quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Setúbal

Setúbal tem a patine das cidades que envelhecem. Os anos e o pouco trato despiram-na de estolas e glamour, impediram-lhe luzes de festa. Perdeu a coqueterie dos enfeites e pouco nela lembra o êxtase dos tempos em que ressurgiu em juventude esfusiante, sentada em seu dossel de mar e serra. Pronta para sair em donaire e passeio pela Luísa Toddy, com seus recantos de habittués, onde o batom e a laca de damas friorentas pontuavam com estudantes e intelectuais em mesas de obrigação, sem mistura. O leve debicar delas, a bordejar vermelhos nas chávenas, alternava com as espartanas bicas deles e o longo cruzar da ganga em pernas de invasão. À proximidade, os poros arrepiavam por detrás da transparência das meias, em veemências de desejo, deixarmo-nos tocar pelo nervoso da tíbia. E as damas escandalizadas por fora, a desviar-lhes a rota, que é isso, são comunistas, não têm maneiras. E saiam-lhes conversas baixas achegadas às golas do casaco, enquanto as pernas um desvio, a cruzar o lado inverso, a saia a subir um nadinha sem que uma mão, o ínfimo de um gesto, a descê-la. Mas os olhos. Os olhos que eram farpas,  aquela fina ainda não tirou os olhos desta mesa. Devemos ser um grande filme, é todos os dias o mesmo. E as namoradas de longos cabelos e cara lavada viravam-se nas cadeiras e olhavam a sua serenidade de senhoras bem-postas, mulheres de médicos, empresários, gente que tinha de seu. E rápido desistiam. Era outro mundo, paralelo ao das pequenas Evas proletárias, sem tinta ou creme.
Na aragem do dia, a luz clara do Outono adoçava a cidade, tornava-a familiar e saudosa, ensimesmada em seus vagares quotidianos. Setúbal entorpeceu, pensou. Há um desânimo que lhe corre pelas ruas, um cheiro de velhice conformada que emana dos canteiros de flores, uma tristeza vivaz no corpo das gentes. Deu mais uns passos, hesitou em tomar a rua do Central. Que povo o preenchia agora? Haveria ainda em Setúbal o apego familiar aos cafés, as mesas cativas de grupos, que se procuravam da entrada a ver quem já tinha chegado. Quantos encontros combinados ali, comícios e estratégias discutidos à exaustão, a Prazeres impaciente a bater os protectores das botas caneleiras no lajedo do chão até que o Abílio, é pá, cala-te com isso, está-me a entrar o barulho na mona, ainda sonho com soldados atrás de mim. Onde andaria essa quase menina que o esperava meio adormecida, a aguentar a nuvem de tabaco e todos os sonhos de revolução que tinham na cabeça; que saía para o nevoeiro a enterrar a boina basca e, queres vir lá a casa? E ele quase sempre a segui-la, na antevisão do barulho dos protectores se ajoelhava no ritual de lhe retirar as botas, embevecido nos pezitos minúsculos, a beijar tornozelos miúdos enquanto uns soquetes de criança eram afastados mansamente. E dos mistérios do amor surgia um si mesmo terno e desconhecido e uma Prazeres inédita.
Animado de recordações, o corpo alongou-se em decisão, reivindicou, "vou visitá-lo. Quero ver o ambiente que tem agora, o que lhe fez o tempo". E meteu rua abaixo até ao Central, a contar as lojas que sobreviviam. Mas a rua desintegrara. No lugar da enorme drogaria, a mais conhecida da cidade e com um ror de empregados, onde havia tudo para que as outras não tinham resposta, impava um pronto-a-vestir barato, e lufadas de gente num entra e sai, mais a  fazer contas à vida que a comprar; à porta, uma carrinha  descarregava manufacturas em pressas de tempo é dinheiro. E, sem querer, olhando uma das montras, o brilho tricotado de uma blusa verde alface por quinze euros esmagou-o. Por detrás dela, perspectivou a quase menina que a tricotara em rapidez, um vaivém de dedinhos pequenos e ágeis no manejo das agulhas. Hipocrisia de alimentar estados de miséria maior do que se pode dizer ou magicar. Seria tailandesa, chinesa, o que fosse. Exploração. Que nojo, pensou, viverem os nossos preços baixos à borla deste submundo que engordamos.
 Mais à frente, um pronto a comer no lugar da casa de mobílias onde ele e a Prazeres iam sentar-se nos sofás em dias em que fingiam de casal interessado em compras. Andou uns metros e só o supermercado resistia às investidas do fast e do prêt-a-porter, numa concorrência de saco plástico e promoções que decerto lhe garantiram a longevidade.
A meio da rua, não resistiu e desviou a marcha. Meteu pela perpendicular onde uma noite se atrevera atrás da dama do Central. A de olhos garços. Quem sabe a vivenda ainda ali. Quem sabe, com sorte, o longo muro de grades em lança onde se encostara num repente. Atravessou a rua para o lado da vivenda, andou-a até meio e logo um sossego se sentou. Como naquela noite. As habitações lá estavam, namoradas pelas mesmas tílias que agora penduravam mais baixo, a tocá-las de manso e que de mais alto as penumbravam. E uma mão de saudade ergueu-se involuntária até ao verde das grades, os dedos sobre a friúra do ferro. A mulher materializada, os olhos sem espanto, a boca sem palavras, um abraço de enfim. O corpo sob o casaco a responder-lhe ao beijo que nunca foi capaz de lembrar-se como ou quem começou. Ele com a sensação de clausura consentida, o resto da rua excluído, a sentir nas costas o redondo dos ferros e no sexo a premência do desejo; o corpo dela a tremer, as exuberâncias ansiosas da pele a corpuscular. E depois o breve desfalecimento das pernas, o corpo a escorregar ligeirezas e a sua mão a afirmar-se-lhe na cintura, a segurá-la. Talvez que um encantamento de breves minutos. Os dedos frios sobre os seus olhos, um pedido murmurado, fecha, deixa que tos beije e a minha boca percorra o teu modo de ver mundo, que o melhor estará sempre dentro de ti. E ele obediente. Ela a esquadrinhar-lhe o rosto, lábio a lábio, em vagares que não eram de rua, a saber-lhe o gosto da pele, a demorar-se em paciências ternas sobre pálpebras e pestanas, um dedo a acompanhar-lhe a linha da sobrancelha. E nele foi subindo um prazer diferente, deu por si sem a Prazeres, a pensar, é esta. Mas quando entreabriu os olhos o portão já batia e só um vulto escuro a perder-se entre as árvores.
Andou até à vivenda. A mesma ainda. Talvez com pintura e portadas novas. Com crianças, que um baloiço e um triciclo entre os canteiros. Anos atrás, enquanto se arrumava de novo dentro do corpo, que isto do amor é de se deixar de ser quem se é, espreitara o hermetismo das janelas, a sua indiferença cerrada. E nem uma fresta de luz a esperançá-lo. Quanto tempo levara depois a ganhar a coragem de bater? Talvez uma semana a andar por ali feito vagabundo, atordoado consigo, zangado com o insólito eclipse da mulher, a repisar para si, "não pode ser, fogos que se acendem têm de apagar-se". Os carros da polícia a passarem vagarosos e o pedido de documentos, desanda rapaz que isto é propriedade privada, tudo vivendas particulares. E quando finalmente se reuniu em determinação, uma empregada entrada em anos, a arrastar chinelos, o senhor embaixador só veio passar férias, a senhora não conhecia Setúbal. Saíram na semana passada. Vou ter com eles mal esteja tudo nas malas - e num sorriso só de dentes -, eu fico sempre mais uns dias para levar a bagagem e arrumar. E ele parvo, a olhar benigno e invejoso quem podia voltar a vê-la, ser quotidiano com ela, assistir-lhe manhãs de birra ensonada, noites sem fim, dias monótonos e de festa.
Sorriu. Uma vivenda tão bonita e só lhe gostava um bocadinho de muro. E um pensamento repetido, cumulativo, a juventude é vingativa. E como se arrependera  dessa vingança de soberba egocêntrica. Não lhe quisera saber o nome. Não a procurou. Apagou-a. E ela, a despeito do casamento, de namoros, de filhos, mortes e casualidades, é de natureza contínua. Regressa.
 Inverteu a marcha. Voltou à rua do Central, a completar as decisões da memória, "tenho de ir ver o Sado. Depois do Central, só o Sado". Passou a rodoviária, ainda no seu posto, a dar por outro nome. Espreitou e um tudo nada de diferença. O mesmo cheiro repelente de dióxido de carbono à mistura com gasóleo queimado, as mesmas pessoas em pressas para onde, os mesmos transeuntes que são apenas olhantes de quem tem vida viajante. E depois, no lugar do Central, um banco de moderna instalação. E ele parado, a decepção a prender-lhe as pernas, sem a sua mesa, a imagem da Prazeres e do Abílio, sem a dama tão bonita e diferente das demais. Nada.

E foi cumprimentar o Sado.

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