quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Silvas

No campo, nem tudo é bucólico. E menos no campo português dos anos cinquenta. Ali, as crianças aprendiam o mundo que julgavam rodeado dos silvados fechados e raivosos que em sonhos lhes rasgavam a pele. O campo transpirava silvas. Extremavam propriedades, zonas de ninguém - agora que penso nisso deviam ser de alguém – repletas de silvas a desmedir, ardilosas beiras de estrada a que os cantoneiros não davam fim, veredas que se cortavam sobre a sua exuberância e só atravessadas em companhia. Eram lugares de temor nocturno onde nem os mais afoitos passavam. O entusiasmo das silvas elevava-se a sepultar nele qualquer homem e, se alguém fosse apanhado na clareira de um silvado, não havia escapatória; em veredas que esventrassem silvados, só se fazia caminho de sol; e, de cada vez que nelas se entrava, tinham que se agarrar as silvas em jeito de pinça, cuidados de mãos a domá-las, enquanto o resto do corpo tentava a travessia. Junto à estrada nacional, no fim da descida, havia "na cova dos Silvas", um silvado célebre e denso, enovelado pela noite, onde a lua nova fazia aparecer lobisomens hirsutos e só antevistos. E, a coberto do anonimato, também se roubavam carteiras. Era uma zona dramática, lúgubre. A falta de iluminação eléctrica e um canavial do outro lado da estrada rematavam a claustrofobia do lugar e propiciavam maus encontros. Passei ali algumas noites a pedalar furiosamente na minha bicicleta sem luz, fugindo às multas e aos maus encontros, sem sequer me assomar à ideia o perigo que representava a minha circulação invisível.
Nesse tempo, as crianças brincavam todas juntas, sem a distinção entre brinquedos de rapaz ou rapariga. Faziam os brinquedos e brincavam. E conversavam. As brincadeiras propriamente ditas duravam quase sempre pouco tempo porque ele se consumia na construção do brinquedo, o que já era brincar.  Daí que as conversas encompridassem. E assim se ia aprendendo a espessura do tempo. Porém, era bom dar existência a alguma coisa: carros que logo deixavam cair as rodas, assobios que à primeira apitadela se rasgavam, matrafonas de trapo mal cosido que perdiam um membro no primeiro colo.
Por vezes, passeavam livres pelo campo, a despropósito. A vê-lo, no vagar de serem crianças. Mas vê-lo era subir a pinheiros, esperar o comboio junto à via férrea a que chamavam “a linha”, comer amoras, apanhar flores para enfiar nas linhas de alinhavar que as avós condescendiam em dar-lhes para fazer colares. E a noite surpreendia a aflição das mães, candeia na mão ou na beirinha da mesa a tirar picos de mãos e pés, que as silvas e os cardos não perdoam invasões. A tia Bernardina, mulher rija e de pouca meiguice, entornava o frasco do álcool puro sobre os arranhões ensanguentados, indiferente aos agudos da dôr, o que arde é que cura. Apesar dos ralhetes e dos tabefes, as primeiras amoras, ainda a encarnejar numa acidez de remédio que não presta, eram deles. E as segundas, a suplicar por entre o aguçado das silvas, olhos redondos escorrendo azeviche, colhe-me. E depois vinham apressados desarranjos intestinos, diarreias de, minha senhora ontem não pude vir à escola, doía-me a barriga.  Caganeira não era palavra de se dizer a uma professora.

Anos mais tarde, chegou a luz eléctrica. Ou só cresceram. Passavam nas silvas e os olhos mendigos, cativos das amoras, só uma. Mas eles crescidos, com pensamento feito, razoáveis, estão sujas de pó, fazem mal. (cont.) 

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