domingo, 12 de janeiro de 2014

Resquício

O dia está doente, pensou, rente ao parapeito. E logo a mão parou ante a cortina, a recear comprometer-lhe a leveza; quem sabe se, disposta a carregar as maleitas do dia, ela engasgava a oscilação sob os dedos. Lá fora, a chuva era muda e caía em mansidão, gotinhas de borrifador desmanchavam-se no vidro a alargar até escorrerem em regos pequenos. Através da trama aberta do tecido, observou, como de dentro de uma nuvem, o quadrado húmido da praça a escurecer, as árvores semidespidas, quietas, a fingir-se de mortas para aguentar o inverno. Teve vontade de as chamar, psst, tu, sim, tu mesma, junto ao banco de pedra. Contudo, desistiu. Elas ensimesmavam por inteiro na semimorte, a reunir forças para a rebentação da primavera e a beber por antecipação toda a água que o Verão lhes havia de negar. O brilho metálico dos automóveis estacionados em volta do jardim refulgia acetinados aquosos, aqui e ali partidos pelos troncos, caixinhas pequenas e sombrias à chuva, a perderem contornos no avanço dos minutos. É só impressão de crepúsculo, não deformam nem desmancham, amanhã estão ali todos tal qual, disse para si. E anteviu em nitidez a segunda feira de portas a bater, cães a ganir, crianças puxadas para dentro dos automóveis, um ou outro impropério que saltou e não coube no carro que arrancou num repente. E ele que cortara o ar de jacto,  incógnito da sua brevidade e sem tempo de ver por onde andava, antes de se sumir no sulco entre as pedras da calçada , agora deixam-me aqui sozinho e vou para onde? Noutra esfera, os senhores de passear o cão, agastados, despacha-te que este frio me gela os ossos. E apertam a gabardine com o pijama a espreitar, uma ponta de calça esmorecida sobre o chinelo, cabelos ensonados e sem ânimo, para que lado caímos, não temos forças, um bocado da gola virado para dentro, aqui é mais quente, deixem-me estar, por favor. E os cães em euforias de cauda, imunes ao sono e ao frio, a gozar a liberdade de se aliviarem, patas em alegria do chão que pisam, o regalo de adivinhar cheiros na ponta do focinho. A zanga amuada dos autocarros na rua a tomar balanço, embraiados em mudanças de hora de ponta, e uma ou outra persiana subida aos arranques custosos, numa constância de vai à frente e vai atrás, que o tremedor esforçado da mão leva até meia  janela. E lá atrás, um rosto átono  a voltar-se e esvair em passos de vagar meticuloso.
De repente, no quase noite, uma garotinha de galochas e guarda-chuva grande demais plantou-se no rectângulo do jardim aos pulos e, com vozita saltitante, apagou a manhã de segunda feira, anda, vê-me. Olha! Já sou gande. Olh’ó guada chuva, mãe, olha, olha. E a ela pareceu-lhe que a chuva se divertia com a garota, mãozinhas juntas em esforço, no balancé do objecto. E a chuva a rir,  agora molho, agora não, agora sim, agora não.
E talvez tenha sido a força desvanecida do sorriso da mãe. Ou o seu desprezo pela chuva a engrossar, não o deixes cair que te molhas. Ou apenas a luz de diferença no olhar. O certo é que afastou a cortina e atardou-se a observá-las. Tão bonitas as duas, pensou. Tão verdadeiras como o quadro de Miguel Torga, “Embevecida a mãe ovelha para de remoer e a vida para também a ver”.
  De onde vêm às mães os olhos com que olham e que são outros dos olhos diários, feitos para ver, ler e outras funções. De que fundura de poço tiram, a braços, essa doçura derramada sobre os filhos e o que lhes pertence. Em que lume brando cozinham as ternuras de que os vestem, os cuidados com que os rodeiam, o pavor de que o mal os assombre pelas esquinas. 
Contudo, todas as mães nascem meninas. Crianças. Não pensam em filhos, em casamento, o sexo não lhes existe em acto. Brincam. Vivem sem futuro maior do que o amanhã, as datas dos adultos a surgir-lhes sem nexo, incapazes de convertê-las em tempo. Negar-lhes um desejo é negar o presente, exibir-lhes a impossibilidade. E as birras que fazem reflectem  o apego ao momento. Que urge. Se o adulto protela uma coisa de que gostam, prostram em desgosto verdadeiro, lágrimas em corda. O que não pode ser agora, ou mesmo amanhã, equivale-lhes a um não ser absoluto trazido por mão espúria. 
E que as mães de olhos de lago tenham sido estas crianças é, no mínimo, excelso.
Perscrutou o exterior. A noite infiltrara-se a arredondar ângulos, a embrulhá-los. A garota e a mãe tinham debandado e o escuro engolira os prédios da frente onde agora brilhava sozinha uma porta de entrada, exibindo a desolação de não ser ainda casa, de ninguém a passear-lhe os olhos com interesse, ninguém a interessar-se por estar nela com alma de, enfim! Na praça, sombrios e erectos gigantes  rodeavam-se de vultos menores a amontoar, parte de um mundo oculto só imaginado que brota sombrio do âmago da noite, repleto de mãos e dedos misteriosos e terríficos que aliciam o tacto, nos tocam os braços e tolhem as pernas e que, se nos prendem pela cintura, nos deixam cativos até ser manhã. Ao lado, uma ou outra janela existia e desistia, à mercê de um interruptor, talvez accionado por um esquecimento qualquer. Uma porta bateu lá ao fundo onde a escuridão se apertava de encontro aos carros e a noite, num frémito, recuou um nadinha, temerosa. 
Então, pousou de leve a cortina, acertou-lhe o franzido e correu a persiana. Maquinal, conferiu-lhe o paralelo das lâminas postas em sossego. E sobreveio-lhe um acervo de dúvidas, Qual será a minha cara de olhar a rua? Que som tem a minha persiana quando fecha e levanta e quem a ouvirá? Como será que eu existo para os outros? E de súbito, a dar-se conta do seu sem ruído na vida,
se eu existir...






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