segunda-feira, 15 de abril de 2013

Bolo de Laranja



Todos temos recordações que pensamos superiores às dos outros. Muito melhores. Estamos em grupo e quase nos ofende que os nossos amigos não as oiçam embevecidos e, à mínima aberta, queiram contar as deles, tão desimportantes e comezinhas. A um canto, se comparadas. Assaltam-nos de chofre e plantam-se no imediato, pernas afastadas e mãos atrás das costas, daqui não saio daqui ninguém me tira. E vem isto a propósito de ter feito um bolo de laranja. E de cada vez que assim, logo por dentro de mim se passeiam dias de sol intenso. Sou invadida por uma luminosidade que queima e vejo-me de chapéu de palha atrás da minha mãe. Vamos à nossa terra. Gosto bastante daquele terreno, ainda cheio de mato e sobreiros, onde a minha mãe diz que faremos uma casa com chaminé. E mal acredito que seja nosso. Vivemos em duas divisões de aperto, os desmedidos da chuva a respingar em telha vã, gelados no inverno e amodorrados de Verão.
Saltito atrás dela, contente daqueles passos, a minha mãe, está sossegada, ainda cais com esses pulos. E para mim é uma dança jubilosa e não saltos desajeitados. Penso que a minha mãe segue à frente e só por isso chama “pulos”. Respondo-lhe que vou a saltitar até à nossa terra para treinar (no dia seguinte hei-de gabar às minhas amigas a distância percorrida; enem por sonhos me ocorre aldrabar) e continuo o movimento enquanto pergunto mil coisas, a olhar para tudo que na hora de calor tenha a coragem de se agitar. De repente, esqueço-me de saltitar e corro atrás dos alfaiates azuis, os meus preferidos. A minha mãe chama-me quando deixa de sentir-me os passos.
 Volto à vereda no momento em que ela atalha pelo foro do merceeiro, um dos poucos que tem um hortelão a cuidá-lo. Nenhum garoto se atreve a passar ali. Estaco. A minha mãe apercebe-se e vai buscar-me pela mão, anda, vens com a mãe, não há problema. Obedeço reticente, os pés a fazerem força no chão, não queremos andarestamos com medo; as minhas pernas retesadas, numa dobra difícil de passos, voltemos para trás; os meus ouvidos mórbidos e exacerbantes, ouvindo latir por todo o lado. Corre que o hortelão é mau, vai atrás de qualquer criança que se atreva a pôr um pé na quinta. Bate-lhe, faz queixa aos pais. Com tais preparos, a ninguém ocorre espreitar. Ali, não há roubos. Todos sabem que solta os cães mal sente mexida nas ervas. Invejamos os filhos do merceeiro que comem cerejas e morangos vindos do foro e levam presentes vermelhinhos à professora.
 Seguimos as duas por um carreiro desconhecido, bordado de laranjeiras. Na ponta, uma cerejeira  debruça o redondo sobre o poço onde um burro tira água de olhos vendados. Paro. Deslumbro daquilo tudo. Desde o meio da vereda, a vontade de descalçar as sandálias, atormenta-me. O suave cantar da água no tanque  chama-me os pés instantes, imagino-me com as pernas lá dentro, para cá, para lá, e quase sinto o fresco a inebriar-me a pele. Mas fico calada, atenta a este mundo velado que poucos conhecem. A água do tanque é espelho que apetece. O hortelão está ali, as mãos mergulhadas até ao cotovelo, a cumprir em braços o meu desejo de pernas. Tira os braços muito depressa e admira-se de nós. A mente dele, serão miragem? E logo reconhece a minha mãe a cumprimentá-lo, querem alguma coisa? E ela, está muito calor e por aqui é mais perto para a nossa terra. Ele, vão lá, vão lá…sigam sempre por essa regueira abaixo.A minha mãe, muito obrigada senhor Francisco. E tomamos caminho. É um caminho fresco e recto, dos lados há hortaliças plantadas e regadas há pouco, cheira a terra molhada e já quente. Avanço pela regueira sem um desvio. A poucos metros, uma carreira de laranjeiras tem a caldeira solada. A minha mãe afasta-se do caminho e diz-me, continua em frente e não olhes para trás, a mãe tem de ir ali fazer uma coisa. Obedeço-lhe e continuo. Ela volta rápido e, no final da regueira, espera-nos um esbraseado que entontece.
            Apetece-me voltar para a sombra. Mas a minha mãe já à frente, a saca das ervas debaixo do braço, despacha-te, temos muito que fazer. Arrasto-me, esquecida de saltitar. E, quando chegamos ao terreno, a minha mãe passa-me a saca e vai sachar os milhos. No hábito do calor, divirto-me por ali a apanhar ervas e ver pequenos insectos, encho a saca e começo a arrancar matos. De repente, chega-me uma sede irrevogável. A minha mãe continua a trabalhar, o rosto meio vermelho, pequenas gotas de suor sobre a testa. Não temos água. Resmungo. Ela cerce, vai para a sombra daquele sobreiro e vê o que está na saca, a mãe já lá vai ter. Fui a correr, no desejo de uma garrafa de água. E lá no fundo, duas laranjas enormes, de cor viva, gritam “come, dá-me dentadas, tenho muito sumo”.  Mas fico especada, a olhá-las incrédula. Não lhes toco. Quando a minha mãe chega, mãe estão aqui duas laranjas… E ela, pois estão, apanhei-as quando passámos no pomar. E começa a descascar uma. E eu, mas isso não é roubar? As laranjeiras não são nossas… A minha mãe parte a laranja em duas e, sumo a escorrer-lhe por entre os dedos, oferece-me metade, prova tem ar de ser docinha. Agarro a metade em dedos moralistas, mãe, não é pecado? A minha mãe a mastigar dois gomos, Não filha, pecado é estar aquele chão solado de laranja e nós não termos uma para comer. Havemos de ter muitas laranjeiras e dar laranjas a toda a gente que precise. E logo eu me entusiasmo, ó mãe é tão boa esta laranja! E se nós à volta para lá levássemos mais umas? Então ela põe o seu rosto sério, eu não as apanhei para mim. Apanhei-as para ti; e não há pecado nisso, Deus não é mau. Mas, se eu lá vou, de propósito, tirar laranjas, roubo sim. E nunca me dês esse desgosto, filha. Se Deus quiser, tudo há-de mudar. Mas, se um dia tivermos que tirar alguma coisa a alguém é a mãe que tira. Promete. Prometo. E comemos as duas a outra laranja.
            É já  tardinha,  as duas sacas estão cheias de erva, já cantei tudo o que sei incluindo os cânticos da igreja que nunca excluo do reportório. A mãe está moída de trabalho. Trazemos os borregos que estavam na pastagem e, cada uma com sua saca à cabeça, regressamos. No caminho, deixo cair a minha várias vezes o que obriga a minha mãe a parar, amarrar os borregos, a equilibrar-ma de novo e depois ajudar-se a si mesma a subir a sua. Estas viagens divertem-me; e apesar de lhe atrasar o percurso, creio que a minha inépcia a chocar nos pinheiros, nela, ou até em puro desequilíbrio, a desanuvia.
            Chegamos a casa. A minha mãe anuncia, vou fazer um bolo de laranja. Eu, varada, não temos laranjas. E ela, quem é que te disse? E tira mais duas iguais às outras. E eu num misto de alegria e tristeza, mãe… Ela já a untar a forma, tu gostas tanto deste bolo e nunca o posso fazer…apanhei quatro; escondi estas senão com a sede eramos capazes de as comer. Então, abraço-a com muita força e repito sem originalidade, gosto tanto de si, mãe. E ajudo-a como posso, raspo a casca da laranja, bato as claras e ela faz o sumo porque tem mais jeito e não podemos desperdiçar o néctar precioso. No fim, dá-me a comer o que sobra das laranjas.  Mesmo sem sumo, eram laranjas. Deliciosas.
            E que melhor sabor podem ter os meus bolos de laranja?

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