sábado, 7 de junho de 2014

Aniversário e Outras Coisas

Fizeste anos. No desconchavo dos dias, o teu aniversário apetecia-me. E tudo se renovou. Um Dia do Pai paralelo. E tu, contente. Porém, a tristeza misturou-se-me com a noite. Demito-me de porquês, desisto de presságios, tenho raiva a pressentimentos, não estou nem aí para sentidos que acenam sem existência. Por isso, descansa, guardei-te contente, feliz na tua eternidade grata.
Quando os pais se ausentam, há uma solidão agoniada, a estrangular. Por vezes penso como será quando não estejas de corpo, não haja uma casa tua que foi nossa e mores definitivo no lugar que alindaste a gosto. Não sei de outro sítio que me receba, onde consiga espairecer de mim. Nós dois somos tagarelas, mas não nos perdemos em confidências mútuas, alienamos queixas disto ou daquilo, mas ainda assim fazemo-nos companhia a contar palermices. E penso em Lobo Antunes a garantir que as conversas com o irmão João são silêncios. Conversam sem lábios, pálato, dentes, língua, bochechas... Um junto do outro, comunicação das almas em proximidade neuronal, corpo do mesmo corpo, mente da mesma mente. Não é assim connosco, temos uma geração de permeio, espumantes zaragatas com decibéis insanos de travo odiento. E outros intentos. A verdade é em ti interior e secreta, os medos perpassam-te na força dos pesadelos e cresceste num mundo de trabalho. Não aprendeste o sonho acordado. Sei tão pouco de ti…e nem tu te saberás o suficiente. Não pensas nessas bagatelas.
Porém, nestas horas em que o sumo roxo das violetas me escorre lassamente, vê tu, apetece-me contar o engraçado de ti. Apetecem-me os teus involuntários: erros de gramática, hábitos que não questionaste nunca, distracções hilariantes. São antídoto caseiro contra o lado venenoso de viver, pedras de um colar de leveza. Uma espécie de amuleto que acorre ao chamado da memória. Sempre lhes resisti como pude. Talvez pudor sentimental ou respeito. Mas a memória, como tudo que em nós existe, é incerta. E, em nós dois, o efémero acelera; em qualquer mínimo momento pode devir efeméride.
Lembras-te? A luz eléctrica chegou a Bombel já eu tinha 26 anos; era professora primária há seis e frequentava o 3º ano do Curso de Filosofia. Ora, no terceiro ano de trabalho, hospedei-me em Setúbal em casa de um amigo teu. E comprei uma televisão pequena, ainda a bateria, para ter no quarto e ver as aulas do primeiro ano do curso propedêutico, na mira de a poder levar para casa, lugar onde morreu. Nas férias, carregava a televisão e a bateria  para Bombel - não me lembro como podia com aquilo tudo – e víamos televisão na cozinha pequena que eu mobilara com uma camilha e a toda a largura um sofá castanho de napa chiadora que fazia o nosso encanto, oferta de uma prima enfastiada de ruídos. Dormias cedo. Madrugavas para regar, semear, tratar das coisas da quinta. E nós poupávamos a bateria quanto podíamos porque tínhamos de a pôr a carregar na oficina do Chico – nessa noite não víamos televisão - viajando no nosso carro de mão que forrávamos com as sacas do cimento ou das batatas para não estragar o apetrecho. Numa dessas noites, televisão ligada e já sentados à espera provavelmente de um filme, a Maria Adélia deslocava a antena para eliminar a chuva do écran enquanto nós três íamos orientando, “tá pior, tá pior” ou “ parece que desse lado tá melhor, levanta mais” e outras indicações. Entretanto, de tanta mexida, havia posições em que a antena já não se sustinha de pé e caía em vôo picado com baque surdo, “ploc”. E nessa noite foi assim. A Maria Adélia estava a pôr “coisas” atrás da televisão para fazer uma muleta à dita e nós calados e atentos, ainda assim a palerma da antena não descaísse um nadinha e nos privasse de novo da nitidez da imagem. Tu já estavas no quarto. Atentos à antena e a temer que começasse o filme antes da operação terminada, ouvíamos-te despir em ruído de fundo. Sons habituais que não desmanchavam a nossa atenção primeira, o barulho das botas a despedir no chão uma a uma e tu descalço a pô-las no corredor; o ranger breve da cama, sinal de que te sentavas; o tilintar que agitava as maçanetas quando penduravas as calças  na grade. De súbito, parou tudo. A tua voz, claramente articulada, um fundo de queixa a tracejá-la “eh, poças! este sutiã tá-me apertado.”
Esquecemos as orientações, o filme, a Maria Adélia parou a operação e a antena caiu de imediato e nós quatro em silêncio de riso, escancarados à gargalhada, olhos esbugalhados. E antes que um mar de gargalhadas nos invadisse parvamente, um de nós, “o sutiã, pai?!” e logo tu a frisar a emenda, “Oh, o sutiã! Maluqueira! As cuecas.”, e a repetir por via de dúvidas que subsistissem, “As cuecas tão apertadas”. E aí nós quatro rimos até não poder mais, chorámos de tanto rir, eu, como sempre, engasgada de tosse. Foi um alarido até tu, já deitado e com o lapso digerido, “vejam lá mas é se se calam que quero dormir.”

Voltámos à antena e ao filme. Mas toda a noite rimos. Ainda hoje. 

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