quinta-feira, 4 de abril de 2013

Percalços de Improviso


Há pessoas a quem a pressa levanta um imediato desacato de vísceras que só empata; as que coagulam, inertes; as que atoleimam e se perdem em perguntas tolas. E mais. A minha mãe pertencia às primeiras, eu às segundas, a minha tia, banhada em sorriso e sangue frio, a nenhuma delas. Entretanto, a nossa vizinha desaparecera e o automóvel com matrícula francesa subia lentamente até ao monte. E eu numa angústia, o que é que faço? A minha tia, lógica, o que é que fazes? Vais atendê-los, filha; falas com eles. Só tu é que sabes francês. E a minha mãe em corujinha pressa a impelir-me, o calor das mãos a repassar  cuidados nas minhas costas, não podes ir assim, o vestido quase não te serve, veste outra coisa. Dei um passo e logo ouvimos bater na porta da frente. Parámos. Então, a minha tia empurrou-me para o corredor, ó filha vai assim, qual é o mal? E logo a minha mãe a abrir a porta do quarto, enervada de dedos, um leve rubor de autoridade no meio tom abafado em que a voz lhe saiu, Beatriz, veste outra roupa, o vestido não te serve; está todo desabotoado à frente. E antes que eu entrasse, a mão da minha tia a insistir-me na omoplata, uma leve pressão em direcção à porta da rua, ó filha estás boa, mais botão menos botão, deixa lá a roupa, vai mas é abrir a porta. E ficámos as três do lado de dentro, a porta a separar-nos das silhuetas no postigo, perfis selados de carta gigante. Cada uma puxava-me e empurrava em sentido contrário. Para desempatar, entrei no quarto, vesti à pressa outro vestido, a minha mãe e a minha tia eclipsaram e abri a porta.
Deparei com quatro ou cinco gigantes, todos jovens e com ar de quem viera a pé desde Braga. Soube mais tarde que tinham palmilhado cinco quilómetros por desconhecimento do espírito alentejano, que situa tudo “já ali”. Apresentámo-nos meio envergonhados, chamaram os pais que continuavam no carro e fomos para a sala. Sentaram-se à vez, que não havia cadeiras para todos. De imediato, gostei dos pais da Bernardette. E dela. A foto não dizia a doçura daquele olhar azul. Um dos irmãos era já estudante universitário e vinha acompanhado da namorada, facto que me deixou étonnée; os namoros que conhecia não tinham tal liberdade. Não esqueço os seus olhos de troça enquanto me dizia, um dedo cheio de tiques, quase a furar o papel, vous n’avez pas ça, vous n’avez pas le droit. E agitava-me um jornal em que Charles de Gaulle estava sem cuecas e a mostrar o traseiro. Pareceu-me mau gosto um presidente escarrapachar-se num jornal, a toda a página, de calças na mão; e não ardi de simpatia por quem me mostrou tal imagem como se fosse grande coisa. No meu íntimo, duvidei mesmo do juízo do presidente francês. Jamais Marcelo Caetano Ou Américo Tomaz o fariam. Só Abril de 74 me deu a hipótese de entender a foto e o jovem. E bem mereci o esgar trocista com que então me brindou ao ver que não o entendia de todo. Entretanto, o assunto esgotava-se, eles estavam visivelmente cansados e encetavam conversas em surdina que me alteravam o conforto. Para renovar o ambiente, resolvi apresentá-los a minha mãe e tia e levei-os à cozinha grande.
A boa disposição da minha tia era à prova de bala. Enquanto a mãe se limitou a beijá-los um a um, sem uma palavra e bastante enleada, a irmã começou por, com olhos inocentes de que devia ter desconfiado, me pedir que lhes perguntasse se entendiam ou falavam alguma coisa de português. À resposta de que apenas conheciam obrigado e se faz favor, tirou desforra. Cumprimentava a Bernardette e dizia com um sorriso impecável e acolhedor, sua desgraçada! Diz que vem num dia e vem no outro. Ai filha, que gorda que ela é! Não podias ter arranjado uma amiga mais magra? Beijava o universitário e, rindo para ele desvanecida, logo vi, este é que era bom para ti, bonito, magro, mas já traz a serigaita atrás, ó filha muda mas é de correspondente; se quiseres, a tia envenena a namorada. Quando beijou os dois gémeos, com ar muito inocente, a gente já cá tem pouco gaiato, vêm mais estes; ai que gordos que eles são, se caem em cima de algum dos nossos, esborracham-no. O que dá a gente de comer a esta cambada toda? E muito afável a beijar a irmã mais nova da Bernardette, mais outra? E gorda. Olha para estas pernas. Mas o engraçado foi enquanto beijava os senhores, Então mas esta gente não ouviu falar da pílula?! Ranhosos, estes é que são os culpados, filha; deviam era ser presos. E agora eu que me mate a trabalhar para eles. Ria-se para todos muito simpática e dizia-me, ó filha tu tira estes desgraçados todos da minha frente que ainda tenho de lhes dar jantar. Leva-os para bem longe que temos de ter tempo para fazer outro jantar. Senão dou uma sova a cada um e ficam jantados. Tira-me esta corja daqui. Tudo isto olhos nos olhos, em voz maviosa e no tom doce e cordato de quem assume a beleza  do crepúsculo. A minha mãe, que era um passarinho tímido, não conseguia parar de sorrir e eu custava a dar conta de mim.  Apresentava-os um a um enquanto ia ouvindo os dichotes; e de vez em quando escapava-se-me uma gargalhada pequenina que punha os franceses de orelha em pé, a olharem para os calções, para os ténis e etc., na suspeita de rirmos deles. Esta atitude acicatava  a provocadora da minha tia que mais lhes jurava pela pele, tira-me daqui estes estafermos estuporados senão ainda dou um pontapé no cu de algum que vai a rebolar até à cova. Muito educados, muito educados! Não têm vergonha de se apresentar na casa de uma pessoa com tanta gente. Nem eu que não estudei, fazia uma destas. E ainda por cima vêm um dia antes, deviam estar com medo que a gente fugisse. Mas, mal eu fervia o riso, por baixo da voz dela, a minha mãe era água calma e fresca, Beatriz… Beatriz… e creio que assim me salvou de rebentar às gargalhadas. Convidei-os para jantar e eles, mais non... mais non…beaucoup de personnes… E aceitaram contentes. Como tinha de os tirar de casa e ignorava os quilómetros palmilhados, propus-me mostrar-lhes a minha terra – que na verdade nada tem para ver. Eles, desanimadíssimos. Bem o notei. Mas até o meu pai obedecia à cunhada.
Já nós na rua, chegam os meus irmãos e os meus primos. E logo um foco de atenção.  Abandonados a si mesmos, tinham subido aos pinheiros, tirado os pinhões e como a fome apertava, partiram-nos e comeram-nos todos. E, quando a tardinha presente, resolveram voltar. Sem nada. Pareciam palhaços ou ciganos. Todos traziam uma boca preta extra a circundar a verdadeira, cheia de veios negros. A sujidade de roupa e corpo era uniforme e constante. As minhas irmãs escondiam sem sucesso as  bainhas dos vestidos deitadas abaixo de se encavalitarem nos pinheiros; e o meu primo tinha caído sobre um vaso de resina e estava uma lástima peganhenta, as mãos coladas aos braços do meu irmãozito que viajava às cavalitas, pézitos inquietos de satisfação. Vinham desgrenhados e com carumas nos cabelos. Logo rodearam os franceses de afável curiosidade  e envolveram-nos de largos sorrisos de boca dupla e dentes crivados da pele fina e alaranjada dos pinhões. Contentes das visitas até mais não poder.
Penso que os franceses nunca tinham visto um grupo assim. Era um conjunto notável. De que não me lembrei de me envergonhar senão nos primeiros segundos: os garotos estavam cómicos e tão contentes que não havia como ralhar-lhes.
O naipe francês, petrificado. Mudo e quedo. E quando eu comecei, mon frére, ma soeur, ma cousine,…. O queixo descaiu-lhes involuntário.
O que pensaria aquela gente de nós?

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