domingo, 20 de janeiro de 2013

EQUILÍBRIOS DIFÍCEIS 4


Não acredito que a noite má conselheira. Trabalhar, ler, pensar, ficam mais fáceis no quieto escuro em que os móveis um torpor. No vagar da noite, esquecem a etiqueta – que a têm forte - e estendem braços e pernas. Espreguiçam-se. E logo as loiças lá dentro, em tremeliques argilosos, ai que me quebro, o chão esticou-se, bem senti. E nas gavetas os lençóis, enfim, respiro. E logo as fronhas a festejá-los à largura, mãozitas brancas estendidas em afagos de renda, senhor lençol! E das gavetas das toalhas chegam pontadas de guardanapo, o menino esteja quieto; arrume-se que me faz cócegas com essa dobra de bico. Mas aos poucos, também a distensão dos objetos se faz calma e o seu sono de lentidão nos atapeta o pensamento.

Quando me deitei, os vidros da janela faziam peito para os caixilhos, vejam lá se param com os esticões que ainda caímos e não se aproveita nada. Eram conversas de sono, tão de hábito que desliguei e entrei a pensar no dia seguinte. O último. Jogava tudo. E não podia perder. Quem seria capaz de me ajudar?! As minhas duas amigas, não. Uma vivia longe. Com a outra já tinha desfeito uma festa promissora - a ideia de casarmos no mesmo dia – e ela esquivava-se à minha pessoa, cativada por gente mais expedita e interessada em crescer. Passei aos primos que viviam próximo. A minha prima mais velha era uma senhora – usava sutiãs bicudos, meias de vidro e saias à godés. Nunca percebi a razão de godés, termo que só me lembrava o nome daqueles caquitos brancos onde diluíamos guache e aguarela, que em férias eram pratinhos emprestados às brincadeiras das minhas irmãs. Admirava a minha prima. De joelhos. Sem um átomo de inveja a estragar a contemplação. Extasiava na sua exuberância juvenil com não menos admiração que a chusma de rapazes que a rondava. E eu impante da sintonia com tanto alguém. Hoje, admito diferença na motivação. A minha prima Zita pintava os lábios de cor-de -rosa e depenicava as faces, tenho a cor por igual? E eu na importância de julgá-la. Mas a sacerdotiza não me ligava meia. Pior, esquecia-se que o primeiro namorado tinha sido eu a arranjar-lho. A mal agradecida. E não sabia andar de bicicleta. Portanto...

O Artur, que tinha a minha idade, não acertava comigo excepto no folclore e aos treze anos pensava que era homem; tinha um estar impaciente que não me servia. E logo o deixei para trás. Na verdade, tinha um outro primo, meu vizinho de infância, que à mínima zanga corria para casa a buscar o sacho e voltava aos gritos de, vou-te cortar as pernas, enquanto eu desabalava a correr, ó mãããeeeee!!!, superando marcas à medida que a voz dele – e o sacho -  mais próxima. A corrida terminava invariável à porta de minha casa. Julgo que se divertia bastante e que, quando eu sentia a mão a rasar-me a roupa, atrasava o passo e, de propósito, não me apanhava. À cause de cela, ainda éramos inimigos. Portanto, bani-o. Restava o meu primo mais novo, que tinha uma bicicleta e sabia andar; muito paciente. E não pensei mais. Larguei a dormir dentro da irrevogável certeza: o Jaime era o único capaz de me ensinar.

No dia seguinte, executei. Fui ter com ele e expliquei-lhe a situação que traduzida deu, tia, o Jaime pode ir almoçar com a gente? E fomos os dois. No caminho, pu-lo ao corrente do meu estado, não sou capaz de dar aos pedais e olhar para a frente. Ele teria uns dez anos. Olhou-me sem surpresa e perguntou, o que te custa mais? E eu, guiar. E logo uma solução à medida. Eu empurro e tu guias e olhas para a frente. Eu incrédula, esperança toda nova, a sério que és capaz de me empurrar? Não me cabia pôr condições, mas ainda assim arrisquei, vamos até ao meio da herdade que ali ninguém vê. E o meu primo logo que sim.

Guardo uma imensa ternura por aquele garoto asmático e cheio de eczemas que resfolegava atrás de mim sem desistir de empurrar e segurar a bicicleta enquanto eu, completamente desvairada, arremetia para todos os montes de cardos que bordejavam as veredas. Como ele se recusasse a entrar em tanto pico à molhada, largava por vezes o suporte da bicicleta e eu caia despedida. Com o penso todo de lado, a meia cheia de picos e palhas, as mãos uma lástima. Fazíamos uma pausa. Esbaforido, o Jaime sentava-se vermelho, o suor a espreitar-lhe a pele em bolhinhas pequenas. Eu, ai se a tua mãe te visse. Tens de descansar mais tempo. E, ainda assim, ele arfava contente, já te larguei um bocadinho e não deste por isso. Mas nunca acreditei. Brincadeira. E respondia-lhe, Jaime, não desistimos tá bem? Se ficares muito cansado, descansamos. Tirava a meia, endireitava o penso, o meu primo aproveitava para espreitar as feridas e soprava para dentro a fazer um barulhinho com a boca que me garantia que não eram pieguice. Então, procedia à limpeza da meia e voltava a calçá-la. Depois mostrava-lhe as bolhas das mãos e ficávamos a conferenciar sobre se devia rebentá-las ou não, tirávamos os picos maiores da mão direita um do outro, púnhamos os chapéus de novo na cabeça, lamentando não haver água para beber e, mal me sentava na bicicleta, saía da vereda e embicava num sobreiro, a roda da frente num sobressalto confrangido a recuar em zonzo ricochete, desculpe, não tinha intenção. O meu primo não comentava e, mansamente, ajudava-me  a voltar ao trilho. Mas eu resmungava comigo e quase chorava, olha para isto, não sou capaz de aprender. Apesar desta choradeira esporádica, ia cantando as canções que ele pedia e mais outras que sabia e nem eram de época; cantava o mon beau sapin e os sobreiros de boca aberta que será isto, sem entenderem patavina. E suponho que o Jaime contente, empurrar uma prima que canta francês não é igual a nada. Entretanto, aborrecida que sou, pedia-lhe a opinião para tudo Jaime, Jaime, Jaime…até que uma vez perguntei e não respondeu. Olhei para trás e ele não estava. Caí um trambolhão. Dos melhores. O Jaime apareceu a correr, aflito da asma, a entrecortar, o dedo uma autoridade, vieste… desde… lá de cima.

E depois, quais deuses, descansámos.

1 comentário:

  1. Ando por aqui a bisbilhotar e li a história de fio a pavio. Adorei!E ri-me em várias partes:)
    Não sei andar de bicicleta e já não tenho idade nem paciência para aprender, mas este relato de persistência, quase me faz ir a correr comprar uma bicicleta e aprender. A sério!!

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