quinta-feira, 6 de abril de 2017

No Tempo da Escola

No  Alentejo, os dias andam ao pé coxinho e é mais lento o grão a grão no estrangulamento da ampulheta. Contudo, alheio ao vagar do espartilho temporal, o trajecto dos fenómenos humanos é semelhante em todo o lugar. Por exemplo, a coscuvilhice que grassa em tempo embatucado e indigesto, faz-se necessidade social. E é injusto reduzi-la ao mundo feminino, cusquice não tem género e aprende-se de uns a outros, num agitar vivaz das águas comunitárias. Numa aldeia, provoca estremeções, faltas de ar e de coragem, compaixões e simpatias ímpares, lágrimas em corda. E outros desvarios.  Mercê deste exercício contumaz do conversedo, surgem mudanças insuspeitas. Todos os homens são devedores da cusquice. Como sujeito ou como objecto, a demarcar-se ou a embarcar em aceitação acrítica, ela molda-o. Corre-o sem originalidade. Primeiro, as novidades são comentadas, escarrapatadas como osso atirado à fome, em perseverante atenção de língua que faz caminho até à última lasca de fêvera.  É nesse período que toda a gente ajuíza miudamente e forceja por acrescentar. Depois, é como se a fome de conversa sofra desgaste à medida do aumento de rotações da Terra. E, por ausência de acrescentos e de gente que o receba em embrulho de novidade, o assunto deixa de apetecer. Aborrece. Cede lugar.
Mesmo nesses que a língua sovou, ensaboou, esfregou, torceu, a vida desenvolve mecanismos de compensação que amortizam desgostos, aconchegam consciências e aplacam paixões e amores. As iras viram ódios mansos ou apenas más vontades e resolvem-se, quase sempre, com tréguas que se tornam paz definitiva, ou vêm a terminar  em simples torção de pescoço odiento a impedir-se de ver o odiado; ondas de tempo limam arestas aos desgostos insolúveis que pousaram no banho-maria das lembranças; os sonhos, mudados em soberanos impossíveis, giram na estratosfera e a alma guarda-os etiquetados e quiméricos,  “O que não pode ser”.  Contudo, foram alguma coisa: sonhos.

Na aldeia, as folhas de jornal serviam a embrulho de sabão azul  e outros artigos de lavagem. As notícias, em regra, eram locais.  Corriam de boca em boca baseadas  no diz que diz colhido na mercearia, na taberna, na igreja. E era rastilho que chegava a todos os fogos, acrescentado de uns lados, rasurado de outros. Havia quem se aproveitasse do corre corre das novidades e, à sombra do quase anonimato, desse voz a ódios antigos e invejas malsãs. Se a difamação era de peso e encontrava gente honrada e de princípios, morria no posto da guarda nacional republicana onde os guardas não se coíbiam de uns sopapos em caso feminino e duras sovas se masculino. Além disso, multavam os provocadores e, em casos mais graves, provavam o calabouço. Difamar, era sistema de linguarudos mentirosos que viviam galhofeiros  e destravados de boca e consciência. Mas o balanço das novidades fazia-se na oralidade, cada um no seu papel, passando o testemunho. Depois da visita a meu pai foi um nunca acabar de perguntas. A reabilitação  da nossa família começou, como era de regra, numa salutar cusquice. O  mérito coube a minha mãe e sua tristeza desalentada, por via das condições em que o achámos.  Depois de muito preocupar e inquirir, a aldeia transmutou. Meu pai virou história aceite e condoída e reapossou do nome; eu, deixei de ser “a filha do comunista”; minha mãe regressou à sua condição de mulher casada com marido ausente. O grupo envolveu-nos num abraço compreensivo e a cusquice amorteceu, mudada em lamento e apoio.  Adaptei-me com veemência a vivermos as duas e gozei quanto pude o papel  de vítima, deliciada por ser objecto de tanta atenção e olhar penalizado – extensivos à escola e até à professora -, e propus-me, sem a arte de Lídia, esticar a situação quanto possível, sem reparar que era simples beneficiária dos eflúvios acarretados pelas parcas conversas maternais.  Entretanto, presa do crânio descabelado e ossudo e da magreza de meu pai sob a roupa, temerosa do ar bovino dos guardas prisionais e daquele mar que não me descansava, neguei-me a voltar a Peniche. Decisão sem préstimo, que nem a minha mãe foi permitida nova visita.  

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