terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Minha Irmã Directora

Gosto de escrever cartas. Escrevo-as em número razoável, se contar com os mails. Sim. Os mails são cartas sem necessidade de selo ou porte. Invariavelmente, sem resposta. Minto. Há uma pessoa, uma única, que sempre me responde. Mais tarde ou mais cedo, responde. A uma missiva mais instante, os meus amigos urgem num telefonema. Ou enviam-me pps palermas que caem virgens no lixo do mail. As pessoas não têm tempo para cartas nem mails compridos; tenho por vezes a incómoda impressão de que impeço, aborreço. E nem sei o que pensam na hora em que os lêem, já que pareço ser a única pessoa a escrever-lhes. Por isso, é verdade, encolho a escrita. Começo e logo desanimo, só vou fazer perder tempo, não origino conversas; os meus amigos - que são poucos -  têm muito que fazer com os seus próprios estados de alma e de vida, que pelo visto não querem ou não precisam repartir comigo. Devo ser uma maçada de, lá vem ela com as charadas do costume. E desisto.
Sempre escrevi para os vivos. Porém, hoje, é oficial, inicio a correspondência para o além; um you have got mail da terra ao céu. O que quer que isso seja. Não vai haver grande diferença nas respostas. Se os garotos escrevem ao Pai Natal e endereçam à Lapónia ou ao Pólo Norte por inteiro, e ele lê, por que  estúpida razão, se eu coloque uma correspondência num blogue que até é meu, eles que tudo podem, não hão-de lê-la?! E se não? Bom, fica a intenção.
Para ti, minha irmã directora
 (minha sim, que não foste igual com ninguém mais, ou pensas que não sei?:)
Quando jovem inconciente - já a trabalhar -  marcava no calendário a data da visita. E aguardava os dias um a um, a descontar. Escrevia-te a perguntar se dava jeito. E, depois da confirmação, podiam chover picaretas que ia na mesma. Não sei se o céu não me protegia, se a protecção era excessiva, mas quase sempre chovia torrencialmente, lembras-te? Era uma chuva indiferente às estações. Eu ia para ti com coração de noivar. Isso mesmo. Fazia um caminho muito longo, desde a outra margem. E o enleio de alma, vá-se lá saber porquê, começava no comboio do Cais do Sodré, os olhos extasiados na paisagem com abertas de mar; ou preocupados a discernir na lonjura o Forte de Caxias tão sozinho no meio da água. Não sei se pelos prisioneiros se por ele só, mas impressionam-me aquelas pedras de chão sempre batido de ondas e não me lembro de ter desejado a solidão do farol. Mas ontem. No mesmo comboio ou noutro semelhante. Faltou o coração aos pulos. Levava prendas e nenhuma para ti. Por isso elas normais, agachadas dentro de embrulhos desvitalizados. As tuas prendas acicatavam-me desde a compra (quantas vezes as desembrulhava antes de dar-tas!). Gastava a viagem a palpá-las, no medo que desaparecessem, imaginando o cuidado dos teus dedos de fuso a desprender a fita-cola para não rasgar, o oval puro das unhas sempre arroxeado; e depois o teu sorriso desvanecido mesmo se te oferecia um sem préstimo – não tenho muito jeito para escolher prendas; desculpa as vezes de parvoíce feita de amor esquecido que eras freira com hábito. Quanta vez te disse que gostaria de tratar-te na doença, ter uma cama onde te deitasses em minha casa. Desculpa, o meu coração queria mesmo era fazer-te minha. E não podia. Eras tão fiel à tua causa - a congregação - e ao teu coração doente que não contaste nem quando sofreste as minhas acusações injustas. Engoliste em seco, disseste que não podias. E não parei de te acusar. Até chorei, lembras-te? Então puxaste do teu imaculado lencinho de cambraia com perfume de alfazema e secaste-me as lágrimas, não chores filha, eu não podia, acredita. E eu puxei dos meus lenços de papel e assoei-me com estrondo.  E rimo-nos de tanto ranho.
Quando ia para ti, a cada estação, o coração acelerava. Descia no Monte Estoril e tinha de ficar um bocadinho a olhar o mar sem saber o que via, que não aguentava o descompasso e não seria capaz da subida. Saía da estação deserta, desligada de por onde seguir. Subia ao acaso, cruzando com turistas de mochila e mãos nos bolsos que me desconcertavam ainda mais; eu suava em bica fosse verão ou inverno, o coração a querer saltar não sei para onde, e eles, que eram estrangeiros, passeavam-se em descontracção e hábito. O Monte tinha lojinhas pequenas, mercearias de aldeia repletas de iguarias desconhecidas; entrava numa e perguntava pela tua rua. E ia subindo numa agonia alegre, a antever o teu sorriso. Várias vezes trovejou, o vento a roubar-me o guarda chuva – há-de ter sido lindo eu a correr atrás dele. Mas, chovesse ou não, quando chegava à tua porta tinha de parar de novo. A acalmar. Depois tocava e vinhas tu a sorrir, num dia destes, só podias ser tu, outra pessoa desistia. E eu quase ofendia com a tua suposição de que pudesse falhar-te um encontro. Abraçavas-me, tentavas alguma ordem no desalinho dos cabelos e palpavas-me os braços a avaliar a molha. E isso me bastava para recompensar todos os meses em que te não via e pouco me escrevias. Então, levavas-me à casa de banho para me secar e pentear. Mas eu não uso pentes e ficava como no colégio a olhar-me e a pensar que estava normal (eu que nunca o fui). Em seguida, pegavas-me pelo cotovelo e íamos as duas para uma salinha onde me deixavas a olhar para madres de princípio de século, muito compostas no vertical das paredes. Regressavas com um tabuleiro de coisas boas que eu devorava entremeando tentativas de contar tudo em afogadilho. Entretanto, ralhavas-me com brandura: que não devia andar sempre de calças, um dia ia a uma exposição com o meu marido, não podia ir assim vestida…e eu perguntava de boca cheia, em estranheza, uma exposição?! De quê? E pensava pra mim que estavas fora do mundo, eu não iria nunca a uma exposição. Se fosse, levaria calças de certeza. Hoje, penso que me sonhavas coisas boas. Que nunca contaste.
Obrigada por me leres a tua vida toda. Por me receberes como se uma mãe – sei, sou tua filha de coração. Por escutares todo o meu arrazoado palavroso. Por ouvires as minhas queixas furiosas. Por teres achado bonito o meu vestido de noiva que fui mostrar-te sem aviso, num dia de tempestade e vendaval e levei dentro de um saco que nem era plástico; tu a correres-lhe a simplicidade, é o teu estilo. Obrigada por me deixares estudar grátis no teu colégio. Por me teres dado guarida em Santo André quando ninguém me queria em nenhum lugar. Por me teres cedido o teu quarto quando não conseguia dormir com as outras estudantes. Por me teres dado emprego quando o médico me recusou o atestado, este ano ainda não pode trabalhar. Por, logo a seguir a esta notícia triste, me teres levado contigo a Paranhos da Beira onde me deixaste em gozo de férias. Como, então, sendo já madre, me ajudaste!  Não tem fim o meu obrigada, tenho a certeza que me fizeste grandemente como sou hoje.
Em quem é um não há separação. Mas bolas, que dói na mesma.

PS: E olha, afinal enganei-me; já fui a n exposições; quase sempre de calças:)
E, por uma boa causa, ontem fiz o teu caminho verde que tinha prometido a mim mesma não repetir.  Não foi o mesmo caminho. Nem a casa era a mesma. Apenas estavam no mesmo sítio.


Quem me dera que sejas feliz na eternidade.

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