sábado, 2 de agosto de 2014

Madressilva

Cresci no campo, onde se diz que o ar é mais puro e a paz mais larga. Como se a paz pudesse depender apenas ou sobretudo dos lugares. Ora, na vida campestre, nem tudo é bucólico. Ali, aprendi um mundo que julgava rodeado de silvados herméticos e raivosos que em sonhos me rasgavam a pele. O meu campo transpirava fúria ervaçal e prosperidade silvar. Silvas a desmedir extremavam propriedades, zonas de ninguém - agora que penso nisso deviam ser de alguém –, ardilosas beiras de estrada a que os cantoneiros não davam fim, veredas que se cortavam sobre a sua exuberância e só atravessadas em companhia. Silvados eram lugares de temor nocturno onde nem os mais afoitos se atreviam. O entusiasmo das silvas elevava-se a sepultar qualquer homem e, se alguém fosse apanhado a meio de um silvado, não havia escapatória; em veredas que esventrassem silvados, só se fazia caminho com sol; e, de cada vez que nelas se entrava, havia que agarrar as silvas com jeito, cuidados de mãos a domá-las, o resto do corpo a escapulir na tentativa de passar incólume. Junto à estrada nacional, no fim da descida, havia um silvado célebre e denso, enovelado no escuro, onde em noites de lua nova apareciam lobisomens e desapareciam carteiras. Era uma zona lúgubre, mal falada. A falta de iluminação eléctrica e um canavial do outro lado da estrada rematavam o quadro e propiciavam maus encontros. Passei ali em algumas noites de breu, a pedalar furiosamente, sem luz, fugindo mais a multas que a maus encontros, desapercebida do perigo de invisibilidade circulante.
Nessa época de vegetação bravia, a imaginação sobrava e estendia-se como um manto sobre a mente das crianças, a suprir o pouco de tudo. Brincavam juntas na admiração das pequenas riquezas de cada um, um botão em forma de flor, um arame menos ferrugento, o pião que um pai mais artista tinha esculpido aos poucos e que nicava como nenhum, um centímetro de renda que a costureira deixara cair e uma garota abria na palma da mão suja, não é bonita, tem aqui um bocadinho de um passarinho, achas que ela fez um vestido ou uma combinação com esta renda.
Então, os brinquedos eram artesanais e quase todos unissexo. Eles mesmos os trabalhavam em ajuda de seis e mais mãos. E as conversas fluíam. As brincadeiras eram de curta duração, que o tempo se consumia a construir o brinquedo, a aceitar ou rejeitar sugestões de uns e de outros, a experimentar. Talvez as conversas compridas firmassem os sentimentos. Talvez elas fossem uma espécie de estacaria veneziana, a sustentá-los a eles sobre a miséria. E é certo que também se aprendia a consistência do tempo. Nada aparecia feito. Mas era na alegria esforçada de conjuntamente fazer surgir alguma coisa, que o entusiasmo crescia: carros feitos de caixas que logo deixavam cair as rodas de ferro que desengonçavam aos esses num cabo de madeira atado à caixa por arames ferrugentos que breve se espartiçavam; assobios de cana que se talhavam com mil cuidados para não romper a membrana de apitar que sucumbia aos primeiros sopros, mau grado o cuidado de lábios e a ligeireza no soprar; bonecos de trapo que devinham manetas e sorriam incertas linhas vermelhas, estranhas caraças de olhos desnivelados e desiguais que as garotas cosiam e apertavam ao peito embrulhadas em trapos encardidos; colares de flores cosidos com agulhas que os garotos talhavam à navalha num tronco fino, “vai lá buscar a faca da tua avó sem ela ver”, a pele dos ramos das árvores desfiada compridamente a fazer de linha.
Tenho-os na memória, um grupo variado que atravessava todas as idades da infância. Sabiam brincar e tinham orgulho na sua arte. Sujos e quase descalços, esguedelhados sempre, algumas garotas com os mais novos, eternos constipados, traçados na cinta que ainda não tinham, a embalá-los mal abriam o choro. Eles, colares de azedas a escorrer no peito magro e quase nu; elas, grinaldas semi murchas em cabelo emaranhado; as crianças de colo, chupeta sarnenta a escorrer baba, a cara com uma estrada de ranho seco e escurecido de pó, que as mãos estendiam em aflição nasal até ao cimo de cada bochecha, o nariz um labirinto pegajoso e esverdeado; ninguém a dizer-lhes desvanecido, que bebé tão bonito; ninguém a pensar, estes garotos inocentes. Ao contrário. Havia neles uma fome inesgotável que lhes raiava o olhar zombeteiro, trocista, por vezes mau, que envinagrava à vista dos meninos de peúgas e sapato de verniz que não sabiam tocar o arco para a frente com uma varinha; das garotas que exibiam bonecas de porcelana a que eles, para entender o mecanismo de abrir e fechar, retiravam os olhos que caíam nos interiores ocos da boneca mal lhes cortavam o elástico. Ficavam atónitos face ao desastre, os dedos escuros a interrogarem-se em gancho nos buracos das órbitas, então e os olhos de abrir e fechar, enquanto a proprietária da boneca desatava num desgosto de berros.

Também eles devem ter memória dos silvados e das amoras a negrejar no calor. Dos braços estendidos sobre os espinhos para agarrar as mais madurinhas, das artimanhas de varas com arames na ponta a fim de recolher as mais negras, onde o braço não alcança. Porque o impossível é que é bom e a amora mergulhada em sol tem uma doçura diferente. 

Sem comentários:

Enviar um comentário