quarta-feira, 30 de agosto de 2017

História Esquisita com Beldroega

O cemitério português é uma chatice cheia de pedras e jarras pesadíssimas onde nascem flores plásticas. Não aprecio cemitérios. Como diz um frade conhecido, não mora lá ninguém; ele não tem lá que fazer, eu, por acaso, tenho. E hoje calhou ir a um. Como os mais, sem vivalma. Era eu e o bem aventurado sol que, decerto por me ver só, quis acompanhar. E as minhas tarefas domésticas. Sim, aquelas mesmas de limpar pó, lavar, varrer, arrancar ervas daninhas que medram à velocidade da luz em lugares adubados. E não garanto, mas quase aposto que os sardões amarelos e verdes que se assustam comigo e eu com eles ainda lá passeiam pelos subterrâneos. Haja Deus que hoje nem havia calor em demasia e não se quedaram de olhinhos desconfiados a olhar-me de lado, que é só como sabem olhar, e o meu coração logo na garganta que nem sei como é que ainda consigo dizer ai e saltar para trás com pernas de mola enquanto eles somem numa repelência que me dispõe ao vómito. E posto que sózinha e avoada, esqueci o chapéu e tive de aguentar-me à soalheira (solinho não amofines que bem sabes a falta que me fazes e o agrado em que te envolvo). Eu lavando e lavando as moradias empedradas (coitadinhos dos mortos soterrados lá em baixo) e a pensar nos meus chapéus tão pipis, que me emprestam um certo quê e sou pata que fica menos pata. Pronto, é isso, o cenário é de valor negativo e penso em coisas positivas, como uso antes de adormecer. Entretanto, também esqueci o elástico de prender o cabelo e lá andei no meio do mato, pouco vendo de pedras e jarras. Quer dizer que o franjado me esbateu os rigores da compaixão. E quanto o meu chapéu de gordo laço preto e aba derrubada me faria outra! sombreava-me o olhar cujo me faz muita falta, mas  nada perde em não ser visto; e aposto que as maçãs do rosto iam parecer geradas no glamour da Paramount ou por aí, e em tudo opostas ao jeito de mexicana pobre e sem cintura  que me cabe (falando verdade, não há chapéu que renda na cintura). Pois estava eu nestes preparos e encandeada de quase tudo branco que os óculos de sol também em casa (cabeça, cabeça, o Variações tinha razão), dizia eu que me entretinha a esquartejar, braço a braço,  uma beldroega do tamanho de um naperon, a faca uma lástima no corte, quando oiço uma voz mesmo ao meu ladinho,
 - tem lume?
Palavra que nem liguei. Sou um bocado dada a falar sozinha e inventar coisas; por vezes oiço passos e não vem ninguém; sinto os assentos das cadeiras a ir abaixo por desporto; e outras bagatelas que não são portas a ranger nem móveis a resmalhar. E, convenhamos, ninguém vem para o cemitério pedir lume, há muito lugar para isso neste mundo de Deus. Portanto, dei pressa ao sadismo sobre a beldroega advertindo-me em pensamento, estás a alucinar, tu tem cuidado com o sol que te faz mal à moleirinha. A congratular-me, vá lá que a linfa é pouco vistosa. Mas a voz repetiu,
- tem lume?
E havia uma sombra na pedra. Alto lá que isto é a sério, pensei, a beldroega presa por um braço que nem garota mal comportada, o redondo do naperon de antes num breve triângulo de queijo  que sou desalmada a tripudiar intentos da natureza. Investiguei de cabeça ao alto e a voz tornou,

- só pedi lume, não precisa apontar-me a faca. 

3 comentários:

  1. Gosto de ciprestes. As pessoas associam-nos de forma um tanto negativa aos cemitérios mas isso não me incomoda nada. Também não me afligem os cemitérios. E convém não nos esquecermos do lume, nem das velas... :)

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  2. Não entendi a última frase, mas obrigada pela visitinha:).

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  3. Não tem qualquer subentendido. É só mesmo porque costumo acender uma vela nas campas que visito. E supus que quem pedia lume o fazia com essa intenção.:)

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