quarta-feira, 29 de julho de 2015

Princípios Fora do Verbo

E o ti João debruçado para o poço, olhos perdidos na fundura enquanto o caldeiro batia distraído nas paredes e enchia molemente, a boiar sem balanço, coitadinha da criança.
As vizinhas conheciam Natividade de trás para a frente. Sabiam que era brusca de corpo e mole de coração. Vinham para um dedo de conversa sobre a miséria lá de casa, certas de saírem com um regaço de feijão no avental, uma cesta de damascos, uma quarta de leite em pó, um resto de sopa da panela com concha e tudo. Enquanto isso, o ti João fumava o seu cigarro fininho colado a cuspo, a chupá-lo de olhos no lume e mão na tenaz de ferro, a Sissi enrolada aos pés a sofrer-lhe os desassossegos amorosos, um puxar brando de orelha, uma festa na barriga, um ventinho de fole a impedir-lhe o ronronar. Olhar mergulhado nas chamas, isolava das conversas. Porém, quem lhe observasse de perto o brilho manso dos olhos, apercebia o raio de orgulho que os atravessava.
O correr dos anos trouxe uma brandura gorda a Natividade e fez mais coxo o ti João. Quando a garotita da Caseta Roubada entrou na escola, Natividade tomou-a à sua conta. Nas manhãs friorentas, tratava de espreitá-la e encontrava-a suja e a tiritar no poial da escola, em abraço apertado ao talego com os lápis e o caderno e puxava-a para o lume a resmungar, para que sais tão cedo. E os olhos caninos da garota a seguirem-na, gosto de estar ao pé de si, ti Natividade. E ela a recuperar o mau modo enquanto arredava um moxo, sai de cima de mim gaiata, ainda te queimas, senta-te ao lume sossegada e come lá a torrada. E estendia-lhe a mão da esmola, a preferência da miúda a aperreá-la. Mas Luisilda tinha-lhe aprendido o jeito. Sentava-se quieta a mastigar, a contrição dos olhos a seguindo-a por todo o lugar.
À tardinha, a velha enchia-se de repentes bruscos e metia-lhe na sacola um pedaço de pão e queijo e uma fruta apanhada da árvore, avisando surdamente, comes isto antes de chegar a casa, ouviste. E à noite, a enfiar-se nos lençóis, resmungava, não consigo engordar a gaiata, encho-lhe o prato ao almoço, dou-lhe o mata-bicho, ao sol-posto ponho-lhe o pão no cesto…tu queres ver que aquele coirão já lhe dá vinho e come o que mando daqui. E o ti João a reflectir, quem sabe…
E até a professora lhe descobriu o segredo. Certa manhã, a mente ainda atormentada por um feixe de ralações caseiras, arrancou-se à molhada de desditas particulares e  atirou-lhe sem derivações, a senhora gosta da Luisilda, dona Natividade. A velha parou um décimo de segundo e, sem alterar movimentos, arranjando o redondo do lume, ó minha senhora, gosto o quê. Gosto como gosto das outras gaiatas, ora essa. Tenho é pena dela, tão magrinha e com aquela mãe. E a professora num meio sorriso, a espreitar-lhe o rosto, é muito esperta a garota. Vai ver, faz a primária de uma penada. Nas contas é a melhor e já ensina os outros. E as rugas da Natividade a açucarar, os olhos um tudo-nada agradados. Mas logo a voz enxotou pieguices tontas, quero cá saber dessas coisas, eu não sei uma letra e governo-me. De súbito, as rugas a endireitar, que é isto que nos deu, nada de molezas. A professora insistindo, escusa de negar, gosta dela, sim. A senhora não tem mais família que o ti João, que mal há em gostar da Luisilda. Olhe que a garota bem precisa de quem olhe por ela. E como tia Natividade num mutismo de burro velho, desandou para a escola, num  até logo que sumiu por entre estalidos das achas que chispavam.
À hora dos desabafos nocturnos, Natividade, olhos postos no ti João, se a gente pedisse a gaiata à mãe… O velho calado, mastigando a ideia, dando-lhe voltas na mente, não sei, ela tem pai e mãe, Natividade. E à expressão da velha, a apalpar terreno, olha, experimenta falar primeiro com a miúda. Ela pode não querer…não chega tu gostares dela. E a nossa vida também fica outra, não te esqueças disso.

Ainda sentada na cama, Natividade ajeitou-lhe a dobra do lençol  a afagar-lhe o corpo sobre a roupa e rematou velho, tu conheces-me, vamos que a gaiata quer vir e depois a mãe não a deixa. Não. Vou mas é falar com a mulher amanhã. É sim, ou sopas. Depois, decidiu a mão e apagou o candeeiro. O colchão chiou  sob o peso do corpo e o guizo metálico das maçanetas da cama foi amortecendo no silêncio escuro do quarto. E o mundo aquietou. Lá fora, no breu, os ralos tomavam conta da noite. Vigias em euforia.

domingo, 26 de julho de 2015

Epílogo de Uma Viagem

                                                                                                                             Regresso é um termo ambíguo, meio impossível. Não parece. Mas é. Em rigor, não se pode regressar. Somos outros dos que partimos e tudo que deixámos também mudou. Suponho que seja esse susto de transformação que por vezes nos tolhe o espírito na volta. É certo, as plantas crescem, as casas continuam em agradável compasso aguardando-nos os pés, os animais sentem-nos de olfacto, a escancarar janelas de saudade risonha. Mas as pessoas, deuses do olimpo, como as encontraremos?! Sim, que as pessoas são, em grande medida, imprevisíveis. Ou previsíveis em demasia. Ou desaparecem. Ou.
            E depois, o que acontece no dia da partida repete na volta: estamos e não estamos, a alma já a futurar. Em férias, anseio partidas, mas desgosto do retorno. Houve mesmo um tempo em que, no términus, adquiria tal força de suspiros ao longo da viagem, que até a mim arreliava a agastura (designação popular para um shake de angústia e amargura; vocábulo também utilizado no sentido de problemático, que provoca moição de cabeça).
No entanto, o domingo amanheceu-nos quase idênticas e o pequeno-almoço ainda nos reteve, por curto espaço, na esfera de passeio. Mas, logo de seguida, as malas. Um olho clínico a interrogar perdidos e o escrutínio de armários e gavetas. E a “nossa casinha”  a arejar de nós, despudorada. Mal agradecida!
Andámo-nos despedindo de ruas e praças desde o alto de um autocarro. E subimos a mirar a Sé. Não animei dentro daquela igreja alta, toda desenhada em interiores de sombra; lembrou-me leis clericais e faces crispadas em ritos de misericórdia opaca, tingidos, aqui e ali, de mesquinhez vingativa. Ali ao lado, procurámos a Casa Guerra Junqueiro que almoçava em seu segredo fechado e não nos recebeu. Recolhido na quietude dos séculos, o cónego da Sé  - doutor Domingos Barbosa -, era o anjo bom a agigantar no recanto da entrada e a guardá-la de perigos e malvadez,  com olhos  de ver Deus em todas as coisas. Apreçados do pátio exterior, pareceu-nos que os cónegos seriam pessoas de viver com desafogo. Entrou-me pena de não observar a casa a contar-lhe as partes, divisão a divisão; não lhe correr corredores cruzando alamares de porta; em suma, não lhe respirar o aroma. Contudo, o poeta não lhe pisou o chão como seu, e o nome lhe vem da boa vontade e amor filial de Isabel Guerra Junqueiro que ali lhe guardou o espólio.
                                                                                                                                           Somámos esta desventura ao Majestic fechado e a Rui Veloso a cantar nos Aliados enquanto esterifadas, espapaçávamos os restos mortais camas fora, uns bocadinhos de nada a escorrer no tapete, então, não cabemos, ora esta. Isto, depois da necessária "francesinha" no Santiago. Desconheço o motivo de chamar-lhe Francesinha, mas faz parte da ementa do turista. Porém, se falamos dos éclairs  da Quinta do Paço, o meu coração todo neles se pendura. Ó músculo desgraçado, talhado em manteiga fresca.
     E depois veio o resto da viagem. Sem história nem porque não. Sem deusas esfíngicas e belezas trespassadas. Apenas um caminho corrido. Só.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Me, Mim, Migo, na Livraria Lello

Bom. Já tinha passado à porta da Lello, feita mirone. Espreitei-a por duas ou três vezes e, achando-a demais para mim, voltei para trás. Sou descorajosa. Assaltam-me pensamentos levianos que são desculpas para não ir em frente como, não devo pisar, é só para gente muito in, vão olhar-me de lado, decerto percebem o meu congénito ar parolo. E etc. Mas desta vez fiz questão: entrei mesmo (talvez apenas por estar acompanhada e a companhia não ser tão palerma quanto eu) e percorri escadas e corredores. E senti-lhe a asfixia. Acinzentava cansada de gente, envelhecida de pele. Mal lhe pus o pé – era sábado –, um mar de gente. E ela infeliz. Podem atirar, e tu, não eras mais uma pessoa a visitá-la. Pois. Mas quem faz questão de passar só para dizer que foi, não faz falta e causa dano. Pisa a moer, a ralar o esqueleto já tão frágil da gentil Lello. As gentes (visitantes de faz de conta) são na Lello o que o excesso de uso de make up é no rosto de qualquer mulher; força de desgaste, comem-lhe as cores naturais. Passei a porta e fui invadida por aquela sensação de mau estar que me causam os magotes de gente. Logo depois, aragem de desgraça, bateu-me o desgosto da livraria ela mesma. Que eclipsou o apetite de subir-lhe a escada. 
Imediatamente à minha direita, o livreiro – penso que fosse um livreiro -  fingia que se entretinha a endireitar uns cartões e uns livros; garanto, estava tão contundido quanto eu. Pespeguei-lhe a minha simpatia. Não deu por nada, estava disfarçando de ocupado. Entretanto, observei que ninguém comprava e todos – ou quase – tiravam selfies e não selfies, puxavam da máquina a destom. Descer ou subir a escada era uma proeza de dez minutos em espera, havia sempre um clic de ficção e uma pose. Aqui. E também acoli. Pergunto-me com probidade: de que vale pôr as fotos onde todos as podem ver, se não consegui entrar no lugar fotografado, não lhe espreitei a alma, nem lhe dei tempo à sedução. Em que tristeza pegada vivemos! E o pior é que não caímos involuntários no buraco. Fizemo-lo e atirámo-nos lá para dentro. O resto não vemos, que é fundo e não nos deixa espreitar. E depois - ai Platão como tu sabias! -, pensamos que isto é que é viver. Ora bem.
Em tardes deste quilate, os livros recatam como fetos e falta-nos o recado da sua voz de silêncio. Encolhem as lombadas, cerram os dentes, que é como quem diz as folhas, e aguentam. Imóveis. Títulos desbotando negruras a cada flash. E as pessoas passam-lhes sem um viés, um soletrar de atenção. Ignorantes da maravilha que empalidecem e fazem adoecer.
Senti-me mal, pronto. Vieram-me à boca umas ânsias de sair. Mas esperei por esta e aquela pessoa. E mais a outra virada a este ângulo, a mostrar aquele candeeiro, o rendado de um tecto. E a continuidade de com e sem flash. Das poses. Dos passos. Dos olhos que não enxergam. Do excessivo e exterior. Que estraga. Corrói. Corrompe. Saí de alma a arrastar, pesada de devassa.
Acudam à Lello que ali há violência sobre um ser inocente e já enfermo. E podem crer, sei do que falo: a livraria está stressada a mais não poder. Um dia dá-lhe um abalo dos grandes, desata aos gritos e com a força dos soluços os livros caem todos das prateleiras. A pobre está a dar de si, bem lhe notei o buraco aberto no vitral do tecto e a palidez geral.
Portanto, ou lhe retiram as sanguessugas e a alimentam, ou ela morre mesmo.

Não haverá no Porto uma alma – ou uma data delas -  que acuda a esta beleza adoecida?!

Na Livraria Lello

A livraria Lello é a filigrana do Porto monumental. Basta cruzar-lhe a porta para constatar o trabalho delicado e de pormenor neste habitáculo de livros a que o neogótico dá o tom. Bordada a vários fios, impõe-se ao olhar em primores de madeira lavrada  que lhe criam dois pisos abertos  mediados, mais ou menos a meio, pela originalidade da escadaria que é, ela mesma, com sua ponte dos desejos a ligar as duas laterais superiores e seu encantatório de degraus em meia lua vermelha,  obra bem casada com candeeiros e vitrais. Ali, na rua das Carmelitas, os livros não são o trunfo. Que eles estão lá, por todo o lugar e a forrar paredes também elas recortadas em madeira fina de redondos delicados. Senhores livreiros, peço desculpa, os livros merecem esse templo de bom gosto e nada há que melhor lhes sirva, estão a contento. Mas dentro desses armários poderiam estar cântaros de barro, panelas de ferro, foices e outras banais ferramentas de trabalho. Que a beleza continuaria no lugar. Digna de ser vista. Meditada. Dá-la-íamos por mal empregue em objectos tão de uso, mas sobressaltava-nos a mesmíssima rara beleza. Esta atitude é o mínimo de respeito que devemos a Francisco José Esteves, engenheiro que a concebeu; e aos Lellos, irmãos proprietários que a custearam (mea culpa, elidi os demais). Em nome dos livros e dos olhos que por ela se derramaram cativos (ali passam muitos olhos fingidores, que não se apegam), muito obrigada.

Entramos e o prazer instala-se no olhar.  Ressaltam-nos as minudências em ogiva do corrimão, encimando a elegância fininha de colunas a fingir, delicadeza de ossinhos de bebé a repetir-se na ponte que curva insinuante, qual amurada de barco, e se continua em todo o piso superior. Que aquela ponte dos desejos é um inexplicável, tem balanço de gondola.  E se o tecto do rés-do-chão  – que é o avesso da escadaria e do piso superior – nos pareceu renda de bilros em trabalhada madeira, o do piso superior é a maravilha de um vitral a azular a todo o comprimento. E a divisa da livraria posta ali, em beleza luminosa, “Decus in Labore”. E ficaria eu de nariz no ar, não fora ter parado a enlanguescer na parede do fundo, tão bonitinha e preterida pelos fotógrafos de esquina. Aquela janela rasgada à rua é de uma elegância orgânica, cada elemento nasceu potência que ali deveio acto e chegou à sua natureza. Seguindo Aristóteles, atingiu a perfeição possível. Admirá-la, é recreio dos olhos.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Na Foz

Não consigo destrinçar se fiquei a conhecer a Foz. Pensava que já a tinha passeado. Porém, saídinhas de Serralves descemos para andar um pouco e curtir o ambiente na força do calor – meio da tarde talvez – e descobri que afinal o passeio pode sempre encompridar. Passámos por uma zona nova junto ao mar, bonita mesmo, a mana a apontar uma espécie de pérgula em amarelo diáfano, vês, é esta parte que a TV mostra quando falam da Foz. E eu incrédula, com olhos de primeira vez, ai sim, que engraçado, nunca reparei. E depois saímos a mirar corpos brancos como não há, deitados por todo o lugar, em praias de pedra escura, um cinzento confrangedor na linha de intervalo das toalhas. Eu a olhar aquela brancura destapada e meio impúdica, num abandono violento de sol que a tingia em rubor, e a maciez espaçosa da minha areia dourada a insinuar-se. Olhei o  mar: as ondas, meio desprevenidas da multidão, alongavam até aos seixos em exercícios que robusteciam à proximidade de cada farol (não sei se eram faróis isso que vi).
 A mana senta-se a admirar os banhistas e aproveito para ir lá à frente, ao que convenciono ser um farol. Ultrapasso os pescadores de tronco nu e a corar, fixados em linhas compridas e seu entretém de cerveja que roda de mão a mão. Avanço no vento, estamos um para o outro, eu e o mar. Tão diferente do mar que me é família! Bate contínuo no acidentado rochoso. E a toda a volta do farol, os salpicos são átomos de água em névoa. Refrescam-me. Recebem-me. Sorrio a retribuir as boas vindas. Fascino na represa de água, uma espécie de muro ampara-lhe o ímpeto rasgado e as ondas descaem menos contundentes, a pular obstáculos em lesto salto e finando-se no repleto de pessoas a banhos. Tão suja esta água. E como é triste a água de quem não almeja outra. Há garotos-acrobata a mergulhar desde as rochas, em épicos de puberdade. Uma ou outra onda que não perdeu brio quase os varre e arrasta da prancha improvisada e logo se me levantam uns ohs e ahs desgovernados que ninguém atende. Mas já eles riem a espadanar no meio da água. E volto no vento, salto linhas e carretos, venho encontrar a mana.
            Continuamos sob o calor, de novo a caminho da paragem do autocarro que funciona também como ponto de encontro. Duas mulheres beijam-se a questionar demoras e aduzindo o horário do transporte. Não vão a lugar nenhum e sentam-se a pôr conversa em dia. Há muita gente flanando, palavrão engatilhado, de enxurrada, vários por frase. Afastamo-nos um pouco, desabituadas de tais liberdades linguísticas. Já no autocarro, seguimos até Gaia onde o Porto é sempre mais bonito, posto em sua geometria de rigor comedido, ângulo sobre ângulo. Porto é cidade para ver de frente, o perfil não lhe diz a inteireza. A distância faz destas coisas, dá perspectiva, visão de conjunto. Esquece pormenores, coisas pequenas, lixos, sujidade e encardidos, humanas mesquinhices. Talvez também os homens fossem mais bonitos vistos assim, em suas linhas gerais. Mas, infinita sede, somos de pormenor, fixados em sobrancelhas e pálpebras, gestos de mãos, maneiras de cruzar ou descruzar braços, enfim, toda a espécie de tiques e manias que nos fazem o ser.
Soprava já uma brisa quando descemos de novo na Torre dos Clérigos, em demanda do Santo Graal: a Livraria Lello. Íamos andando na sua direcção e a Torre, voz rouca de fundo dos séculos: ora esta, mas agora passeiam-se-me na fronte a toda a hora; é que isto dá comichão e não pode uma pessoa coçar-se que ninguém se lembrou de me dar outros braços que os ponteiros do relógio. E quando já víamos a Lello, ainda ouvimos a sua resignação suspirada, ó vida esta de ser monumento.

E entrámos noutro mundo.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

A minha Foto da Casa de Serralves

Aprecio casas vazias. Habitadas, enchem-se de sinais extra e atafulham de objectos que, quase sempre, lhes disfarçam o ser. Crivamo-las de humanidade excedentária. Por vezes, alaga-me a triste sensação de exceder algumas divisões das casas se me expandir. Imagino-me em preguiça horizontal e logo os cabelos a escorrerem das janelas, pés no corredor desde a canela, uma parafernália de objectos amolgados a gemer, safa, quando é que este peso nos sai de cima. Porque nós entramos de um tamanho e lá dentro podemos – ou não – crescer. Há casas que me comprimem, onde o meu estar se resume ao esforço de acatitar células, os braços um para o outro, não estiques, fica quietinho.
            Ao invés, casas vazias são um mar de possibilidades e mesmo os sentimentos maiores ali se desatam levemente. Não sei por que penso assim, se os sentimentos moram nas pessoas e ninguém prefere viver em casas despidas. Tão pouco eu. Mas é verdade que penso. Tal idiossincrasia pessoal bastaria para me agradar a Casa de Serralves. Mas há mais. Deambulámos parque fora à hora da calma, por carreiros breves  e alamedas frescas, a luz coada por um véu verdurengo. Uma imensa clareira e nós de olhos obtusos a rasar a inesperada e exacta geometria do jardim que se repete em vastidão, perdendo-se em fundo arbóreo. Perscrutamos o horizonte e fica-nos a ilusão de que, no para lá do que a vista alcança, se prolonga a floresta e não há o casario e o mar. Depois viramo-nos e a casa, vestido cor-de-rosa, acena-nos. Subimos por entre figuras geométricas desenhadas a ponto-de-arbusto e relva, circundadas por caminhos de terra vermelha. Percorremos as sequências de degraus que redesenham declives idênticos e por medida, a água dos lagos amenizando repetições. É uma beleza de régua e esquadro que Jacques Gréber desenhou, posta a uso para nosso recreio. Circundamos-lhe o vestido   e entramos. Recebe-nos num abraço de frescura clara. Piso-a a reconhecer a pedra de liós que me remata janelas e é aqui de primeira água e por todo o lugar. Encanto nos desenhos do soalho de algumas salas, na pedra dos lavatórios de casa de banho; nas banheiras e roupeiros; no sistema de aquecimento; em pormenores de tecto em esquadria e numa claraboia que exalta o ambiente. Parece que o segundo proprietário leiloou a mobília considerando que o seu compromisso visava apenas a manutenção do espaço físico. Mas como é agradável assim nuazinha, com suas delicadezas femininas iluminadas e ao ar, Eva aristocrática e um tudo nada vaidosa, amplas paredes de vidro cativas do jardim. E eu refém de suas cores claras e do instante chamado de salas e salões virados à luz e ao verde. Que terá levado Carlos Cabral a quase não a habitar?!...
            Embeveci no portão artístico, que divide o espaço comum da casa do espaço reservado. Podem ser as figuras masculina e feminina; pode que haja nelas um sinuoso que me convém ao olhar; pode que a minha atenção releve este tipo de trabalhos. Seja qual for o motivo, o seu criador está de parabéns: parabéns, Lalique.
            Dizem-me que é espaço de exposições. Peço desculpa às exposições, mas acho mal-empregado. Também vi fotos de uma festa de casamento. E ainda encontrei maior desperdício de tanto donaire. Li mesmo uma notícia – talvez num blogue – com proposta adjacente: por que não tentar mobilá-la como já foi?!
            E eu que gostei dela em pelo e sem lipoaspirações, pergunto-me se será a mesma coisa, se vestida não me assusta com seus arrebiques de grandeza. Mas seria boa forma para avaliar da sua relação com Carlos Cabral… isso sim.

            Seja como for, sou sua imodesta fã. Ponto.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Casa de Serralves

Gosto  de casas. Dá-me prazer observar como respiram, concentradas em seu jeito natural. Por isso, foi quase um milagre poder desfrutar das casas Milà e  Batló, em Barcelona. Achei-as de esplêndida finura, cinzeladas a arabesco de conto de fadas, terna nuvem de desenho animado antigo, mesclada de maravilhoso. A sua natureza é o mundo de faz-de-conta que nos habita, respiram fantasia e transpiram ilusão. Contudo, são casas que cumprem, foram habitadas. Guardam desgostos e canseiras, grandes problemas e alegrias da existência, e nas  camas dormiram-lhe mulheres de elegância cetinosa e depilada, sobrancelha em arco e olhar às vezes gelado e não fadas benfazejas de asinha transparente. Os homens chegavam-lhes embrulhados em cachemira, a sobraçar pastas leves; talvez também uma bengala solene, castão engastado, a compor o quadro. E o omnipresente chauffeur perfilado, recto e servil, a conduzi-los a penates. Algures no tempo, alguém lhes chamou lar e nelas houve “nãos” retumbantes que evolaram de chaminés singulares e “sins” inaudíveis, rastilho de fogos incendiários.
Ora, na Casa de Serralves nada disto é possível. Toda a sua sugestão se expressa na arquitectura. O mesmo é dizer, não há sugestão: há linhas e formas e volumes que se conjugam na luz e seu jogo. Mais nada. E isto é real e palpável.
Se recuarmos à sua história compreendemos-lhe a emancipação. Porque é uma casa emancipada. Senão vejamos: foi herdada em 1925 pelo segundo conde de Vizela, Carlos Alberto Cabral. Era o tempo das fortunas burguesas a buscarem estatuto. Carlos Alberto, burguês afortunado e com fortuna, herdou a propriedade e a casa de sua avó. É possível que  alguma coisa na quinta lhe lembrasse as casas e a panorâmica dos jardins franceses que frequentava. Ou seria apenas o sonho da posse. Quiçá a vaidade  a misturar os dados. O certo é que pensou em modificá-la de acordo com os canônes franceses e para o efeito se rodeou de um bom arquitecto do Porto, José Marques da Silva, e de decoradores e arquitectos franceses de renome. O resultado final de acertos e composição foi feliz: uma casa leve, em art déco, ditame de moda francesa. Inédita e a assombrar o Porto. Pelo meio ficaram obras e mais obras, tentativas de acertar o edifício antigo com a parte nova em crescimento contínuo, mercê de basta correspondência com os franceses. Marcas da insatisfação do proprietário que geria o excesso opinativo dos contratados, cada um ignorando o trabalho e sugestões dos outros. Em 1935, depois de quatro anos em remodelações e acrescentos, o arquitecto francês Portneuve vem ao Porto e visita a obra. De seguida, exige  a demolição da casa original e a mudança das escadas de acesso ao piso superior. Dir-se-ia que não pactuou com o mau gosto,  contributo que foi decisivo  na unidade harmoniosa do imóvel. Portneuve tornou-a uma melodia. Talvez devido à guerra, este novo projecto só deu entrada na Câmara Municipal em 1943. Mas ela aí está, graciosa e desejada em seus tons rosados, poesia de pedra ao fundo do jardim.
Em 1925, o proprietário tinha trinta anos. Portanto, a construção da casa durou cerca de duas décadas. Ora, não há caprichos tão longos e muito menos na maturidade. A Casa de Serralves foi antes um objectivo porfiado. Enquanto a gente comum sonha educar os filhos, dar-lhes um curso, Carlos Alberto Cabral, casado e sem descendência, sonhou uma casa “último grito” e, como qualquer pai, vigiou-a nos mais ínfimos pormenores da modernidade. Uma obra para o futuro. Com o seu aval. Como e quanto a gostou não podemos saber.  Sabemos que preferiu vendê-la a quem a conservasse  inalterada – condição para efectuar a venda -, a deixá-la a sobrinhos perdulários. Pai que acautela o futuro dos filhos não faria melhor.

Tanto cuidado com a casa e tão pouco nela viveu! Será que chegou a ser um lar?!

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Descobertas

      A noite que tudo envolve cinge-nos por vezes à sequência estagnada das horas, o pensamento a assistir-lhe, lúcido e meio morto. Porém, a dada altura, o relógio como que sincroniza a desejo, a roda do tempo desemperra e as horas deslizam. 
      A contragosto da cerração de cortinados, a janela desenhava um quadrado de vaga claridade quando  o relógio me  fez a vontade e deixou entrar as sete. Saí pé ante pé, a mana ainda adormecida. Na sala de refeições, sentei-me habitual, a entremear alimento do espírito e do corpo, enquanto as meninas de serviço, uma elegância que só visto, me tiravam pratos atrás de pratos, num vaivém que cansava só de olhar. Mal me levantava a ir buscar um pãozinho, um doce, uma fruta, mais leite, mais café…lá me voavam prato e talheres com guardanapo e tudo. Mas não sou mulher de desanimar à mesa, arrematava nova dose e fazia de conta que não era nada. Quando entendi, fui ler no terraço e espreguiçar os olhos na paisagem. 
      Pouco depois, saímos contentes de tanta hora por abrir. Havia um tempo de tudo só para nós e, à parte as peripécias com os bilhetes de metro que não validámos, e eu ter embicado direitinha a um fiscal que por acaso até nos ensinou e não multou nem nada, o dia valeu a pena. Ele para mim, tem que validar o cartão na entrada do metro. E eu em estúpido solilóquio, mas a carruagem não tinha nada por fora onde validar isto…. Insisti, tem a certeza que é lá fora, é que não vi nada quando entrei. E a pedir testemunho à minha mana, tu viste. Ela a acabar com o quid pro quo, não vi, mas também não procurámos, deve lá estar. E eu desejando sair para olhar a carruagem com mais atenção. Mas quando na gare, não havia nada junto às portas (o senhor assegurara, “à entrada”) e desanimei para o lado, mas afinal onde é que isso está. E a mana toda dextra, sem me avaliar a extensão da venda, vamos ver lá em cima, ele disse na entrada. Eu para dentro, bolas, que parva. E assim chegámos à claridade dos Aliados onde, finalmente, andei num autocarro panorâmico indicado pelo funcionário do posto de turismo. Foi bom ouvi-lo em início de conversa num inglês comercial e alinhado e, mal nós, "portuguesas", logo ali, caídinha e a rigor, a pronúncia do norte, carago. 
           Achei o máximo passear à torrina do sol, em autocarro esbraseado, os turistas a bufar, leque na mão, rosto de pimento vermelho a escorrer aflições. Fora de brisas e ares frescos. Para não perdermos o hábito, o bom Deus brindou-nos com a continuidade climática. E nós duas a ganhar bronze de camionista. Fomos até Serralves que a mana conheceu e eu a afogar saudades em pázadas de verde. Não sei dizer quanto gosto daquela alameda de árvores, sombra de abraços copados. Já vi muita árvore e mais bonitas que aquelas, mas é a elas que prefiro, arreigada na sensação de já ter por ali andado que tempos a gostá-las. Só pode ter acontecido noutra encarnação, porque no inteiro desta vida perfiz quatro visitas. Quem sabe fui jardineira ou varredora de folhas mortas para aqueles lados. Desta vez, apenas assomei à Casa de Chá para mostrá-la, mas as glicínias, sem um assomo de flor, trepavam muito recolhidas em seu verde circunspecto. Pareciam penitentes guardadas em recato trepador; e, do meio do calor e da luz a entornar na clareira, pensei em igrejas frescas e escuras confissões.
Contudo, a surpresa mais agradável veio da Casa de Serralves onde entrei pela primeira vez, a atravessar-lhe a história de raspão. É só uma casa vazia, dirão. Mas muito interessante, acrescento. Li depois que o proprietário, Carlos Alberto Cabral, a herdou e que a traça era diversa. Dei uma olhadela à casa primitiva e tinha outro ser, era menos mundana e decerto não servia os mesmos intentos. Que ele a foi melhorando, fazendo-desmanchando, fazendo-desmanchando, fazendo-desmanchando, ao longo do tempo, é história indiscutível. Que essa transfiguração, apesar do empenho sustentado do arquitecto português José Marques da Silva a assegurar-lhe a uniformidade dentro da mudança e decerto acudindo a muito capricho, passou por decoradores e arquitectos franceses de renome, também é factual.
Só podia ser endinheirado, aquele senhor sortudo e gastador. Quis no exterior um parente anão dos jardins franceses. E está lá. Podem desdenhar, ah é um arremedo, e assim e assado. Não me interessa nada. É lindo e pronto. E visto daquela sala ampla, toda vidro de janela, no cenário de árvores a misturar verdes, a sua geometria intensifica. E eu patética (de quatro; sim, de patas, isso mesmo), a olhá-lo. Tenho porém de reconhecer, esta casa deixa-me um bocadinho de mal comigo que embirro solenemente com gente que anda por aí a copiar as magnitudes parisienses só para armar em importante. Bem que penso isto, mas não é que gosto dela na mesma?! Que martírio, não ser convencida pelos factos. Dizem-me, é novo riquismo, é kitsh e tal. E eu mudo-me de armas e bagagens para a crença e peremptória, NÃO A-CRE-DITO.

Portanto, quem quiser factos vai a Serralves e visita a Casa. Conta-lhe as banheiras e os espelhos, as colunas e o mais. Depois, avalia isso em euros e faz uma estimativa assisada. Por mim, tudo bem. Que, desobrigada de tais apetrechos, vou passear-me por ela – ou pela memória que deixou - como me aprouver. 

sexta-feira, 10 de julho de 2015

D. Maria de Jesus Barroso

Bem sei que já toda a gente lhe escreveu. Que recebeu uma quantidade assinalável de elogios merecidos. Que lhe reconheceram, publicamente e sem mentir, as maiores qualidades. Que, de figuras públicas a meros figurantes, todo cão e gato lhe desenhou um enfeite. Em alguns foi mais rebuscado, noutros mais modesto, muitos a falar-nos ao coração. O certo é que a senhora acolchoou em carinho português. Tem que concordar, para um povo que não escreve, foram bastos textos. Mérito seu, portanto.
E agora que já arruma a correspondência, chego eu. Mas é que…bom, li textos de amigos e familiares, de poetas e jornalistas, de antigos alunos, de governantes e ex governantes. Peço imensa desculpa, mas falta o meu. É possível que alguém tenha escrito do mesmo lugar – a bancada do povo comporta muita gente – mas não terá iguais lembranças.   
É inegável que a senhora, Dona Maria de Jesus, fez bem a muita gente e de muito modo, a sua humanidade foi sempre do melhor quilate. Quero apenas expor a parte que me tocou. Cumpre-me esclarecer que só nos dissemos boa tarde duas ou três vezes por semana ao longo de dois anos. Não sei já como se chama a rua do Colégio Moderno, mas era ali que eu a ultrapassava, a senhora saindo de sua casa e em visita ao colégio e eu numa pressa esgalgada para as aulas. E não foi aquele cumprimento banal de olha desolha e boa tarde, que me cativou. Foi o seu jeitinho singelo de portuguesa comum, vestida de escuro, sapatos vulgares; nas tardes mais crespas, o tricotado de um xailinho a agasalhar. Usava o cabelo preso com ganchos baratos – na altura chamávamos-lhe molas - puxado logo acima das orelhas. A primeira vez que a ultrapassei – nessa época as aulas da Faculdade de Letras começavam em Novembro - colei ao penteado enquanto a senhora, sem identidade, uma mão a ajustar o xaile ao corpo, entrava num portão  de onde saiam muitas vozes infantis e, de relance, vi bibes e pernas e pés que correram a rodeá-la. E eu que antes vinha em modo papa-léguas, estaquei a olhar para trás. Mas já só estava o portão. E eu varada de surpresa e recordação. Quanto tempo sem ver alguém pentear-se assim… e logo as tuas mãos emergiram a segurar cabelo e pente, a desembaraçá-lo mecha a mecha, e depois a retirar a mola que prendias na boca ou descansava sobre a mesinha, a abri-la e atravessá-la com mestria no cabelo que assim te descobria a cara. A sério que me subiu uma vontade de ir bater no portão fechado e lhe agradecer, D. Maria de Jesus. Mas logo caí em mim e no ridículo de ser uma desconhecida fixada em duas molas de cabelo. Depois, gastava o caminho a desejar encontrá-la e ao seu penteado de risca ao lado e molas compridas agarrando cabelos, tão igual às mulheres da minha aldeia no dia do avio. Entretanto, aprendi os dias em que nos cumpimentávamos e aqueles em que não. Não imagina o bem que me vinha de olhá-la. Pensava-a uma avó que ia buscar os netos, e, como nunca a vi sair, a hipótese sustentou-se.
Já o ano escolar iria a meio, quando, por falta de um professor, parte da turma desce para o Borges a beber cerveja. No fim de tarde a amarelar, cruzámo-nos consigo. Deu-me a boa tarde de sempre e olhou-me com os olhos bons que são seus, desta vez frontais, no meio sorriso do reconhecimento. Antes que eu pensasse, o que é que esta senhora anda aqui a fazer, um colega a meia voz, é a mulher do Mário Soares, vai para o Colégio Moderno que é deles. Bom. Só então entendi que o tal portão era parte de um colégio. E fiquei a admirá-la de coração, pela simplicidade afável da figura.
Antes de terminar: acho muito bem que reinvindique o seu lugar ao lado do doutor Mário Soares. Na Terra, ou onde for. Atrás de um grande homem?!!! Ora essa. Apoio-a a 100%. Quero ainda agradecer a sua voz a quebrar quando falou da netinha de oito anos, “A avozinha vai ficar sempre no meu coração”. Garanto, não ficou só no coração da garota.
Por fim, o interesse da jornalista, de que tem saudade. E a senhora, olhos brilhantes e voz levíssima, da minha família, os meus pais, os meus irmãos.. nós éramos muito unidos. Como eu a entendo D. Maria de Jesus! Quem sabe eles não se comoveram também….  
D. Maria de Jesus Barroso, a senhora é uma esteta, fez a sua vida tão bonita!

Um beijinho e Muito Obrigada

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Intervalo na História da Viagem ao Porto

As manhãs são o meu leit motiv, a beleza do meu quotidiano. Desafogo na claridade que devém luz, nas casas a acordar pelo lado de dentro, o exterior da cal em semi morte, ainda pasmado no sono. E depois há todos os sons que as anunciam, chinelos a bocejar pela casa, torneiras imunes à preguiça, lestos chuveiros. Lá fora, pássaros apressados a sair do ninho como se precisem ir para a fila no Centro de Saúde quando o mais certo é pousarem em árvore próxima ou numa parede de trepadeira, a saudar o sol. Pela manhã, qualquer lugar tem sua panóplia de cheiros com horário; se clareia, sobreposto à dormência dos cheiros animais a que falta calor difusivo, reina o cheiro natural dos lugares, a terra e asfalto, ou à relva regada de véspera. São ainda cheiros frescos, o próprio asfalto emana um odor suave. Mas o sol traz odores com sabor dentro, enquanto o asfalto se enche de vapores  de gasóleo apressado, nas cozinhas cheira a pão torrado e a café; e há uns laivos que perpassam, restos de banho que vão e voltam, frescura de unguentos de lavagem que se misturam ao cheiro de cabelo molhado e corpo a colar na roupa. 
Dependendo do amor que temos às matinas, há a pressa ou o vagar. E porque todo o novo dia me é caro, sou nelas vagarosa. Como compete à linguagem do prazer. Amo o verão descalço nos meus pés, e haver neles o refresco do granito. Corto o pão a lembrar-me de outros tempos, num quotidiano que, quem sabe, recrio diária e solene. Memória de nós duas acordadas  na casa com cheiro a cama. Nós duas e um ritual com lume de chão:  espetavas a fatia de pão com um garfo, afastavas a cinza e punha-la a corar de um lado e depois do outro. Entretanto, ias batendo uma gemada que misturavas na cevada que assentara na chaleira de barro desviada do lume, tu a resmungar porque ela se babava e um rego de café escorrendo lento, numa hesitação repetida até à cinza, a fervê-la brevemente, fcheeee. Eu olhava-o vaga, empenhada em decorar nomes. Por fim, barravas a torrada e servias-me o pequeno-almoço, enquanto eu estudava história e ia mastigando, entretida a ler pormenores que não saiam em teste mas tanto me chamavam das suas letrinhas pequenas, em notas de rodapé onde, uma vez por outra, alastravam nódoas engorduradas. Desse formigueiro de palavras a que colegas e professoras não faziam caso, ficaram-me nomes como, os ilotas, hábitos bons de Dario rei dos Persas, a Mesopotâmia de nome atractivo, a lei de Talião que aprendia com estupor, os cartagineses povo comerciante e para mim idêntico ao merceeiro da aldeia, lápis atrás da orelha, que, para se distrair de perigos marítimos e riqueza acumulada (para mim comércio era sinal de boa fortuna) tinha parado a ensinar-nos a numeração e as contas. E os hunos, maus como as cobras e porcos em demasia, que deitavam sobre a sela os bifes que iriam comer crus e moídos após a viagem (devo ter lido isto nas tais notas de rodapé, o certo é que, ainda hoje não os suporto; deviam ser bastante javardos, cheirar só a sangue azedo e andar sujos até dizer chega. Ainda por cima, cultivavam o hábito de decapitar gente a torto e a direito). Espero não me cruzar com o descendente de um huno, ou serei obrigada a mudar de passeio. Quando te contava estas raridades, não comentavas, nunca saberei se acreditaste em alguma. Para mim, eram verdades seguras. Que não se duvida do que vem nos livros.
            Com tais memórias, como é que posso dormir uma manhã na cama? Não posso. Não sei como é. Não consigo. No Porto ou em qualquer lugar, levanto-me cedo. Estou à coca do relógio, aguardo as sete. Incrivelmente, mesas cheias de iguarias e ainda nada me soube como a margarina nas tuas torradas com travo de fumo. Mas todos os dias experimento. Será por me faltarem os livros de história e mais o que contavam sobre os ilotas e os penates que eram deuses caseiros, coisa que não entendi nos romanos, tão espertos tão espertos e tinham deuses que não saiam à rua.

            Achas tu que eu devia estudar história de novo…hummm 

quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Cerda de que Somos Feitos

O homem põe e Deus dispõe. Ainda que não seja bem assim, as expectativas que goram deixam um amargo que não desfaz com caramelos. Na Casa da Música não aconteceu o que esperávamos: o concerto para violino de um qualquer autor polaco feriu-nos (me) os tímpanos. A spalla da orquestra a despedir-se dela com a interpretação como solista num concerto difícil e exigente, originário do seu país. A opção pareceu-me bem. Mas os violinos têm aquela particularidade de me bulir com os nervos se encarniçam. E o concerto foi feroz: em crescendo, um frenesim enlouquecido do arco sobre as cordas que fez com que ela e o spalla substituto – ocupava o seu lugar na orquestra – a dada altura, tivessem de aparar as cerdas desprendidas do arco (não consegui evitar a comparação com a situação em que a espada se parte na luta). Sou uma desentendida musical, mas parece-me que a dificuldade da peça – admito que também o seu ser, já reparei que os povos de leste criam música que raia as vibrantes noites de trovoada e primam por um aparato sonoro sem insinuações, estridência quase dolorosa – terá levado a mestria a suplantar a sensibilidade musical. Ora, já me foi dado escutar solos de violino divinais. Bom. A senhora, muito ovacionada, saiu banhada em flores.  O reconhecimento  foi bonito, a dignificar público, artista e orquestra. União de plausível última vez. A coincidência  agradou-me. Manda a verdade que se diga, nos concertos a que antes assisti, jamais alguém se acercara dos executantes a oferecer flores. Mas é merecido gesto a quem nos levou tão longe e sem peso, usando essa mistura de tempo, esforço e génio que é a arte.
E afinal nem gostei assim tanto da sala, nem entendi o propósito de uma primeira fila quase siamesa com o palco. Nós, na terceira correnteza de lugares, ficámos um bocadinho incomodadas de pescoço (é claro que a confiança da mana em mim levou a que nos sentássemos em lugares errados, mas pronto, ninguém reclamou). Dizia uma portuense expedita e da casa, “as melhores filas são a G e H”. Guardámos o conselho na gaveta do “a haver” e sorrimos à sua simpatia; foi ela que nos informou do adeus da spalla e nos fez breve resenha da sua vida pessoal e profissional (as cidades são aldeias maiores).
A primeira surpresa adveio do comportamento informal dos músicos. Chegámos cedo e vários se encontravam já sentados, a conversar e a rir. Habituada a um ritual de entrada conjunta e silenciosa, um estar sentado muito direito com conversas apenas sussurradas e essenciais, olhos de preocupação quase terna com o instrumento que tocam, pareceu-me aquilo um despudor, transparência perniciosa. Podem pensar, e que é que tem que entre cada um a seu gosto e de sua vez, é mais democrático assim. Respondo, é uma questão estética. Há uma mise em scène que falha na Casa da Música e que é necessária no apontar da raridade. Os sentimentos que a música provoca são solenes. Como a religião, ela abre dentro de nós, em cada vez, um tempo novo e originário. Ora o espírito tem de preparar-se para esta irrupção ou corre o risco de não haver transcendência e se banalizar o momento. E não há melhor preparação que esse acto de respeito com raiz dentro da orquestra e transmissível ao público. A Casa da Música ignora o princípio do élan. Ponto.
Saímos um pouco defraudadas. Para colmatar lacunas, a mana ofereceu-me um gelado e aproveitei para fazer olhinhos a uns éclairs com ar boníssimo, colando a promessa de não me escaparem no dia seguinte.

Voltámos à “nossa casinha” género dominó, decoração muito suprassumo e a que não ligámos meia. E lancei-me a mastigar encores antes de. Lá fora, no longe adivinhado, o mar chamava-nos do meio da escuridão. Mas, se não estivéssemos no décimo segundo andar, divisávamos apenas os prédios na nossa frente. Oh, prosaica e incansável  realidade!

terça-feira, 7 de julho de 2015

Damas e Alfinetes

As alcatifas dos hotéis guardam histórias de passos no meio das fibras. Rente ao chão, acamadas com o pó residual, as hesitações de pés e a secura displicente de couros de nariz empinado emparelham com o aflorar de dedos mínimos a ziguezaguear fora das sandálias em infância retardada, os pés a estacar numa admiração, fora da sua disposição natural, ora esta, e eu a pensar que passava dos trinta...  Prejuízo de asmáticos, as alcatifas recobrem chão tão probabilístico como o das pontes, que a indústria hoteleira gosta que nos deitemos armados no ar. Sob elas, bem agasalhadas no sintético do seu calor, cordas e cordas de pó em vinco escuro, bolas de cotão com séculos de existência. Contudo, é inegável que confortam pés e tornam leves os passos de corredor: retiram-lhes o tom, expurgam-nos de si, abafam-nos de todo; nelas, até o salto agulha soa a sapatilha de bailarina e qualquer ouvido apurado lhe escuta os lamentos sob a impiedade perfurante, socorro, estão-me pisando os cabelos, ai, ai, ai – e no gesto peculiar de compor-se, fibras dolorosas endireitando a poder de esforço -,  logo eu que sou tão arrepeladiça.  
Porém, a maioria de nós não se gasta nestes pormenores, apenas atenta em números e cartões com números – os hotéis são um mundo numérico -, de andar, de corredor, de porta do quarto, de telefone. E mais eteceteras. Quanto aos prolíficos cartões, desconfio que não sabemos viver sem eles.
Entramos no quarto como se uma gruta de Ali-Babá: às espreitadelas, a palpar camas, abrir torneiras, espiolhar o roupeiro, catrapiscar a paisagem. Não há como estes gestos simples para nos sentirmos em casa: alongamo-nos no leito (palavra mais bonita, leito)  como se ele nos soubesse curvas e contracurvas – mas não sabe e esta ignorância apadrinha muita reviravolta nocturna -  e entramos na casa de banho com a sensação única de que nos está a uso. Serve-nos (pode não parecer, mas o poder sobre as casas de banho, importa). E, hélas, não temos de a limpar. Esta certeza retumba-nos na mente e torna qualquer banho outra coisa: uma simples chuveirada devém hidromassagem. Banhamo-nos e, novinhas em folha (dentro da idade), vamos espiolhar os arredores, decidir onde jantar, antecipar receios na Casa da Música que sou bem aselha e já dei por mim numa sala de cinema a ouvir o filme sem lobrigar o écran (ainda estou para saber como é que consegui uma proeza destas). Ora, neste concerto não me convém ser pata-choca. Damos de caras com uma feira alapada na Rotunda do Bom Fim. Verdade que tínhamos viajado com uma equilibrista de circo, mas, ó bom Deus, uma feira com cheiros, pó e tudo?! Não precisávamos tanto.
Por causa das coisas, chegadas ao destino, como se fosse um labirinto grego ou mesmo egípcio, aprendemos o caminho da sala e deitámo-nos a mirar umas canecas com reprodução de azulejo português de não sei que século que tomei por pinturas de   Mondrian ou Paul Klee, no que fui sensatamente corrigida pela dama de serviço. Pensando que o nosso chá príncipe gostaria de reinar lá dentro, mas  desaguisadas com o espavento no preço da loiça, desistimos. Dissemos não. Há que saber resistir.
Depois, entrámos no Bom Sucesso com o nosso fino ar de habituées e comemos uma salganhada que metia rissóis e substituí por chamuças que também não correspondiam. E tudo isto  servido por uns portuenses imberbes e simpáticos. E para cumprir a tradição de ser mercado, comprei encores que, isso sim, eram mel. Ah! E namorei longamente os doces que encontrei de passagem.
De novo na “nossa casa”, pusemo-nos vaporosas e aproveitámos para crescer um tudo nada. E em seguida, muito compostinhas e altas, dispusemo-nos a estrear a Casa da Música na sua utilidade primeira.

domingo, 5 de julho de 2015

Quando a Mente "apanha" o Táxi

Para a maioria dos homens, o curso da vida depende do livre jogo entre vontades e acasos. Quer se ajuíze apenas acerca de vontades humanas, ou nos espraiemos por quereres sublimes e divinos tão abrangentes que mudam nome ao dito acaso. O certo é que a crença na vontade, teológica ou racional e sensível, subsiste; ora alargando, ora apertando a malha fina da liberdade. Portanto, nenhuma das teorias será universal e outras virão, a explorar até ao tutano a liberdade que temos, sinal da que nos falta. Entretanto, a vida descompadece destes humanos entreténs e vai rodando na mesma.
Ora o meu encontro com a cidade do Porto urdiu em vagar pontuado de apetites e acasos. Também de vontade de razão, vá. Porque a sedução é participar – querendo ou não -  da trama dos acontecimentos, ser fio, ponto, elo.
Sem pena nem paixão, fomos incógnitas durante mais de trinta anos. Até me ocorrer conhecê-la, talvez em breve respirar de férias ou fim-de-semana aprazado. Esse olhar originário e primeiro segurou-me à certeza de que não sermos estranhas, que tudo no Porto me soube – e ainda sabe -  a costume e uso. Uma sensação esquisita, como se o houvera habitado noutra encarnação. Salvaguardando as singularidades dessa virginal e desafectada visão, quase pura, pouco aprendi da invicta para além de um dejá vu que colou nas principais artérias e pontes. As pontes e seu sortilégio de chão que é e não é, altura a despedir sobre a fundura de água corrente; elas me precipitam no fascínio do medonho que a geometria concisa das casas a aproximar desvia mansamente. Nesse momento irrepetível, tão bonita a cidade  insinuada ao olhar, ainda isenta de relações de pertença. Ela apenas. De pé, na nossa frente. Mostra de casario impenetrável e sem brechas, que encavalita ordenado, num jeito repetido de ângulos rectos em mero aceno ao viajante. Um olhar a direito.
Observo-a hoje e, com a idade – minha e dela -, deveio um tudo-nada terna, o burilado de tempo a arredondar-lhe os ângulos. Que, no mais, não denoto exibição ou vaidade e nem se desfaz em simpatia e agrados. É como é. Sem subterfúgio ou artifício. Desconheço-a sob a chuva, fustigada de vento. Imagino-a agreste, posta em frigidez natural de arrepiar, o lado soturno abotoado de sopé a cume. E tudo isto me veio no interior do táxi, vidros descidos, o calor a corrê-lo, cabelos fugitivos em demanda do para além – a minha parva timidez em solilóquio interno, os táxis do Porto não terão ar condicionado. Enquanto a inquietude dos olhos procurava o taxímetro, a torre dos Clérigos afobada, a desprender exuberâncias de calor, saturada de turistas formiga, olhos de desânimo nas árvores ali tão perto, mas por que não hei-de eu ir até ali deitar na sombra a cabeça do relógio, que martírio esta vida no mesmo lugar, debaixo de sol ou chuva. Tanta sindicância para isto e aquilo, e ninguém a defender as pedras. E numa queixa que me perseguiu na aragem de velocidade, ai quanto me dói este ar pesado de, até cair, ser a mesma no mesmo lugar. Eu já aziaga dela e de um quarenta e cinco qualquer que tomei por preço, o quêêê…não me diga que já lhe devemos quarenta e cinco euros. O taxista, bigode bem-humorado, do meio do vendaval, ó minha senhora isso dava para irmos passear em Gaia de ponta a ponta e virmos. E eu quase tentada ao convite, o hotel que esperasse. E logo em recuo de instinto, não, não, revendo o cheiro a vinho das ruas ribeirinhas e escuras de Gaia, agoniada de caves e garrafas, e mais daquele ar de esforço imparável que ressalta  nas pedras da calçada e nos semblantes, massacre de uvas e alguns homens a alombar. Apetecia-me o hotel. Animal de hábitos, sabe-me bem revê-lo e ilude-me a simpatia comprada dos seus funcionários.
Afinal, o passeio dentro do mini ciclone não chegou a dez euros. Ora bem. E não sei porquê (mas pode ser porque tinha ligado a resmungar e um tanto alterada de voz) fizeram-nos um agrado especial e deram-nos um quarto xpto. Bué bom J.