim correndo acima e abaixo sem descanso. Eu ia até ela e imitava-a até que, cansadas, voltávamos para as miniaturas. Bebíamos chá que não havia esticando muito o dedo mínimo, a comer bolinhos de terra amassada com água em enfática mastigação de boca fechada, cerimonial que julgávamos próprio de gente rica e que observáramos à professora. Estranhei-a. A minha amiga estava comigo, mas alguma coisa lhe interessava mais que eu; por vezes, pegava no boneco de casquinha, vou passeá-lo, e afastava-se de mim propositada a esticar o braço e pôr-me a distância, não tens nada que vir atrás de mim, agora eu é que sou a mãe e tomo conta. Eu agachava junto dos outros brinquedos, num interesse falso e a pensar com desgosto que preferia a companhia dos rapazes vizinhos e correr com eles de gancho no arco que já dominava na perfeição, do que ocupar-me com jantarinhos de ervas e varrer o chão de casinhas que, mal um toque,  esboroavam os muros de terra misturando cozinha com sala, pátio com quartos. Olhava-a de soslaio enquanto se afastava até ao extremo da nossa terra e reparava-a que tempos sentada no muro. Depois, voltava ainda mais mal humorada. Uma das vezes, deu-se  pressa em guardar o boneco, arrumou tudo na caixa dos chapéus sem consulta e atirou-me displicente, já brincámos muito, vou-me embora. E foi mesmo. Sem esperar pelo avô ou lançar um anzol de promessas. Arrumei a caixa e fiquei tão desanimada que contei o caso a minha mãe. Ela ouviu e disse, vai lá buscar a caixa, filha, e vê se estão todos os brinquedos. E quando os observei um a um, cresceu-me nos olhos o desastre do boneco: acima do meio sorriso, uma racha profunda ao longo da testa morria nariz abaixo e exibia a sua fatalidade perecível. Era ferida sem sangue, mas doeu-me mais do que quando ela, sem pedir, tomava para si brinquedos que eram brinde de farinha amparo ou predilecta e eu tinha repetidos, que lhe daria se mos pedisse ou nela adivinhasse o desejo da posse; e outras desimportâncias que surripiava. Mais tarde, o Luís fazia a devolução parcial, puxando-as do fundo dos bolsos num sorriso, também lhe roubei. Doeu-me a casquinha vandalizada. Porém, a fundura do golpe foi outra: ela sabia que era o único brinquedo que eu preservava e nem sequer me avisara. Ainda desconheço se o fez de propósito ou por distracção, jamais admitiu ter sido ela a causa do lanho. 
         Entretanto, parecia apostada em ignorar-me e não perdia a oportunidade de dar enfâse à distância. No caminho para a mercearia, passava junto a minha casa sempre do lado oposto da estrada nacional, olhando para a direita quando eu vivia do lado esquerdo e o inverso. No primeiro dia em que passou fez ouvidos moucos à minha insistência vocal; magoada, restringi-me à linguagem do olhar.  Via-lhe os caracóis desalinhados e o narizito empinado no desgosto de saber que seguia caminho sem mim, imperturbável. Desconcertada, queixava-me a Luís e ele sorria misterioso e sem resposta ou acrescentava, não penses nisso, vamos dar um passeio até à linha do comboio com outros gaiatos, pede lá à tua mãe. E esquecíamos tudo. Éramos só quatro ou cinco crianças a descobrir tesouros tão importantes como os restos mortais de uma pasta dentífrica que pensávamos ser creme, esburgávamos à dentada para nos besuntarmos e depois nos fazia borbulhas, um risco vermelho por todas as partes da cara onde passara. Só o recomeço das aulas nos voltou a juntar.


            O dia sete de Outubro foi rotundo em novidades. As minhas começaram ao vestir da bata: encurtara em todas as extremidades. Sob ela, as saias faziam barra. Portanto, eu crescera. Indiferente aos lamentos de minha mãe que antevia gastos em bata nova, parti para a escola toda contente dos centímetros a mais, na esperança de que a professora me notasse. Depois, o caminho também sofreu alteração, acompanhei com o Luís. Ainda minha mãe me penteava o cabelo da trança, quando Lídia passara  entrosada num grupo de gaiatos da quarta classe que eu conhecia pouco. Mas o maior desconcerto foi a professora. Quando parou o carro vermelho e ela saiu desembaraçada e jovem, jovem, ficámos boquiabertos de espanto, dolorosos da perda, mas esperançados naquele pedaço de mulher que nesse ano ia tomar a seu cargo as quatro classes, os mais velhos às cotoveladas uns aos outros, quinze e dezasseis anos a pular de hormonas. Ela subiu os degraus em passo nervoso e tic tic de saltos, não sorriu, mostrou uma régua grossa e disse a olhar lá para trás onde a altura campeava, espaçando frases com as pedras duras dos olhos, comigo não se brinca. Quem não fizer o que digo, apanha com esta régua. E agora vamos entrar que já estou atrasada e tenho mais uns avisos a fazer. Instalou-se uma morte silenciosa, os olhos de algumas garotas marejaram, eu apertei a mão de Lídia. A professora antes de entrarmos, numa observação de escândalo, a forma está toda errada. Olhou para nós duas, vocês não podem ficar juntas, tu, anda cá, e pôs-me atrás de Lídia a dar a mão a uma garota sorridente, cara redonda que fazia covinhas ao rir. Ao lado da minha amiga colocou uma menina da primeira classe, bem pequenina. Olhei-lhes as cabeças e constatei: eram da mesma altura. Senti-me melhor. Arrumados em escada, entrámos. Hoje sei que todos éramos medrosos.

quinta-feira, 10 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Lídia era outra coisa. Voltei a vê-la na tarde em que o avô veio pastar as vacas no valado frente a minha casa. O avô de Lídia era uma personagem. Passava-me à porta diariamente e jamais o observara em pormenor. Num relâmpago, rendi-me aos seus encantos. O primeiro era sonoro, chamou-me de “minha vizinha” e eu cresci de contentamento ainda que não tivesse ideia do lugar onde ele morava. O segundo foi que me trouxe a minha amiga e preguiçou a olhar-nos, como se fôssemos milagre de inaudita beleza, repetindo baixinho e a espaçar muito as frases, então esta é que é a menina de quem tu falas... esta menina é a tua amiguinha... tá bem.... E o terceiro prendia-se-lhe ao todo do corpo. Era um gigante – ou parecia-me –. Tinha cara redonda aureolada por cabelo branco encaracolado em rolinhos pequenos e separados, como os meninos Jesus dos santinhos mas em versão de velho; os olhos eram muito azuis e a barba rala, bem crescida e meio loira; nas pernas usava uns safões castanhos de pele de borrego e, na parte superior do corpo, arreios com fivelas atravessavam-lhe o peito a segurar uma espécie de manta escura que usava sobre as camisolas. Havia na sua figura um ar de guerreiro imponente e lendário, sem correspondência à brandura arrastada da voz.  Além do mais, geminava com um cajado que me abalroava e duas vaquinhas faceiras, simpáticos objectos do seu interesse monologado de viva voz, vamos embora para casa que já é tarde, as minhas meninas estão com medo do escuro; ou, aproveitem o lanche suas marotas; vá come lá essa flor, chega-te aqui a esta ervinha, e dava-lhes o comer à boca depois de desvelada ceifa com uma foice pequena que puxava dos arreios. Em carinhos de zelo mal tapado, deixou-nos também alimentá-las. Como paga, teve a minha amizade até ao fim. Fui para sempre sua vizinha. 
Todos os dias o velho montava a carroça e, ajudado pela mulher, ia, porta a porta, vender o leite na vila. Em exactidão de ponteiros, passavam sisudos e compostos, sentados a meio do trem. O meu vizinho dos safões seguia muito descansado, arreatas no colo. E as rodas chiando sem pressas na claridade que despontava, as  vasilhas de lata na indiferença habitual, a resvalar batendo uma na outra a cada desnível da estrada, a mão da mulher lançada atrás, prevenção de desastre mais incómodo. E ele ia tirando o chapéu a toda a gente que os cruzava, salve-a(o) Deus.  
Este velho vivia de tamancos, não sabia uma letra, apontava encomendas, ganhos e perdas diários, a poder de riscos nos rebordos da carroça, a um lado o sector de encomendas e a outro a finança. Mas, para mim, tinha fortuna pessoal e era letrado.

No dia em que o conheci de perto e me levou a neta, apesar de tolhidas por um inexplicável mau estar inicial - havia três meses que não nos víamos - depressa nos recuperámos e  entrámos de brincar com os meus brinquedos, aqueles que guardava para brincar só com ela e que a interessavam demais enquanto eu imperturbável. Arrastámos a caixa de brinquedos de debaixo da cama de meus pais (era a caixa do último chapéu de meu pai), pegámos-lhe a meias e trouxemo-la para o ar livre. Ali, retirámos mesinhas, cadeiras, pratos, talheres e chávenas, ferro de engomar, tábua e mais. Retirei e emprestei-lhe o meu boneco de casquinha que poupava a abusos e conservava na sua caixa de origem sempre envolto em duas dobras de papel de seda que funcionavam como portada de janela e eu abria só para espreitá-lo na sua caminha de alvo papel a imitar palhinhas de presépio. O boneco era um presente da minha madrinha verdadeira, pessoa muito dos meus encantos. E também constituía o supremo enlevo de Lídia. Gostávamos dele por ser masculino, ao invés de todo o mundo de bonecos que conhecíamos. Além disso, não era bebé, era mesmo um garoto, talvez um pouco mais velho que nós.  
Anos mais tarde, vim a descobri-lo num rapaz da mocidade portuguesa que estava numa missa, bem direito e penteado, lindo de morrer, tal qual o meu boneco, calções, camisa e um bonezito meio militar que só lhe dava mais encanto e que o boneco também trazia pronto a usar, num canto da caixa. Diferente, só tinha mesmo a  bandeira que empunhava. Tremi de novidade e constatei, ponto a ponto, a fazer comparações de cabeça, que o meu boneco era o seu retrato exactíssimo. Deu-me até vontade de lhe contar, mas decerto não acreditaria em mim e nem me ligava nenhuma. Portanto, limitei-me à identidade silenciosa que nunca partilhei com Lídia, a essa altura já a desmemoriar de nós crianças, tal o desprendimento com que me presenteava. Que aos sete anos eu faria previsível se tivesse ligado sinais. Mas se a vida me fez boa a intuí-los, pouco me ajudou a acertar nas ligações. 

quarta-feira, 9 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Regressada ao ninho, marinei de enlevo no caldo morno do hábito e  madrinha Carmelita foi-se transformando em espaçosa iguaria que me chegava em lonjura de saudade e eflúveos de gasóleo, as pernas cada vez mais trôpegas a hesitar na altura de degraus temerosos.  Depois de minha mãe me atravessar a estrada num “vai agora” que me alava, eu pousava de leve na paragem e ficava a observá-la enredada nos caprichos da carreira que resfolegava impaciências e ma entregava embrulhada em novidade, partindo a arrastar rodas por má vontade e birra de motor, no inconfessado desejo de  ficar connosco a lanchar fatias douradas. 
 . Quando corri a casa do Luís, ele abriu um sorriso de orelha a orelha, os olhos agarrados à minha pessoa. Durante uns dias nem se importou de brincar comigo às escolas alternando de aluno a professor, cópias e ditados escritos a carvão no poste da luz que beirava a minha porta. Uns palmos acima das nossas cabeças, na lateral do poste, o letreiro perigo-danger com uma caveira de tíbias cruzadas a desimaginar aventuras. E toda a gente nos avisava  com olhos de caso, peremptória, não podem passar dali senão morrem, brinquem só aqui em baixo. Nos acessos de enjoo e maldade, o Luís, farto do regime escolar e de mim, atirava o nosso giz preto que batia escarninho bem acima da caveira, ploc, e dizia com partículas malévolas a assomar por entre os espaços das palavras, tás a ver sua medricas, não acontece nada. E partia sem mais, a treinar o assobio, mãos enfiadas nos bolsos dos calções. E eu, abstracta e sem discurso, ficava a ver-lhe as costas a desaparecer no meio das árvores. De outras vezes, mal apagava “o nosso quadro”, o meu amigo atirava o trapo ao chão e trepava com esforço pela lisura do poste. Parava acima do letreiro a provocar-me, tronco obtuso e pernas enganchadas na coluna, braços abertos, não morri, não morri, não morri. No susto de tamanha insurreição, imaginando-o à beirinha dos proféticos cataclismos, as pessoas ficam todas queimadinhas, pretas como um tiço, nem se conhecem, é um carvão só, eu galgava  até onde houvesse gente e abria uma sirene atabalhoada de pressas, a repetir sem descanso, ele passou o perigo-danger e vai morrer, ele passou o perigo-danger e vai morrer. Mas quando nos aproximávamos o poste estava solitário e tudo no lugar. Na sequência destas e de outras avarias o Luís desaparecia-me por uns dias. Depois, voltava como partira e brincávamos a outra coisa, esquecidos os dois da tempestade. Por vezes, aproximava-se devagar, uma cenoura ou um nabo na mão ainda enterreados, queres, estavam lá na cozinha. Se eu aceitava (não gostava muito de nabos), íamos lavá-los com a água que tirava do poço, só um fundo de caldeiro que não podia com mais, eu no terrível fascínio da fundura onde as avencas acenavam verdes alegrias, e ele a desviar-me com o braço em manobras de adulto feito à pressa, sai, sai, que só empatas e podes cair. Depois trazia o caldeiro esforçado até ao bordo. E ali o deixava. Enquanto eu abria mãos em concha, ele deitava-lhes os legumes e, de caldeiro em punho, escorria a água em fio. Logo de seguida, repartíamos os nossos haveres. Algumas vezes, a mãe espreitava-o, esperava um pouco e apanhava-o de surpresa, concentrado na operação de lavagem. Aproximava-se silenciosa e mal o ganfava desatava às porradas e incendiava-nos de gritos, meu desgraçado, só estragas o que eu ando a fazer, quem é que te deu ordem para arrancares as cenouras, tu não vês que as coisas ainda não estão feitas, e assentava-lhe as mãos a eito pelo corpo, acabando a  arrastá-lo por uma orelha até casa. Nessas fúrias de  tormentosa veêmencia, eu era invisível e o Luís, que se contorcia de dor mas nunca vi chorar, como que deixava de ser seu filho. Punia o invasor dos canteiros de hortaliça de que apurava  crescenças e formusuras em arroubos de família. Entendi que o garoto mentia e ia à horta da mãe roubar os legumes arriscando uma sova em cada vez. A pena das pancadas que caíam sobre o meu amigo afinou-me nas papilas gustativas, os legumes passaram a insípidos e repelia-os com vigor. Mas o Luís continuou a furtá-los à socapa apesar dos meus avisos de piedade egocêntrica e moralista, se a tua mãe vê não nos deixa brincar e bate-te. E ele às dentadas às cenouras, imitando um coelho a mexer o nariz, se quiseres trago-te um torrão de açúcar amarelo do açucareiro, vou lá numa corrida, queres? Dele inteiro me vinha o superior  grau de certeza a que só a  infância acede, a confiança de sermos ambos eternos. Vivíamos um estado de “para sempre”, como todo o  presente infantil.

segunda-feira, 7 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Até ao carro, bem cosida, apurava-se  uma courela de gente. E nós feitas toupeiras, a esgarçar-nos por intervalos de roupas e corpos, perseguindo-nos uma à outra através de mãos abandonadas ao rés de saias, a contornar o perigo de cotovelos atirados para trás, pernas grossas como troncos a cerrar-nos caminho, rabos tão maciços que nos escondiam e apagavam a figura, cheiros de suor e alguma coisa estranha que ainda não sabíamos o que fosse. E não sei de chegar primeiro ou último, sei que dei por mim a ofegar de frente para a nuvem; ignoro se de frente, mas ela olhava-me em azul sereno, sentada a meio do banco. Estaquei, talvez admirada, talvez sorrindo. E foi seguramente o fenómeno mais bonito da minha infância. Era uma rapariga desconhecida, vinda de outra aldeia. Luzia um vestido completamente branco, rugoso de ramos e florinhas que cintilavam à luz e me impressionou demais. O único feitio eram os botões pequenos a que não vi começo e que subiam até ao pescoço, rematando numa gola conhecida por “gola de padre”. Abotoados por ilhós, acompanhavam a linha do peito, primeiro a subir e depois descendo, em intervalos muito pequenos e iguais. A noiva era meio alourada e tinha o que a minha avó apelidava de “jeitos no cabelo”, sem ares de cabeleireira ou qualquer artifício; na testa e junto às têmporas, uns cabelitos mais curtos encaracolavam com alguma graça e davam-lhe um ar menino. Velava-lhe a cabeça, um véu de tule simples e amolecido, que devia ser bem comprido tal o amontoado sobre o porta bagagens, e que caía dos lados do rosto num friso arqueado de florinhas brancas iguais ao dos nossos véus da igreja. Mas o que mais me surpreendeu foram os olhos. Não que os tivesse extraordinários, eram azuis, sem outra beleza que serem olhos, mas havia neles uma expressão incomensurável que hoje sei provir da confiança num futuro de companhia. Deliberada e docemente exposta, lembrava imagem de igreja: não tinha sorriso aberto, nem um dente se lhe via, mas planava superior, numa nuvem para que não tínhamos caminho; nenhum mal poderia atingi-la.
Então desataram-se as matracas, o trabalhão que o Luís vai ter logo à noite com aqueles botões – e riam-se; tão bonita que ela está, nem parece a mesma que, sem ofensa, a rapariga até é feiazita,  conheço-a bem, ainda é parente da minha comadre – e eu a atirar um olhar eriçado à maldizente; as noivas são todas bonitas, é bem verdade; vejam bem o vistão que ela fez, é que nem parece a mesma, concluía o pessoal a dispersar.
 Entretanto, o Bento da loja, sem o lápis atrás da orelha e todo enfarpelado em cerimónia,  enxotava o resto da gaiatagem a poder de rebuçados atirados em gesto de semeadura para o meio do adro e abria a porta traseira  do carro a resmungar, ainda me dão cabo da carroçaria, todos aqui encostados - e mirando o vidro da porta - olha pra este trabalho, há dedadas em todo o lado, mal empregado tempo que perdi a lavar a furgonette;  devem pensar que isto é alguma carroça. Foi quando deu de caras comigo e com a menina do chapéuzito e nos recrutou, olhem lá vocês duas, esperem aí um bocadinho que eu não me ajeito com isto de véus e noivas e ainda tenho que ir buscar a mulher e fechar a loja. E Maria Rita prestável, num sorriso de covinhas, pode deixar, eu sei como é. O problema foi que eu não sabia como era e fiquei fascinada pelo pé que a noiva deitou fora do carro. E não era para menos, tinha um sapato branco de salto alto mais bonito que o da gata borralheira quando fugiu do baile. E depois admirei os dois pés e o véu inteiro a colar no vestido e a sobrar, a sobrar, que nunca mais acabava. Quando dei por isso, a noiva já ia a meio da escada, Maria Rita atrás a pegar no véu, o Bento fora de orbita e eu no pedrisco, sozinha, toda a gente na igreja. Ainda pensei correr um bocadinho e apanhá-las, mas uma força prendeu-me ao lugar, parou-me as pernas. Vi-as entrar as duas, bonitas e conjugadas. Eu não cabia naquele quadro.

Quando as pernas deram licença, juntei-me a madrinha Carmelita e ela deitou-me a asa sem perguntas. E fiquei ali, protegida na sua gordura aveludada que cheirava um bocadinho a naftalina e a sabonete, ocupada em ser criança de pernas desobedientes, pensando na verdade do ditado "todas as noivas são bonitas", perguntando-me se seriam bonitas devido à frase mágica ou se a magia estava em ser noiva. indiferente ao acontecer da cerimónia.

domingo, 6 de março de 2016

Eu, Beatriz

Se nos dá na veneta  escolhermos um nome, parece-me admissível que ele sirva à medida e ajuste sem denúncias perturbantes. Isto porque o nome de baptismo não o escolhemos, adaptamo-nos, afeiçoamo-lo ou acabamos afeiçoados à grafia  e à pronúncia e remetemo-nos a ele, acudimos-lhe em irremissível representação. Contudo, na continuidade da vida, emana dele um fluido de estranheza que não cessa de se estranhar. Ou, quem sabe, é isto apenas impressão subjectiva e na maioria dos casos o casamento de amor entre nome e pessoa elimina distâncias, ao invés do que sucede na união de interesses que me caracteriza.
            Escolher um nome é ser ele por vontade, mas também sem ela. Há uns anos, durante um telejornal que admitia questões de telespectadores, surgiu uma assinada com o meu nome, ouvi-a toda orgulhosa (não era uma má questão), como se tivera alguma coisa a ver com o eu de mim. Que não tinha. A este nome reajo involuntária e com propriedade; ao de batismo reajo pavloviana. Os meus filhos numa constatação, gostavas de ser Beatriz, tu. E um no seu natural, também, com o teu nome, quem não gostaria. E o primeiro, diz lá, é o nome que mais gostas. E eu para os meus interiores, é o nome que mais gosto? E não. Não é o nome que mais gosto. É o meu nome, o único que me serve, o meu número por extenso. Percorre-me com o mesmo rigor dos pares de sapatos. Experimentamos vários mas só um foi feito para os nossos pés. Os outros andam lá perto, o pé até entra, mas desconforta dentro deles, sem relação de pertença. Hão-de servir em pés maiores ou menores, mais largos ou mais estreitos, com joanetes ou sem eles, etc. Assim acontece com o nome que “escolhemos”: é o único que encaixa. E bem sabemos que não houve verdadeira escolha. Não experimentámos vários como sucede com os pares de sapatos, só aquele nos aparece dançando na mente. Singular.

            É uma tragédia ser quem não se é e não poder ser quem se é. Parece uma tragédia. Porque a vida humana evolve assim, a roubar o ser do não ser. Não é coisa que se perceba mas assucede.

sábado, 5 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Numa cortesia principesca, Laurentino, altíssimo e muito direito, guiou a velhota degraus acima e foi sentá-la no interior da igreja, os convidados a assentir de cabeça, olhos em discurso directo, sim senhor, é um homem como deve ser.  E eu desejosa de ver a noiva, a ficar para trás contrariada, a madrinha notando-me o fincapé, se não te afastares, podes ficar aí à porta, vens ter comigo depois. E eu, a desmanchar em sorrisos, fiquei.
Estava fazendo os meus mitetes de rodar a saia a ver se alguém me reparava ou deitava um olhinho quando, num gargarejo de bom motor, quase silencioso, chegou um carro esquisito que me pareceu cor de café com leite, rabo esticado qual peixe. Extravagantemente bonito. E as pessoas que saíram não me entusiasmaram menos. Na surpresa geral, fez-se silêncio por contágio. Eu, esquecida da vaidade a precisar de palmas; a galeria, sem palavras. Embasbacámos todos.  Saiu do anfíbio um senhor de fato e gravata e de que só lembro o aprumo e as mãos de dedos compridos. Uma senhora que me pareceu extraordinária por três ou quatro pormenores para mim de relêvo, usava um chapeuzinho com rede, lábios pintados de cor de laranja, andava de saltos altos como eu saltava à corda, e calçava luvas. O tempo havia de confirmar a impressão: era uma mulher bonita. E do banco traseiro desceu uma garota mais ou menos da minha idade. Quando a vi fora do automóvel bateu-me de chofre o inconcebível da minha vaidade, senti a triste distância entre o conforto desafogado e a nossa penúria engravatada. A diferença não se resumia à indumentária. Bastava olhá-la e tínhamos certeza de que pertencia a outra escala, uma escala com diferentes unidades de leitura. Não que fosse vulcânica como Lídia que era das nossas e por vezes entrava em irrupção de lava inesperada e outras se afirmava submissa e pacífica. Aquela garota divergia. Olhei as crianças que por ali cirandavam, umas gordas, outras magras. Ela não. Havia proporção e harmonia na sua figura nem gorda nem magra. As nossas mães levantavam saias a exibir-nos as coxas, olha-me este pernão; ou o inverso, não come, é uma trinca espinhas, só tem é ossos; depois, alçavam-nos as camisolas e, mostra lá. E a caixa torácica aparecia-nos desenhada sob a pele. Ou o contrário, já viste, tão novinha e já traz ali umas maminhas a apontar. E, gordas ou magras, tínhamos de aguentar-nos à observação que nos vexava. Mas observava-se aquela menina e todos os ossos tinham a camada de carne certa. Ela não tinha os joelhos escarolados como alguns de nós, os pulsos fininhos onde nenhuma pulseira servia e era preciso dar-lhe mil nós a toda a volta para que não deslizasse mão fora;  não havia um pernão sob as saias armadas com saiotes de renda que lhe despontavam em brancura aos bicos. Aquela menina não tinha maminhas de gordura, botões precoces que mães orgulhosas e ignorantes exibiam; por certo, ninguém lhe apontava as carnes num sentimento de vaidade brejeira que nunca entendi na maior parte  de mães e avós.
A garota trazia luvinhas de renda, um chapeuzito de veludo, fitas e laços de veludo semeados com gosto pelo vestido de princesa que não faria má figura ao lado do bigodinho fino do senhor Laurentino. Mas sobretudo invejei-lhe a desenvoltura e simpatia naturais que hoje julgo duas qualidades que pouco têm de natural. Nessa manhã de sol, Maria Rita surgiu-me perfeita. Mais perfeita que Lídia. Mas nunca eu saberia aproximar-me dela. A medida da sua perfeição esticava a minha distância.
Mal o trio se perdeu no interior da igreja, as conversas ritmaram, gente tão fina ia lá ficar aqui fora à espera, ficamos sem saber se são da parte da noiva ou do noivo, mas a soalheira não é para aquela raça de gente, ainda apanhavam a pneumónica. E patati e patatá. Tive ganas de me juntar à madrinha só para observar em que banco estavam sentados, se estariam muito longe de nós, os olhar com vagar mesmo que estivessem de costas. Mas entretanto ouvira uma mulher afobada, arranjando o lenço que lhe descaía da cabeça, a garantir pela sua saúde que a noiva já tinha saído e não tardava a assomar. Portanto, fiquei. A noiva era o meu motivo, não queria perdê-la.

Estava eu apurando o ouvido para um zumbido de  automóvel quando senti uma mãozinha pequena a cutucar a minha. E era aquela menina desnomeada a sorrir-me, a minha mãe disse que podia ficar ao pé de ti e ir ver a noiva contigo. E antes que eu me refizesse, um carro entrou bem devagar no adro, a nuvem branca pousada no banco traseiro. Pelo despovoamento que ocorreu, tive certeza: era a noiva. E fomos as duas a rir e a correr até ao carro que parava e logo um círculo de gente a rodeá-lo, as cabeças todas atiradas para a frente como árvores fustigadas por vento forte. E nós rindo, a furar por entre o aperto de pernas e braços. 

quinta-feira, 3 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

No largo da igreja, as pessoas acasulavam em magotes zumbindo conversas que surdiam em apreciações de pente fino a cada conviva que aportava. Obliterado o ser de todos os dias, o núcleo dos convidados mantinha-se isolado da maralha e muito composto, destacando da ralé a que pertencia em todas as horas menos naquela e quedava-se junto ao templo, convites da noiva a um lado e do noivo a outro, avaliando-se mutuamente para não deixar em pouco a representação. Cada um  aliviava reconhecendo para os seus botões, este lado tem pessoas muito mais finas e bem vestidas.  Exacerbados de aparência, ainda que vizinhos naturais e vivendo em portas e ruas contíguas, estranhavam-se entre si: homens de sapato engraxado em asfixia de gravata e apertos de casaco; mulheres contrariando o hábito de perna ao léu, erguidas sem treino em sapatos de salto e meia de vidro, a pilosidade acamada sob o nylon a azular-lhes as pernas, inconformismo de um pêlo ou outro a romper nos poros das meias. As mulheres que pareciam outras, uma altura desmedida de cabelo disposto em ninho invertido, receptáculo de ganchos e carramiços forjados em salões de cabeleireira, malitas desasadas a pender dos mesmos braços que  retesavam no vime dos cestos, ou afeitos à brusquidão cega de foices e enxadas. E as crianças. Tesas de goma e brilhantina, esmagadas por avisos de pé leve - se te sujas, meto-te em casa e levas uma pisa que vais ver -, os pés que chinelavam ano inteiro tolhidos no aperto de sapatos e meias, mal respiramos, nem um dedo podemos mexer. Jactantes e oblíquos, os garotos comparavam-se de viés, agitando a episódica fortuna de fios com crucifixo, pulseiras e medalhinhas e, pé ante pé, faziam-se próximos a pavonear-se na vestimenta. As mães com sete olhos, não te esqueças do que te disse e nada de corridas que desmanchas o cabelo; vê lá não se abra o fecho, se perdes o fio ou a pulseira avéns-te com o teu pai.

Foi neste entrementes que o carro do Laurentino deu uma volta lenta e parou em frente da escadaria. Soou o boato, é a noiva que vem num carro de praça. Mas logo alguém emendou antes que o círculo apertasse e os pescoços esticassem, nada! É só a velha Carmelita e mais a gaiata que tem lá em casa. E eu vaidosa sem controlo, como se fora gente de importância. O Laurentino de mão na porta, indeciso, pego-lhe ao colo D. Carmelita?. Então a madrinha piscou-me o olho, exigiu-lhe o braço a redobrar mazelas da idade e o homem deu uma pressurosa volta ao automóvel que eu aproveitei para escorregar do banco e descer sozinha do coche.   Depois, ouvi alguns cochichos, a velha tem roupas boas, dantes vivia bem, diz que o marido tinha um bom emprego. E algumas depreciativas invejas, um fio de maldade a perpassar, uma velha com os pés para cova e de chapéu, tché! Sempre a gente vê cada coisa. E eu que estava tão contente de mim, não mereci palavra; nada para o vestido, os laços, os sapatos a que tinha dado brilho com casca de banana. Lembrei-me de Lídia. Já se teria feito notar, deitava a língua de fora a uma data de gente, dava umas caneladas aos garotos mais impertinentes e seguia em frente de nariz no ar, sobranceira. Lídia era compacta, impunha-se em bloco e não era fácil esquecê-la. Umas vezes sem intenção e outras por raiva propositada, a memória, pelo menos a minha, ressaltava-lhe a densidade. Impunha-a, solene. Mas eu não era ela. Tudo em mim negava brigas e provocações. O meu sub reptício era o desejo de agradar a algumas poucas pessoas, a vontade de ter no meu canto quem que me protegesse e gostasse. O resto podia fluir, passar, ruir, não me pertencia. Nesse tempo, como talvez em todo o meu tempo,  o nicho sustentava-me. Lídia habitava-o como viola em enterro, a desmanchar o ambiente. Nada acomodatícia. Era a velha linguagem dos opostos que se buscam. Ou seria apenas a vida na diversidade do seu curso. Sem querer saber de nós.