quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Gatil

Conhecemo-nos no ano passado, junto ao jardim, em primavera de luz clara, andava eu a abismar com a pujança da terra. Atendi-lhe aos olhos azuis que remoíam um susto, à infância do corpo, tenso e enovelado, ao inaudível da voz. E gostei dela. Assim. Em imediatez. Não a prendi dentro do meu amor senão gostando-a. Trouxe-a à partilha e juntas vivemos a companhia da casa e, tanta vez, a minha cadeira de estar. E faz-me bem olhar-lhe a calma silenciosa e confiante, os olhos profundos e herméticos a que sou descanso. Diria que somos amigas. O nosso ser conjunto repousa fora das palavras com que me visto e ela acata com olhares de, não fazem falta, deixa. Contudo, fiel ao nosso primeiro encontro, diverte-a acompanhar-me no exterior, passear. Contente, pula e salta até cansar. Ou será para minha diversão.
No Inverno, tenho gosto em ficar à camilha. E ela muda o lugar de repouso e escolhe aquela cadeira. Não gostará de lugares assépticos. Ou prefere-me o cheiro. Se acaso os sonos se me cruzam, espreguiça-se lestamente e acompanha-me o desassossego em tranquilidade, como se a noite não fosse noite e eternamente possamos usufruir desse estado meio irreal onde nos sabemos realmente. Em sua pacatez, torna normal o que julgo anomalia.  Senta-se a meu lado como quem chegou ao lugar e só desiste se me vê ir embora. Então  apruma  e segue donairosa até à nossa cadeira, erguida pela majestade elástica das patas. Pago-lhe tais desvelos como posso, acorrendo aos chamados do quintal, a afugentar medos; se adormecida, passo-lhe a mão na cabeça, velo-lhe o profundo do sono. Por vezes, mas afinal, a cadeira é tua ou dela? Não sei bem a resposta, mas tenho certeza de pensar que é nossa. Umas vezes minha, outras dela.
O chamado da natureza é assaz forte. Engravidou (descuido meu, claro). E, do fundo do olhar, foi-lhe crescendo o estranho do corpo. Passou a gravidez nessa incompreensão de si que era cansar-se mais, comer mais, engordar; notar que alguma coisa diferente. Virava-me a verticalidade perplexa dos olhos a que respondi sempre mal (e como responder melhor?).
Na véspera do parto, quase mumificou. E muito pensei naquelas duas interrogações vidradas. Depois de uns gritos tristes e sofridos, subiu para a nossa cadeira sem ceptro ou manto, numa humildade fatalista, talvez triste de mim que a não socorria; era ela e a dor sem notação. E observei-lhe a  paciência com o que é do corpo e tem caminho seu.
 Passadas horas, notei que um dos filhotes continuava ligado a ela. Uma mulher tem filhos mas pouco sabe do que se passa nas partes baixas para além da dor. Dado o desconhecimento geral sobre o caso, agarrei nela e levei-a ao veterinário. E os dois concluímos o parto. Cortado o cordão umbilical, ajudei-o a retirar a placenta. Ela olhava-me em confiança e pouco mexeu.

E agora é mãe babada de três gatitos meios lontras cegas. E eu, estupidamente desvanecida.

Sem comentários:

Enviar um comentário