domingo, 27 de julho de 2014

Fundação Oriente (2012)

Quando o calendário nos não ensina, há factos ressuscitados. Assim me sobressalta a exposição de pintura a tinta-da-china que visitámos na Fundação Oriente. Era uma tarde solitária e antevíamos um desenho de recorte negro, perdidas em recordações de tira-linhas, canetas de tinta-da-china e borrões desajeitados. Mas surgiram-nos bucolismos singulares em ressaltos de cor, minúcia chinesa a esquartejar o real. No papel, sublinhado e assentido, lemos que o artista chinês deve “encarar a natureza como seu mestre e incorporar os seus sentimentos na sua criação”. Num espanto de viés, quase de ofensa, deambulámos a demorar-nos nos quadros. Dir-se-ia que, neles, a pintura oriental se fez ternamente picuinhas, a quebrar-se em traços pequenos que acompanham o esmaecer de pétalas e sugerem a doce fundura do lar. Abstractas, notámos estas diferenças do espírito a suspirar por Cézanne e Degas, Magritte e Van Gogh. Não é um estilo diverso, mas uma alma outra, os mil pormenores dos traços a lembrar o cheiro a poeira nos livros antigos ou a sugestão de dedos calosos e pacientes em vagares de amostra rendada, a nossa estranheza contínua, a bater o pé por fugitivos códigos de leitura. Então, ainda não despíramos o espírito do hábito, dedos de espanto na textura do papel de arroz.
Em seguida, atentámos nas denominações dos quadros, “A beleza permanece graças à brisa aromática” ou “Quem deixou florescer as montanhas e florestas?”. E ainda, “edifícios de Terra na Hakka numa manhã tranquila”. E perante estes títulos fica a gente indefesa, incerta…será um princípio de romance ou uma questão religiosa e filosófica?! A  designação das nossas pinturas diverge. Lemos por exemplo, “Rapariga com livro”, “Guernika”, “Mulher sentada”, “Rapaz com cachimbo”, etc. Ao laconismo do resto do mundo os chineses opõem um pensamento completo e palavroso, que sugestiona com cheiros, sentimentos, e um ambiente teluricamente pacífico. Enquanto assim andámos a comparar, pouco vimos. O conhecimento carece da nudez indefesa de quem conhece, é preciso estar nu de espírito, em ingenuidade primeva e receptiva, atenção bíblica que nos faz terra fértil à boa semente.
Mau grado tudo isto, acometeu-nos um desconcerto de riso parecido ao que nos agarrava quando víamos telejornais (não me lembro de nada, coisa nenhuma mesmo) na travessa de Santo André, onde tudo nos gargalhava. Até sermos expulsas da sala, bem entendido. Frequentávamos o Magistério Primário e teríamos entre 17 a 19 anos e, felizmente, tão pouco juízo!!! Ali, numa fundação toda chinesa, as nossas freirinhas presentes, imagina! Compenetradas do estatuto, sérias no hábito preto de andorinha – sempre me pareceram andorinhas, queres o quê; as meninas da Casa Pia numa raiva desabrida, corujas! Morcegos! E depois, não sabendo como alvejá-las melhor, uma intermitência final, à queima-roupa, há um túnel que parte da dispensa para o convento da Cartuxa…Mas não me buliam os dichotes das meninas, via-as andorinhas eternas, voavam. Sentávamo-nos junto delas e os olhos da irmã Beta a pedir contenção; as restantes, imóveis, lábios rectos, um ricto de semi desaprovação a enrugar nos cantos, olhos fixos, num estranho desejo de notícias - é evidente que só assistíamos o telejornal porque não nos deixavam ver outra coisa. Começávamos compenetradas, a prometer uma à outra, hoje é que é, não nos rimos. Porém, mal o locutor cumprimentava, logo umas fungadelas. Em seguida, e ainda animadas de bons propósitos, havia um período de acalmia em que, cabeça baixa, nos dedicávamos  controlar o riso sem ouvir ou ver o que fosse. E, por qualquer razão que até suponho inventássemos, terminávamos numa oscilação de costas, todas dobradas para a frente, os olhos a chorarem enquanto as mãos se inutilizavam a esconder o rosto. E a irmã Beta, italiana de gema, a única a olhar-nos com um meio sorriso e olhos garotos; se haja céu, ela há-de lá estar, na sua paciência infinita, divina beleza sardenta, as azeitonas dos olhos em brilhos de ternura liquefeita. A saudade que lhe tenho aos olhos! Pergunto-me muitas vezes se te ficou aquele olhar de abraço que nos fazia ser melhores, ou pelo menos desejá-lo. Uma vez, um desconhecido olhou-me assim, como quem não tem outro mundo. De dentro da minha admiração,sorri-lhe agradecida. Quem sabe, lembrei-lhe alguém. Fora uma boa manhã de trabalho, comemorávamos num restaurante e fiquei com a ideia de que teria ouvido qualquer coisa da nossa algaraviada. E não se explica, mas era o mesmo olhar da irmã Beta. O mesmíssimo: azeitonas pretas a boiar em ternura. Para mim.
Mas voltemos às sessões de televisão: a directora Assunção, uma severidade pálida a comandar cortante, lá para baixo, se faz favor. E nós a ressoarmos patudamente na escada, até perdermos os passos no quarto - os pés regressados à condição, com planta e tudo que lhe competia, oh, já não sou pata - , o riso rebolado sobre as camas num à vontade que, por sê-lo, logo parava e perdia graça. A saudade que tenho de ser aquelazinha. Nunca to disse, mas o teu desvelo comovia-me. À noite levavas-me leite ao quarto e subias a escada muita vez para uma conversa. Nessa altura, controlavas-me o peso, chegavas-me a medicação, afligia-te o meu ar bacento. Nem um dia te senti receosa da doença, do contágio, da brisa forte que me varreu amigos, família, conhecidos. Chegaste a acompanhar-me a consultas. Por vezes, o teu cuidado descascava-me a fruta à refeição. No resto, éramos apenas jovens. O que mais admiro em ti, sabes, é a ternura que te corre solta. E se mantém.  Sinto-a quando nos encontramos e verifico-a em tua casa. És assim. Não para esta ou aquela pessoa. Não. És fonte de água fresca. Gostas dos outros. Sou-te infinitamente grata por isso. Tenho uma parte em ti. E tu em mim.
Quanto me desviei do nosso passeio…Depois dos quadros, vimos uma exposição de fotos e objectos, toda ela muito chinesa. Recordo uma família – talvez um cônsul português de Macau – de que havia várias fotografias e adereços: a primeira foto intrigou-me sobremaneira, a mãe aparentava ser uma garota ligeiramente mais velha que os três filhos, enquanto o chefe de família, com um ar muito chefe, era um senhor de meia idade. Não consegui esmiuçar o fundo dos olhos dela, mas parecia infeliz, supremamente disposta a brincar com os dois garotos mais velhos. Comentei, será que isto não foi pedofilia, e tu riste baixinho, encantada com a originalidade de um berço que teria pertencido às mesmas crianças. E depois viemos rindo e conversando até ao Campo Grande, lugar onde cada uma tomou posse do outro eu.

E às vezes, juro, aqueles olhos de papel, serenamente desditosos, perseguem-me. Vê tu para o que me havia de dar.

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