terça-feira, 12 de agosto de 2014

Um Chá para Três

A vida reúne e parte, às vezes por milagre. Ou será um destino sem fatalidade, encontro de acaso. Foi assim que se viram reunidas e três. Frente a um bule de chá.
A tarde corria amena e nada prenunciava a noite que viria. Como a vida se faz bonita quando toda se arma de surpresa que tornamos boa! Sim, que a vida oferece sem a qualidade.
Um acaso de supermercado juntou duas. Anos e anos longe da vista; mas prestes o coração desmentiu distâncias. Atarefadas de compras e recados, pressentidos gelados a escorrer no carro, alfaces de folha à banda e sem viço, combinaram umas palavrinhas mais tarde, um encontro depois do jantar.
Foi assim que o cair da noite surpreendeu as três: a desfiar recordações. Então, o ar aligeirou e o tempo sem relógio aquietou-se no continuum de milhares de segundos incansáveis e cansativos e velou-as noite afora, os cães num sossego de respeito, a casa uma clareira só delas, protegida de escuridão. Lá fora, o vulto de um automóvel paciente. Dentro, o bule a irradiar sabores de fruta, chávenas que se enchiam e vasavam ao ritmo da memória; um arroz doce divino; um bolo ainda morno. E o riso que a vida tanto engasga e prende a desanuviar em surpresa, oh, afinal existo. A renovar-se, rir é tão bom. Os objectos estupefactos pela casa, isto é o quê? Uma casa tão sossegada e agora…A cadeirinha alentejana, toda florinhas miúdas a sussurrar a resposta numa concentração de sabedoria a crescer, estas três juntas são uma maravilha. O louceiro estremecendo, num dar de si de madeira, há quanto tempo não ouvia gargalhadas assim, só sabemos o tamanho da saudade quando enfim podemos matá-la. Vou aproveitar o ambiente e dormir em som de festa, boa noite, e deu mais uns estalidos antes de entrar no sono. O bule a avultar na mesa, a disfarçar encontrões a um bolo monumental, chega-te para lá se faz favor, senão apanhas um calor; depois, a olhá-las pelo sinuoso do bico e a filosofar das entranhas bojudas, que absurdo fado entristece o olhar e faz esquecer o essencial! Agora são felizes e estamos aqui, frente a frente. E enrubesceu. Elas, desatendidas de tais elucubrações, a pegarem-no pela asa, cuidado que queima.
A mais jovem, recém-saída da doença prolongada que tanto vitima, “acho que me ri mais esta noite que no mês passado todo”. Ali foram trazidos os mortos, os vivos, elas noutro tempo; se compararam timings, se fotografou a trempe; trocaram receitas, anedotas e brincadeiras inócuas, conselhos caseiros. E fugiram prontamente de momentos tristes, infiltrações de saudade a contragosto.
Quem sabe não voltem a encontrar-se. Resta a memória de um serão a ponto atrás, costurado à mão. Cúmplice e amigo. Feminino.
Que tudo seria outra coisa, se não fora a amizade a uni-las.

Bem Hajam 

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