quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

As Horas do Natal

Primeiro foi uma noite em que adormeci a desoras, um comprimido a entrecortar com rangidos inquietos de vida a esgarnar a contragosto. E o corpo a deslembrar. As mãos, se calha, já nem as tinha (para onde emigra o corpo se dormimos, que deixa de pesar-nos), havia um ligeiro de pés no fundo muito ao fundo, de certeza a léguas de mim, o pescoço na almofada de mau estar, e mais nada. Imerso num certo torpor, o meu pensamento insistia naquele som cavo a tracejado, “tão doloroso, parece um tecido a rasgar contra vontade; deve ser impressão minha, melhor dormir”. E, no que me pareceu o momento seguinte, os comprimidos são assim, engolem a noite num ai, logo a vida impôs o seu estar matinal: agreste; a luz a atravessar-nos qual lâmpada progressiva, pessoas estremunhadas a ganhar velocidade e a recuperarem-se. Eu, contente de mim inteira, a verificar-me no global, ah, está cá tudo, as mãos, as pernas, o tronco. Da janela, a estrada ganhava acelerações de véspera de Natal, compradores de última hora em busca de presentes retardatários e pormenores em falta na ceia. Entretanto, o ramo tombou quase em silêncio, num amortecido de insuspeito desgosto. Na árvore, a chuva escorria ao longo do rasgão de nudez clara. E havia uma mole de verdura vicejante caída sem arte sobre a rua, a impedir-me o carro. E a chuva. E o vento. A árvore órfã de si, desatenta da ferida intestina e sem curativo, em cuidados com a pernada, e agora? Mas o ramo inerte, trambolho ainda em uso de cordão umbelical. A precisar ser retirado do caminho. A minha estupefacção quando, “mãe anda aqui ver uma coisa”, e o volume de metade da árvore no chão. E fizeram-me sentido os gemidos nocturnos.
            Depois veio o tempo dos doces em ponto, dos bolos fofos, das tartes vistosas e de apetite. Chegou a tarde. E, a mesa dos doces, repleta e esquecida, deu lugar a tempero de carnes e tratamentos de bacalhau e entradas. Horas de fogão. Ele exausto de calor e combustão, zonzo de aromas e sabores, enfadado de pingas, quando é que isto acaba. E a chuva lá fora. Pertinaz. Impeditiva. Eu ao fogão com a memória, as visitas sem chegar, à espera de uma aberta no temporal. Um aviso a minha mãe, cuidado não escorregue, o chão da cozinha está húmido; vá, sente-se aqui neste banquinho alto a fazer-me companhia,  converse um bocadinho comigo. E ela sentou-se de frente para a prateleira onde tenho o livro das receitas e, num suspiro desvanecido, ainda o tens. E eu só um sorriso para essa data presente. E rematou, não cheguei a escrever nada, filha. Eu concentrada, a acertar o lume da cabidela, pois foi, mãe, mas as duas o sabíamos; quando lho dei a mãe, fica para ti, filha; se a mãe puder, começa-o; passa-te uma receita ou duas - virei-me para ela -. E as duas sabíamos que isso não podia haver. A minha mãe meia triste, não te ensinei a cozinhar…Abracei-a, o mais difícil não foi isso, mãe. E ela numa fundura de olhos, eu sei filha, sei tudo.
E ficámos por ali conversando. De vez em quando, os amores perfeitos amarelos, fustigados por vento e chuva, temos a cabeça feita em água, estamos aqui estamos a desistir da floreira e partimos para destino incerto. E eu com a colher de pau na mão, não, não; não me façam isso, vocês são a minha alegria de subir a persiana. A minha mãe atrás de mim a repará-los, sais à tua avó, o que ela gostava de flores.
E quando a família chegou a minha mãe, vou ali. E ficou um cheirinho de violetas.
Então, eu para o fogão: pronto, acabámos; estás um bocadinho velhote, meio entupido, mas não te portaste mal de todo. –  desapertando o nó do avental -  Não te chateio mais.
E fui para a sala ser dona de casa e participar da consoada.
Tarde da noite, recebi um livrito de Herberto Helder porque os filhos me sabem mais ou menos. E ficámos os três à lareira, a falar de nada, até ser tão tarde que a dor de cabeça me insistiu e quebrou. Contudo, o pequeno almoço apanhou ainda a noite escura. Matutina, fui ler a Visão da semana passada de que o tricot me desviara. E alegrou-me que Lobo Antunes uma entrevista tão bonita como só ele.
Que me deu algum alento nesta escuridão de natal. Quando um escritor pensa como nós, não sei porquê, mas isso faz-nos sentir melhor. Vou guardá-la como a outras. Mesmo que daqui a uns anos não saiba onde. Ou já depois de amanhã.
Permito-me alguns reparos seus que só são seus porque ele os disse; eu e talvez tantos outros, comungamos-lhe o pensamento:
A gente escreve para gostarem de nós.
A amizade é como o amor, a gente encontra uma pessoa e fica amigo de infância.
A amizade que mais prezo nele, a de Cardoso Pires:
Cardoso Pires : “eu sei que sendo Pires não posso ser bom escritor mas tu és e gosto muito de ti.”
António Lobo Antunes: E foi assim que ficámos amigos de infância. É assim: instantâneo e absoluto como o amor. (…) o amor é tanto, que a gente fica sufocada de paixão e nem pensa em sexo, ficamos a olhar apenas, só o privilégio de poder estar a olhar…e existe aquela sensação de que se tocar vou estragar, porque posso fazer ali uma nódoa, um amolgão, qualquer coisa…Ultimamente acho que é uma honra tão grande estar vivo…E um acaso.

E é mesmo um feliz acaso estar vivo. Uma honra.

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