terça-feira, 8 de julho de 2014

Joana Carneiro na Gulbenkian

Por um fortuito acaso comprei bilhete para o último concerto da temporada na Gulbenkian. Desconhecendo que era último. Movida a súbita saudade, abri o pc e achei um bom preço num horário inesperado por inabitual, ainda por cima com a maestrina que todo o ano desejei ver: Joana Carneiro – não sei o exacto porquê, mas ser portuguesa e mulher, num lugar cativo de homens, contribuíu. Quase tudo vendido, escolhi o lugar 1 da fila 28 e só muito depois me deitei a pensar que devia ser longíssimo do palco. Tinha comprado. Nada a fazer. Para não desanimar, e porque me pareceu um bom castigo à imparável distracção que acompanha o eu de mim, nem espreitei a planta da sala que, aliás, tinha visto sem ver, quando escolhera o lugar.  
Cheguei cedo e flanei pela secção de compras, onde aproveitei para perder os óculos de sol de que mais gostei até hoje. Sou assim, não perco tempo com bagatelas, se é de perder, que seja de valor. Ainda desatendida do rombo, sentei-me rodeada de meus vagares, na grata surpresa de estar mesmo junto ao palco e, graças ao enviesado do lugar, poder admirar a maestrina. A tal que, em vão, quisera assistir. Felizmente não esquecera os óculos normais e a perda manteve-se incógnita. O meu céu, azul e sem nuvens.
Agora que já me habituei, sei que chega primeiro a orquestra e só depois de tudo pronto e no lugar, o maestro. Os elementos galvanizam pela fatiota. Se não fora o instrumento que trazem na mão e lhes dá o metier, pareciam convidados de um casamento chique e nós, os sentados, transeuntes boquiabertos a bisbilhotar roupagem e penteado. É verdade que os velhos são sábios e existem, mas, da entrada à cadeira de cada um, a aura é dos mais jovens, os restantes a passear, distinta e em passo certo, a sua discrição. Ficou-me uma mulher de braços sinuosos e decotados que se sentou num sussurro de sedas a deslizar, ajeitando o violino em materna comoção de dedos, o mate da pele a resplandecer contornos juvenis, toda debruçada de cuidados com porcelana chinesa. Ou a de dedos de fuso e pulso fino que trazia aos ombros uma nuvem de tule e permaneceu alheada dos fios do tecido a ranger constrangimentos, ai, não aguento esta dobra, vou ficar esmagado dentro da prega, a mirar o brilho da flauta, desligada do rumor das fibras a esticar no busto, garridas vaidades insufladas, somos as maiores; mais tarde, o seu solo de deusa chamada à Terra havia de transportar-nos a florestas verdes de ar rarefeito e pastoril, onde a pureza do oxigénio nos entontecia a cabeça. Lindas, as duas. No entanto, mal a maestrina pisou o palco, eu soube de algo maior. Joana Carneiro, rosto sem pintura, em negro conservador: sobre saia comprida, casaco de malha fina, manga justa até ao pulso, sem réstia de enfeite ou alinhavo de cor. O cabelo a descer, liso e solto, com um ganchinho infantil sobre o lado, a amparar a visão. E, como em todos os concertos de domingo, explicou a música. Trouxe os instrumentos ao seu significado na peça, identificou-os com os momentos e contou a história de cada trecho. Ouvi-la, foi sentir uma janela a rasgar cá dentro. E foi assim, cheios de claridade, que a vimos crescer no palco. Aconteceu-me o de sempre, ouvia a música mas esqueci completamente a orquestra. A minha atenção foi sugada por uma feiticeira encantatória que, em grandes gestos, cozinhava à nossa frente os prodígios da sua arte de feitiçaria. Doce e terna feiticeira que se deixa levar pela música e participa da sua tristeza, o desalento do cabelo a oscilar próximo ao pesar dos olhos! Que, numa súbita viragem da sua varinha de condão, toda se empolga e vibra, e se faz força de viver e riso desabrido, torrente que, qual flauta de Hamelin, arrasta toda a orquestra.
E logo ela se despediu. Parecia que só uns minutos, mas um concerto inteiro.

Depois…bom, depois foi a busca insana e inútil pelos óculos. E ainda assim não se me apagou a gratidão por mais este acaso de sorte.

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