sexta-feira, 1 de setembro de 2017

História Esquisita com Beldroega

Bonito. Ali estava eu acocorada e de braço no ar. Eu e um homem que mal via contra o sol (ai os óculos, ai o chapéu). Baixei o braço. Levantei-me. Juro que ele não buliu, figura sólida e consistente. Confirmei, não era fantasma ou morto-vivo. Olhei franzidamente o rosto escurecido contra a claridade, traços sombrios e  indistintos. Usava óculos de sol, coisa que aos mortos não lembra se lhes dá para aparecer.  Puxei da minha tonalidade mais saturada, aquela que a minha avó apelidava de “desimpaciente” e respondi, não tenho lume, não fumo. Não se moveu. E eu, mau Maria, não querem lá ver que não me respeita a idade e nem o lugar? Acrescentei, procure noutro sítio. Então ele mudou de lugar e, à claridade alentejana vi-lhe o rosto. Em jeito afável, sorriso de olhos longínquos, invectivou quase doce, não me conheces, mas conheci-te mal te pus os olhos, carregavas um balde com água. E eu já a abraçá-lo numa alegria também temperada de antigo, cheia de gregas e colchetes pegadiços, Octávio!...que é feito de ti? Há quantos anos...Ele a explicar-se, vivo por aqui, se vou para o outro lado, atravesso pelo cemitério. É mais perto, não tem ninguém e despacho-me num instante. – e a escorrer troça bem humorada, aquilo do lume era a brincar, só para me reparares; há muito que não fumo.
Esqueceu a pressa. Esqueci o sol na moleirinha e a beldroega. Esquecemos o lugar. Num cemitério cheio de sol, atardámos à conversa de muito ano, pergunta aqui, recorda ali, até ao toque da sineta. Era a hora de almoço. Despedimo-nos afogueados e suarentos, com promessas de reencontro, um café, um lanche em lugar fresco, só para desdobrar assunto. Meti-lhe no no bolso o meu número de telemóvel, enfiei os apetrechos no saco, a beldroega maneta a olhar-me intempestiva, tufada de rancores. E rumou cada um para seu lado. No regresso,  ainda imersa em novidade e agradada do acaso, notei o quanto nos tínhamos perdido em memórias sem assomo de presente. Contudo, ele levara o meu contacto e tinha-me parecido contente com o encontro; havia tempo para.
Mas a vida enrola-se-nos à cintura e exige. Entrei em casa e os chamados instantes da realidade mais a vizinha que uma ambulância levou já sem vida, varreram-me o encontro feliz. Só voltei a lembrá-lo quando, à tardinha, em regurgitação de cansaços, visitei minha irmã. Estávamos à mesa – é à volta de mesa posta e redondas conversas por entre a mastigação que esmiuçamos novidades – e contávamos as pequenas bagatelas que desoprimem as mulheres. Minha irmã é prazeirosa de ouvir, conta a cores e faz de tudo uma história. Tenho certeza que aquilo que tão bem encadeia, só é bonito e alegre por ser ela a contá-lo. Domina a suprema arte da oralidade. Esguia as palavras, prolonga uns sons, encurta outros, e dá, a cada, um novo fôlego.  Porém, a mente é sinuoso ruminante; descontraída, compraz-se a trazer à consciência o que antes esqueceu. Por entre o conversedo, trouxe-me o Octávio. E, pela primeira vez, reparei na impressão agradável que me deixara. Virei-me para ela, não adivinhas quem encontrei hoje....e ela toda olhos em ponto de interrogação, quem foi. E eu, o Octávio, aquele garoto que vivia na nossa rua quando começámos os estudos, lembras-te? Ela pasma, olhos em bico que é como quem diz redondos de admiração. E torno, grande surpresa, ham, nem perguntas como está. Ela a fixar-me de mão estendida e faca paralisada a meio de uma fatia de bolo, esse Octávio não foi de certeza, o rapaz morreu vai para mais de dez anos. Eu, não pode ser, pois se o vi, dei-lhe o meu número de telemóvel e tudo. Ela séria, deixa-te dessas coisas, o rapaz morreu, então não te recordas? E não me recordava. E também tinha certeza, era ele.  Mas a faca ainda estava parada a meio do corte e disfarcei, tens razão, deve ser confusão, ele disse Octávio e lembrei-me desse, mas deve ser um colega da secundária. Não faças caso. E a faca desceu suave até ao breve estalido de bater no prato de loiça e a fatia já separada, a querer tombar. E eu para dentro, atónita até ao mais fundo de mim, que grande imbróglio.
É noite fechada. Estou em casa. Penso no Octávio. Nele. O único que conheço ou conheci, que não é nome muito usual. Bem sei com quem conversei e sobre que assuntos. Era ele inteiro, o que estudou comigo, morou na minha rua e muito livro trocámos até à sua mudança de residência e de cidade. Não há engano possível, era ele. Mas confirmei com amigos, eles ao telefone, morreu mesmo, é verdade, sim. Soube que está enterrado naquele cemitério. O mais incrível é que não me assusta a certeza de ter estado à conversa com um morto.  Contudo, não sei se volte que os sardões já me afastavam qb, entrava a arrastar os pés só para lhes dar azo à fuga.

Não pode ser, não apanhei sol a mais. Eu não o inventei. Ele levou mesmo o meu número de telemóvel, tenho meia folha da agenda rasgada a comprovar (e a beldroega maneta, que assistiu a tudo). Um dia destes, quem sabe, encontramo-nos com um refresco na frente. É um morto? Ora, a mim tanto se me dá. 

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