Se lhe
franquearmos a entrada, a noite feiticeira exerce-se sobre nós, em mutação de
olhos e mente. Pondero se os feitiços nocturnos emergem por mera falta de luz
ou se a noite é antes a liberdade possível, tempo de pausa no quotidiano que
transborda horas esquartejadas até ao tutano. Tempo de dormir sonhando, haja ou
não lembrança; e de sonho sem dormir, o pensamento a espairecer nos longes
irreais. Este é o tempo. O timing
identitário e a uso de todos os homens, esboço matricial da imagem de cada um.
Não é apenas regeneração, o necessário repouso celular do corpo; nem a
semi-morte que entrava todos os sistemas de um ser vivo. É também a laboração
emergente de um campo de irresponsabilidade, malha aberta onde anzolam os
compromissos diurnos, tempo de o pensamento mais sisudo desvincar. Ora, se a
eclosão do desejo nas almas violentas desperta maus instintos, ideias torpes e
o desassossego do mal em sua força de gume, a par flutua o sonho que reúne e
congrega homens empenhados em alijar invejas, raivas, vaidades. Convenço-me
que, sem a telúrica dominação desta força, a espécie já teria estourado. Mas é
melhor voltar às noites italianas, meu intento primeiro e de que me desvio
usando filosofia de bolso que me ocorre a descaso. Sorry.
A
noite é em qualquer lugar o mistério escuro que arrebata e transfigura. Em
Itália apenas conheci as noites de Ravena. Duas. Bom, foi pouco. Mas valeu.
Nas
duas vezes em que nos armámos em “Gandas malucos” oscilámos entre a Piazza del
Popolo e a Piazza San Francesco porque aí corriam ventos culturais que nos
pareceram de feição. Garanto, não eram as mesmas praças. Todo o espaço me
parecia outro, vivaço e desinibido, um certo ar risonho. Ambas tinham um quê de
vagar entornado nos passeantes. E, nas esplanadas, turistas colavam às cadeiras,
sorvendo o espírito de alegre e descomprometida vizinhança de pernas e braços.
Havia um ror de ciclistas que cirandava por todo o lado – em Ravena bicicletam
novos, velhos e de meia idade; turistas e ravenenses. As bicicletas chegavam e
partiam sem ruído, pedais eufóricos a rebrilhar (desconfio que alguns velocípedes
traziam um grãozinho na asa, tal o contentamento que os percorria). Bicicletas
airosas de serem novas. Bicicletas airosas de serem velhas. Airosas sempre e a
eclipsar os condutores. E depois ficámos a tentar ouvir o jazz – que nem era
mau – e em seguida fomos espreitar San Francesco e por lá nos quedámos. Era uma
conferência ao ar livre, “La Grammatica del cuore” centenas de pessoas a
assistir, umas sentadas e outras tantas de pé. Ouvimos um médico e um poeta. E o
primeiro batia o segundo aos pontos. Teria uns cinquenta anos e passaria por
actor. Porém, de conversa, pertencia ao
mundo das letras tal o à vontade com que dissertava sobre autores (italianos e
não) e citava – de cor – excertos e poemas. Pareceu-nos admirável na medida em
que as citações apareciam em conversa com os parceiros de mesa mercê de oportuna
argúcia. E por ali estivemos de encanto, até ao fim. Posto isto, voltámos ao
jazz e gastámos um bocadinho a pedir desculpa que os rapazes sabiam o que faziam. Depois, rumámos ao ninho, gratos a deuses e homens.
Na
segunda noite, confirmámos a qualidade dos espectáculos quando, nas mesmas
praças, ouvimos – San Francesco - uma
banda a ressuscitar com alma grandes êxitos dos anos sessenta. Dei por mim, leque
afobado cantarolando entre a multidão à
cunha, sentada por todo o sítio, um muro de pessoas lá atrás, em pé e nas
bicicletas. As pedras dos muros em volta
da praça (onde é que elas estariam de dia) a escaldar pernas, incomodidades de
suor abrindo poros insuspeitos, uma mão que corre a perder-se no decote e a
certificação molhada dos dedos, não era
um bicharoco. E fomos terminar o sarau na Piazza del Popolo com um trio
feminino: piano, violino e voz. As garotas eram lindas e havia arte na música. Mas
a cantora, muito diva e italianíssima de figura, não era dona de voz alada. Que
pena!
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