domingo, 29 de abril de 2018

Convergências de acaso


Gosto de igrejas. Admiro-as desde o exterior, mas é no interior que existo, penitente. O ambiente de silêncio propicia o recolhimento, ainda que nas invernias se confunda com desacerto e vazio de friúra que afugenta os mais afoitos. Ignoro se Deus as habita sempre ou apenas esvoaça de longe a longe pelos domínios que o convénio dos homens Lhe determina, a Ele que, por essência, é pura indeterminação. Talvez a candura de Alberto Caeiro O resuma cantando em brevidade lógica o Tudo que Deus é. “Mas se Deus é as árvores e as flores/ e os montes e o luar e o sol,/Para que lhe chamo eu Deus?/ Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar/”. 
Ora, supondo mesmo que tal ser supremo as não habite ou des-exista, fica-nos o sonho, o desejo místico dessa omnipresença palpitando em cada ogiva, poalha coada com a luz que entra por janelas altaneiras; olhar que nos mira dos frisos das colunas,  haste volteando nos arcos de volta perfeita. E a certeza de que o temor dos homens Lhe outorgou as mais belas criações dos artistas de época. Do pequeno mundo que conheço, em nenhum lugar como em Itália as igrejas devieram repositórios de arte. Só ali o povo oblitera o lugar e, num  deslumbramento, se excede em retumbância exclamativa.
Corria o calor da tarde em Ravena quando passámos perto de uma igreja e ao chamado de órgão mavioso, entrámos. Decorria talvez um ensaio para concerto e por longo tempo nos subtraímos ao calor da rua, presos à sincronia de dedos e teclas. Ali, acendi uma vela e copiei um propositado poema.
Ora, foi  por gostar de igrejas que na Calle Alcalá entrei na Iglésia de las Calatravas. Sem imaginar que, no interior, decorria o ensaio do Concierto Davidson Chorale and Orchestra from Augusta, Georgia.  Eram teens entre os quinze e os dezasseis, dezassete anos. Todos made in USA.  Ensaiavam o que nos pareceram cânticos espirituais negros. Com solos lindíssimos e respostas de coro em uníssono. Jovens a tocar e cantar com mestria angelical. Ficámos até ao fim. Nos breves intervalos, os garotos voltavam à idade, brincavam, conversavam, dançavam com o inato donaire da mestiçagem. E logo o que julguei ser uma professora de canto, ou talvez a maestrina que os dirigia, avisou brandamente, “é o nosso último concerto, espero que honrem esta cidade como às outras por onde passámos. Vamos deixar nas pessoas boa impressão, ok?”. E tudo acalmou.  Quando o ensaio terminou e os garotos passaram por nós, deitaram-nos soslaios sorridentes por entre passos de dança, o corpo pletórico e irrequieto, cansado de tanto respeito no altar. Um dos garotos olhou-me, cumprimentou e levou a mão ao boné. Uma simpatia. A sobrepôr, ficou-nos o cristal puro das vozes femininas que, no meio de conversas e sussurros, já de saída, trauteavam algumas notas soltas, agudos que eram flores a altear na igreja e desabrochavam até à cúpula.   
Há acasos felizes.                           

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