domingo, 21 de outubro de 2018

Bem Aventuranças


Eram as sete de uma tarde quente. E eu sabia a ondulação copada das árvores atrás do coro, o vôo dos pássaros, o recorte de azul que desmaiava na tardinha. Sabia da vida lá fora; do silêncio ruidoso de semáforos; do trânsito logo ali, em pressas de fim de semana; de gente que buscava ninho. Sabia da vida dentro de mim. Mas não havia o tempo. Não havia mais que a música a encorpar, expandir-se, encher todos os espaços até à saturação. Não havia senão acordes e vozes celestiais em doce e unívoco corpo a corpo. E decerto lá estive porque ouvi e porque sei do rosto e gestos do maestro levitando energia sobre a orquestra. Terei pensado, respirado, o sangue atravessou-me o corpo igual a sempre. Presentes na memória, só música e maestro.
O intervalo chegou ainda mal me sentara. Julguei engano. Mas já o maestro saía abafado em aplausos, adornado de “bravôs”. Voltei-me. O lugar dela, vago. Imaginei-a lá fora, a aliviar o excesso de maravilha. Ou, quem sabe, apenas o olhar distraído na vária gente.
Na segunda parte, o espectáculo retomou sem o coro. E sem ela. O seu lugar uma falha na dentição. Foi quando pensei na sorte das árvores que rodeiam a sala e ouvem tudo pelas raízes. Placidamente musicadas, entretinham-se lá atrás em iluminado ninar de folhas. E nem um pássaro. Mas a música varreu tudo de novo. Sem paisagem, vencida pela vibração, morando na entrega do maestro. E breve a plateia de pé e um maestro grato, mão sobre o coração. De novo lhe regressaram os pés, a magreza alongada das pernas, os tombados anéis de cabelo. E o lugar vazio que quase não se notava, mas eu sabia.
À saída, mesmo por detrás de mim, alguém comentava, “fantástico, viste os pés dele, parece um bailarino, dança todo o concerto”. E fiquei com pena dos meus olhos que não sei por onde se perdem. É que do maestro lembro uma transfiguração de adamastor benfazejo que não aterroriza e antes guarda o palco e lhe dá vida. Facto que, desconfio bem, não está à vista.
Entretanto, ó surpresa, no exterior, placidamente, ela sacudia um grão de pó na malinha. Depois misturou-se à multidão e deixei de vê-la. Talvez seja entediante dama. Ou exasperada solitária. Prefiro pensá-la lá fora, a desfrutar do anoitecer por entre as árvores enquanto a música, no interior, fazia casa.

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