segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Madrinha Zefa

Pouco sabemos das pessoas que amamos. O saber é frio, lúcido, razoável, descritivo. E gostamos sem lucidez, a abarrotar de preferências, as descrições armadas em folhas de outono, caídas em desinteresse. Cada objecto do nosso amor é único. Por exemplo, nunca vi a minha madrinha como ela é. Mas posso dizê-la como a sinto desde sempre: madrinha e minha. O que é uma sorte.
Tenho memórias antigas de uma rapariga de avental e touca branca, calada e, para mim, muito alta. Trabalhava no fim de uma escadaria difícil e que pouco a pouco me deveio impossível de vencer, as pernas de pedra, não somos capazes. Atormentava-me o lanço único de escada que se escancarava pavoroso, logo após o toque da campainha. Sobranceiro, erguia-se a pique e reinava sobre o espaço num volume de degraus a meus olhos impressionante. Então, lá em cima, onde me parecia que não seria capaz de chegar, surgia a criada de fora que ao ver-nos rasgava um sorriso e, destemida, corria degraus abaixo, olha quem nos veio ver, a Beatriz. Chegava-se a nós, pegava-me ao colo e salvava-me dos degraus que galgava em facilidades incompreensíveis. Se a porta da rua entreaberta, o panorama mudava, a mão da minha mãe a puxar-me escada acima, içada a cada degrau. E ela, por que é que tu não mexes as pernas? Respondia-lhe, não andam; e a minha mãe incrédula, sua preguiçosa, vinhas na rua a correr. E por mais que eu, mas a rua não tem escadas, ela não entendia e chegava ao cimo cansada de puxar por mim. Claro que, quando experimentou largar-me a meio,  fiquei desamparada; olhei para baixo e para cima e aterrorizei. Desatei num berreiro. E se ela não me deitasse a mão, cairia escada abaixo tanto as pernas me tremiam, o pérfido degrau onde me encontrava, a encolher na largura.
Lá em cima, depois de um corredor comprido e escuro em que me recuperava, os braços da minha madrinha levantavam-me, parece uma pena, tão levezinha. Tirava a touca e espalhava um basto cabelo às ondas que eu acompanhava com as mãos, a fazer-lhe uma festa. E era daquele altar de conforto que olhava a casa; íamos cumprimentar a senhora e os meninos no salão, a minha madrinha uma nota de satisfação, é a minha afilhada. A menina era da minha idade mas nem parecia. Era a menina Maria Rita a quem a família, não as criadas, chamava Mani. A menina Maria Rita era linda e tinha brinquedos e jogos nunca vistos. A senhora incentivava-nos a brincar juntas e mandava a minha madrinha para a cozinha. E a menina, com um jeitinho bonito e importante, ficava a mostrar-me as coisas que tinha e o que faziam, ou nós podíamos fazer com elas. Nunca nos juntámos numa brincadeira.
A minha madrinha trazia-me prendas: peúgas com folhos a que eu me apegava ferozmente e que só me descalçavam adormecida; um extraordinário ferro que saiu na farinha amparo e a menina MariaRita desprezou e veio a morrer disforme e fedorento quando uma garota endiabrada mo roubou de dentro da caixa de sapatos das minhas riquezas, e feita mázona o  atirou no lume da vizinha;  um boneco de casquinha que mexia cabeça, pernas e braços e parecia saído da mocidade portuguesa, risca ao lado, penteadinho e de calções e camisa de virados. Que viajou até mim numa caixa, mumificado em papel de seda, a esticar-me o suspense. A alegria de ganhar o garoto de casquinha só foi ultrapassada pela minha bicicleta e, mais tarde, pela Maxi Push. Teve um reinado longo o meu boneco.
A minha madrinha namorou e fui carraça no colo do meu padrinho – assim nomeado desde o primeiro dia de namoro – e julgo que não os terei deixado namorar convenientemente. Íamos esperá-lo de mão dada até à curva, depois a figura dele surgia difusa e a minha madrinha, já lá vem. Eu distinguia uma mancha e ela, traz o casaco azul-escuro que lhe fica tão bem e vem a pedalar com força. Eu olhava na mesma direcção e continuava tudo indistinto. Provavelmente, o que então julguei força amorosa da minha madrinha era a sua visão normal face à encoberta miopia da afilhada. Mas só agora penso nisso.
O seu casamento foi a minha estreia em cerimónias. Teria uns cinco anos. Amei vê-la de véu e com um ramo de flores na mão; o ramo estava arranjado em bouquet, espargos entremeados com flores e um papel rendado a suportá-lo. Bem lho pedi, mas, ao contrário do que sempre fazia, ela não quis dar-mo, teimou em carregá-lo o tempo todo na igreja o que muito me surpreendeu e encheu de perguntas. Eu e a Mani estamos nas fotos com os noivos e os padrinhos que, no caso da minha madrinha, eram os patrões. A Mani brilhava no seu extraordinário; pela primeira vez vi um chapelinho – era de veludo vermelho escuro debruado a branco e rimava com os laços e passe fita do vestido, inchado de saiotes engomados, que me encantou; parecia mesmo de fada. Vaidosa do meu vestidinho branco, só tinha pena que não fosse igual ao da minha madrinha, todo às rosinhas, mas a minha mãe respondeu-me que o vestido das noivas não podia ser igual ao de ninguém. Tive sérios problemas com o véuzito que estreei, não me parava na cabeça, descaía; por fim, a minha mãe atou-mo ao pescoço mas, pelas fotos, não resultou grandemente. Na foto que tenho, a minha madrinha está séria, parece triste. Quando lho notei, explicou-me que estava a concentrar os olhos para não parecer estrábica. Na verdade eu preferia uma noiva-madrinha risonha e estrábica, mas ela pareceu-me contente do esforço e calei a ideia. Eu e a Mani estamos sorridentes, ela divertida e eu de cabeça meio torta, sorriso envergonhado, muito atrapalhada - era a primeira vez que me fotografavam e a minha mãe encontrava-se a dois longos metros -, com uma mão a torcer e levantar a saia, os olhos a seguir as ordens dela, sentada no banco da frente da igreja, levanta a cabeça e ri-te. Lembro-me da constância em desviar a cabeça por causa do ramo; um espargo ficava-me na direcção dos olhos. E sei que há uma foto onde estou com um olho fechado em fuga ao invasor.
Em casa da noiva havia uma sala sem porta, com uma cortina apanhada dos lados. Achei um supremo bom gosto e quis logo importar a moda para minha casa, mas a minha mãe não deu resposta às milhentas vezes que perguntei e pedi. Portanto, abandonei o assunto. Para ajudar em casa enquanto os filhos cresciam, a minha madrinha lavou, durante anos, roupa para fora. Passava horas ao tanque. E convidava-me em todos os aniversários. Sempre encontrei a mesa posta na salinha das cortinas e um senhor velhote, muito passadinho a ferro e bem posto, que se alambazava de tudo a sussurrar, a menina Zefa é que era, tem uma mão para a cozinha que só visto, chegue-me mais uma talhadinha de bolo, se faz favor. E nós só comíamos depois de ele ir embora. Cheio de salamaleques e de bolos. Nunca gostei da maneira como a minha madrinha o servia. É que não partia bolos, pão, não punha sequer o açúcar na chávena, o parvalhão. E depois, a minha madrinha ficava a dizer muito baixinho, não convidei o senhor Gonzaga, mas ele apareceu, sabe os anos de todos, até dos filhos, e nunca traz uma prenda. O senhor Gonzaga era o pai da mãe da Mani. Dizia ele que gostava muito da minha madrinha. Mas eu não gostava dele, a fazer-se dono de tudo, até dela; e a comer antes de nós, a encetar todos os bolos, mesmo o dos anos, antes de cantarmos os parabéns. O meu padrinho também não gostava dele e resmungava, já não és criada; lavas a roupa suja dele e chega. Se eu não precisasse…

(continua)

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