terça-feira, 25 de abril de 2017

Abril, Sempre

Desde cedo tive simpatia por revoluções. Em garota, o facto histórico que mais me movia era a Revolução de 1640. Mas, em história como na vida, os factos sucedem-se.  E, por muito que o destino possa vir ainda a castigar-me, nada me agrada tanto como viver nesta era e ter assistido, já com algum tento e juízo, à Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974. Que, logo ali, na sua imperativa factualidade,  eclipsou a de 1640 e mais todos os conjurados e traidores.  Não que eu soubesse em profundidade o que era uma revolução ou fosse uma democrata. Nada disso. A palavra democracia só a tinha estudado na antiga Grécia, por ser o regime da cidade-de-estado de Atenas e pensava eu que estava fora de uso, e fosse apenas uma boa experiência exclusiva dos gregos de antanho (era assim, a minha ignorância).
Como à maioria dos portugueses, no dia 25 de Abril de 1974, a  revolução e seus adereços apanharam-me desprevenida.  Não entendia as marchas militares que a rádio passava sem cessar enquanto as ruas de Lisboa estavam em polvorosa: blindados a passearem pela Baixa, militares despidos de rispidez que acamaradavam com o povo;  civis como formigas, incontíveis e inúmeros, pendurados em todo o lugar do largo do Carmo, empoleirados em árvores e fontes, a esgueirarem-se pelos meandros do cordão militar, querendo espreitar a história em directo. No ar, uma alegria expectante. E breves relâmpagos de Salgueiro Maia.  Eu, mais tarde, a olhá-lo incauta, deve ser algum sargento que manda nos soldados (lamento, Maia, mas o meu mundo só tinha sargentos e soldados). Mas afinal era o capitão de Abril a quem devemos tanto. Que, apesar da conjuntura favorável, uma revolução sem sangue e que empunha flores, só num país de poetas e à beira-mar plantado. E o gesto de alegria das vendedoras do Rossio e Terreiro do Paço virou senha. E o primeiro cravo branco virou rubro. E toda a gente usava um cravo. Por ser bonito. E porque as flores dizem melhor que nós o contentamento. E porque, noutros lugares do mundo, outras revoluções as tinham usado. E depois os tiranos, bem à portuguesa, foram exilados e seguiram para Brasil e Madeira que mais pareciam destinos de férias.
Nesse período, viveu-se um irrepetível tempo de acreditar. A força de Abril abriu no coração dos portugueses uma esperança de dias melhores. E assim nos irmanou. É dessa crença conjunta que tenho saudade. Dessa irrupção da crença a dinamizar a vontade de mudança de um povo ainda sem divisão. Porque  o povo, a grande massa anónima a que pertenço, pouco sabia de formas de governo. Mas a vida era tão arrastada que agarrou a mudança e fez dela bandeira. Acreditou. Nesse hiato inaugural, os portugueses  juntaram-se em aspiração e desejo. E era ver actores e actrizes em euforia, desfilando pelas ruas de mão dada a gente anónima; ou, à porta do Forte, Sophia Andresen, a Poeta, que aguardava com outra gente, florinha na mão, delicada como ela só, a saída dos presos políticos em Caxias; e Mário Soares, e depois Álvaro Cunhal, em regresso apoteótico, saudados não apenas por socialistas e comunistas, mas por tanta gente que os não conhecia e assim homenageava quem por ela lutara e sofrera na sombra; e Manuel Alegre, o trovador da voz profunda, exilado na Argélia, a escrever poemas de saudade incomensurável a Portugal, como a Trova do Vento que Passa, “Pergunto ao vento que passa/ notícias do meu país/ e o vento cala a desgraça/ o vento, nada me diz”, versos que devieram canção na voz única de Adriano Correia de Oliveira; e a alegria solta nas ruas com o regresso dos presos políticos, gente sofrida mas vitoriosa e cheia de vontade de viver em paz e liberdade; e a liberdade de expressão de que os jornais faziam alarde e antes desconhecíamos; e os cafés cheios de gente e discussões sobre tudo, sem tabus. Empolgava-nos o entusiasmo de estarmos a escrever a história e viver a novidade chamada DEMOCRACIA, termo de origem grega – nasceu mesmo em Atenas -  e que significa um regime político onde o poder cabe ao povo. Em democracia, o povo elege os seus representantes através do voto.
Depois, contra ventos e marés, um novo governo e a vida do povo a melhorar. As manifestações, os sindicatos, a militância política, o conhecimento. E tanta palavra nova, tanto mundo que desconhecíamos e ninguém nos contava. Quanta luz Abril nos trouxe! Lembro sem exaustão o Serviço Nacional de Saúde, gozo de férias, optimização de horários de trabalho, ordenado mínimo, subsídios a quem mais deles precisa e a protecção do Estado aos mais desfavorecidos, a generalização da educação gratuita...e a Liberdade para pensar e decidir como estar na vida,  a liberdade crítica do pensamento, essa possibilidade infinita que os mais novos usam sem saber que crescemos em parte privados dela, num mundo de autoridade temerosa e em que “não se podia falar”. E quanto não se pensava por nem sequer sabermos que existia! Porque o respeito só em democracia existe. No mundo do déspota reina o medo e a ignorância, não o respeito.
O reino do medo passou. Cabe-nos o dever ético e cívico de ensinar aos novos o respeito que conquistámos no dia 25 de Abril de 1974. Ou nada aprendemos com a História.
Abril, sempre!

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