quinta-feira, 15 de março de 2018

Na Sala dos Fundos


Não há manhã em que não lembre a nossa casa. Penso no catre onde dormia a um canto da cozinha, no cheiro do lume de chão que rodava por ela inteira, um fundo de cinza morta a transpirar das traves do tecto e que me dava ao nariz o aroma caseiro. Aqui não há disso.  Está muito bem que ganhei quarto só meu, cama com colchão, mesa de cabeceira onde acabido as roupas de baixo, tudo dobradinho e lavado. Na última gaveta, arrumados mesmo ao de cima, os papéis do médico; por baixo, a recato, os restos de um namoro que não surtiu. Na parede do fundo, o meu guarda vestidos com espelho. Abrindo a porta, vestidos e saias que bailam à larga, tudo prendas da minha menina. E o casaco que não visto, sobra do tempo em que um homem engraçou e me achou bonita. O tempo que afeiçoei ao amor pegadiço.
Acordada antes do galo que mora no relógio, fico-me no quente a esticar os braços dormentes. Depois, abro e fecho os dedos que a artrite já entaramela e vou imaginando, nos longes da minha terra, as galinhas que galgam para o dia, uma a uma, sacudindo penas endorminhadas, passeio de cautela matinal junto à rede, as patas muito abertas a palpar o chão como se em terreno pantanoso, pisa aqui, pisa ali, olhos de botoeira desconfiada. Oiço os cães que correm soltos e raivosos de visitas, esganando-se a cada passante da estrada. Sei o trovão no tractor do Zé Custódio que  ruma aos campos do outro lado, além da curva do rio. Conto os passos surdos e desavisados do João maluco que corre a aldeia de ponta a ponta desde que nasce o sol, descalço ano inteiro, a planta do pé afeita aos caminhos e dura como sola. Sacudo as moscas que se esgueiram pelo intervalo das tábuas do sobrado e me azocrinam a paciência e apercebo o rumorejo do gado embiocado na loja, a inquietação a percorrê-lo mal a luz desanuvia. O sangue pede-lhe movimento e porta aberta, morre por andar nos cabeços a escolher iguaria. Revejo a sorna dos gatos que se atardam amodorrados, pardos novelos rentinhos à cinza borralhenta da lareira. E a altura de minha mãe a encher a cozinha na pressa sacudida dos tamancos, troc, troc, dedos de hábito compondo o avental sobre a saia comprida tanta vez enfiada ao avesso, uma trepidação sanguínea no fornicoque de braços e mãos. Ainda livre de ganchos e carrapito, a mancha escura do cabelo alastra na blusa. Faz lembrar a artista italiana que vi certa vez no cinema onde acompanhei a menina e o namoro. Já não recordo o enredo, ficaram-me só os braços dela a sacudir o ar, as mãos lá em cima numa nervoseira que só visto. A menina garante que é grande actriz e se chama Anna Magnani. Do que me lembro dela, vem-me à cabeça um vento forte que tudo leva  de vencida. Minha mãe, que Deus haja, também era assim um remoinho. Que apenas soprava baixo com meu pai. E nem sempre.
Depois, travo lembranças e despertador. Apronto-me em movimentos certos e de muito ano. Enfio a roupa de trabalho e rodo para o mundo da cozinha. 

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