sábado, 14 de julho de 2018

Caminhos da Cal


Portugal está cheio de vivendas e podemos determinar as datas de construção pelo modismo de cada uma. No tempo de construção  da casa, imperava o azulejo. Meu pai, que fez nascer um monte onde antes era espessura de mato, sobreiro e répteis a eito, olhava a cal que resplendia a invejar, “O Zé Custódio é que teve juízo, a casa é toda forrada a azulejo, nunca precisa caiança”. A esta afirmação, nascia-me a imagem de uma casa guarda-jóias, onde as pessoas mal respiravam, o azulejo a tolhê-las falho de porosidade.  Mau grado o trabalho, rezava afincadamente para que o azulejo fosse caro, jeito infalível  de não chegar às nossas paredes.
Por vias que o destino e as modas engendraram, o nosso monte, erguido em  claridade e  barras azul-turquesa, respira hoje a densidade da cor em azul-real. Se nele me fixo, logo me vêm à memória os anos setenta e a odisseia de verão que nos deixava exaustos e felizes após a conclusão. Prontos para o campismo, ironicamente, sempre na praia.
Acontece que, se o trabalho braçal aperta, logo em reflexo de mola me salta zanga e mau modo. É uma falta de paciência de tudo, muito desinspiradora. Encrespo, devenho ouriço. Na verdade éramos apenas seis braços de trabalho: eu, minha irmã sete anos mais nova e meu primo que passava férias. Dos meus irmãos pequenos queríamos distância. Depois do pequeno almoço, ordenava que fossem brincar longe e por lá ficassem até à hora de almoço. E, disfarçados de pedintes miseráveis (vestíamos andrajos que havia no sótão e depois atirávamos fora), embrenhávamos o pincel nas paredes, numa linguagem de tu por cima e eu por baixo, e esquecíamos o horário no desejo de “dar a primeira demão” antes de almoço. Mas o verão. Mas a sede.  Mas a água escondida no bojo das bilhas de barro içadas no poial. Meu pai sabe Deus onde, e eles a uma insistente janela aberta, ó mana temos sede. Ou, ó mana estamos cheios de fome. Ou ainda, ó mana caí ali nas pedras, anda lá pôr-me água oxigenada e mercúrio que isto está-me a doer muito. E eu impaciente, pincel acima e abaixo, a descer e subir de um escadote toda afogueada para não haver atrasos com o pincel do baixio, ó gaiatos de um raio, saiam daqui, já não os posso ver – e num desabafo -, aguentem mais um bocado, poças. Eu que tinha o almoço por fazer e, de vez em quando, me adiantava para poder ir até à cozinha dar mais um avanço na refeição, a tempo de voltar antes de atraso irremediável que a secura das paredes era saudade urgente, sugava a cal ao toque. Meu primo sorrindo, regador em punho a dissolver pingas e a esfregá-las, impedindo agarrações de cola ao cimento do poial, que o ar seco e quente tem sua inclemência.
Numa manhã particular, os dois garotos mais endiabrados ou eu mais retorcida do humor, visitas e queixas choviam em intermitência. Depois de muita impaciência latejante, de gritos a enxotá-los, meu primo antecipou-se-me. Largou o regador e o esfregão e, mão esquerda aberta sobre a totalidade do rosto, pegou o garoto por um braço e pô-lo a distância peremptória, sai daqui que já não te posso ver – e abria muito os olhos risonhos por detrás dos dedos reiterando -,  não vês que não te posso ver?!
E nós duas rimos e largámos os pincéis. Eu para a estupefacção do garoto, afinal queres o quê. E ele tolhido de inesperado, fixo ao chão, em voz temerosa, podias-me dar só a água. Eu, palavras de abrir cancela, vai lá para cozinha, não precisas ficar aí especado.  
Gesto e palavras autonomizaram e permanecem, sai daqui que já não te posso ver.

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