quarta-feira, 1 de maio de 2013

Primeiro de Maio


Em 1975 tive o privilégio de gozar o meu Primeiro de Maio, Dia do Trabalhador, sabendo o concreto do seu significado. Houvera já um, imediatamente a seguir ao Dia Um da Nossa Liberdade, o  25 de Abril de 1974. Nesse tempo, interna numa instituição religiosa – não, não era um colégio –, pouco soube do que se passou nas ruas. A instituição funcionava num antigo convento, paredes com mais de meio metro de espessura que o ruído não atravessava, janelas muito altas e com grades. E a vida lá dentro era desligada de exterioridades políticas, sociais ou de outra natureza. Suponho que a origem do edifício e as ressonâncias do desprendido de mundo a que se votavam as monjas de outrora, inspirassem o nosso lidar intramuros. Então, eu frequentava o Magistério Primário. Mas, ao passar o descomunal pesadíssimo da porta – se, de serviço à portaria, custava-me empurrá-la -, enquanto atravessava a largueza da portaria, o meu eu atrofiava em frio e silêncio. E breve fenecia. No primeiro claustro, já eu replantada, o relógio certo com o novo meridiano. Outra. Ali, existiam “as meninas”, a que pertencia; e “as irmãs”, uma delas minha colega na turma e meu algoz em casa. Não se pense que era uma sofredora. Não. Desapercebida daquela espécie de inveja que me votava, convivemos normalmente e só há alguns anos soube das suas infundadas represálias.
Regra maestra da instituição: As meninas obedeciam; as irmãs ordenavam. E todas as horas eram cheias de tarefas, o ócio grego banido. A minha memória desse Primeiro de Maio é uma foto.
 As meninas só viam TV às tardes de fim-de-semana; ainda assim, se nos filmes acontecia um beijo, logo a irmã directora se apressava a levantar, atravessada na imagem, as garotas todas, oh!!! Pelo que, deixei de ir à sala da televisão. Como boa trabalhadora, terei passado esse provável dia em estudo e preparação do estágio.
Ora, no dia seguinte, fui à papelaria a compras e fiquei uns dez minutos embasbacada frente à montra lateral, numa foto do melhor fotógrafo da cidade. Havia uma profusão delas. Cirandei os olhos, mas aquela, em tamanho natural, era um extraordinário retrato a preto e branco. Representava um soldado com a farda de honra, completamente descomposto pela bebedeira. Estava todo entornado no papel, a arma de lado, também torta. Um cravo, enfiado no cano da arma, baloiçava na haste partida, cabeça para baixo,  súplica vermelha, quase afónica, tirem-me daqui que o sangue me sobe à cabeça. O rosto do soldado, imune a pedidos de cravos, fitava-nos desconjuntado, expressão de boçalidade etílica, a camisa fora das calças, botas sujas, um atacador a arrastar. Enchia a montra. Fiquei ali. A olhá-lo. Coração apertado. Em espanto e pena. A cogitar se ele saberia que o momento tinha sido fixado por uma objectiva e se encontrava exposto ao juízo da cidade. Intimamente, a avaliar se teria o fotógrafo o direito de fazer o que fez. Depois, um casal que parou também a olhar, viu-a de outro ângulo, o da liberdade de expressão, do aligeirar das normas, “se fosse antes do dia 25 de Abril este fulano já estava preso de certeza, ou nem teria tal atitude”. A foto tinha a data de 1 de Maio de 1974. Admito, a minha alma de clausura ficou indecisa sobre os efeitos da liberdade.
                Mas, em 75 eu gozava já de um estatuto diferente. Tacteava uma amizade que até hoje conservo, ainda que não com o mesmo ardor e intimidade, e com ela percorria ruas e praças. Na cidade, que se espreguiçava ao sol, todo o comércio encerrado. E as pessoas enchiam as ruas, a transbordar o calor que tinham dentro. Cumprimentavam-se. Desconhecidos, davam-se pequenos nadas. Em todas as praças, as canções, ditas “de intervenção”, sobrevoavam conversas de grupo e esgueiravam-se por ruas estreitas a entrar nas casas de janelas abertas e mesas postas para quem.
Muitos jovens, sentados em cacho nas escadas, rescendiam alegria e liberdade. Eles, barba e guitarra; elas, saias ciganas e longos cabelos. Todos com ar marítimo. Como se fossem búzios, conchas, cavalos-marinhos deixados em montículo na areia. Passeei a cidade inteira contente do ambiente, a invejar os rapazes e raparigas que nos degraus das igrejas estavam à conversa, como se mais nada houvera; pensei no que lhes daria essa aura descontraída de serem si mesmos e no dia livre que vivíamos todos. Ou se só a meus olhos eram assim. E ainda, se eu própria teria em quem passava o mesmo jeito de regato a ser tempo apaziguado. E nunca soube. Desconhecemos quem os outros vêem,  não sabemos quem parecemos. Com algum esforço, saberemos um pouco de quem somos. Tenho a certeza que, se me encontrasse na rua, desconhecia-me.
                E hoje, o Primeiro de Maio é nada do que foi. Que é triste o meu povo e tristes são as ruas do nosso desvelo. Desistimos do coração de Abril, deixámos talvez de treiná-lo. E está exangue. Que vândalos vilipendiaram Abril? Em que corpo de mentira ajustámos as dobras da verdade e a amarrámos?!
É urgente re-habitar Abril.

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