domingo, 4 de outubro de 2015

Indelével

Bem sei Mãe, a minha estúpida timidez nem sequer criou coragem para estender por ti o braço na paragem do autocarro quando já mal te arrastavas. Que eu corria na tua frente como pedias e chegava primeiro; mas não fazia o sinal e o autocarro passava, o motorista intrigado a olhar-me e eu sem um aceno. Palavra que ainda hoje não entendo o meu braço de chumbo ou como o meu amor era vencido, enredado na estupidez envergonhada.
 Deixei-nos para depois e a vida cerceou a concretização das promessas. Afinal, nunca te dei o braço nem saí contigo em viagem; não te comprei um doce, um agrado, um acaso feliz (eram de aquisição os teus acasos) onde os teus olhos se prendessem em assomos de amor grato. Não sei o que poderia acordar a tua atenção de passeio. Desconheço os teus sonhos mesmo teus, os anseios de raiz que calaste, quem sabe, até perante ti mesma. Ignoro o que pensarias da filosofia e dos filósofos, das teorias difíceis em que se enredaram para explicar um mundo que para ti nunca houve.
Julgo que não sou a filha que criaste, às vezes segui com os pássaros e o vôo alterou-me. Mas, qualquer que seja a plumagem, acredito no teu amor: repara, estou de pés juntos e olhos fechados.
Se agora viesses, Mãe, conhecias-me? Diz que me sabias até debaixo de água, diz que mudar a penugem não me roubou de ti. Diz-me como o Zeca na canção que era tão do teu gosto, “e embora seja ladrão, aquele que tem a mãe, lá tem no meio da luta ternos afagos de alguém”. Não que algum dia tenha abrigado a dúvida. Não. Mas aos humanos faz falta ouvir o que se sabe. É a necessidade dos sublinhados. Do bold. É intrínseco, somos assim mesmo. Para o bem. O mal. E além dele.
Bem sei, o meu egoísmo cerceou-te. Desconheço as tuas cores preferidas, sei que não usavas vermelhos, laranjas, amarelos e as cores suaves te atraíam; que detestavas o negro. Mas não sei, por exemplo, como seria a nossa casa se o teu gosto, ao menos por uma vez, tivesse contado. Como teria sido se…
Mas não se. E por isso somos quem somos. Desculpa não ter vislumbrado que te apagavas sem um som, o teu amor por nós a fazer-nos natural seres apenas “A Mãe”. Desculpa. Fui incapaz de te pôr fora do papel, não enxerguei a mulher senão em brevidades de relâmpago.

Porém, quanto desmedes e transbordas do pouco em que te encerrei.

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