domingo, 14 de julho de 2013

As Raparigas

As crianças têm do mundo uma percepção que é só delas. Vêm os estudiosos e nomeiam-na:  sincretismo, realismo ingénuo, egocentrismo e outros ismos insignificantes. Juntos, não nos dão a forma como vêem a realidade. Nos olhos da infância, o supesar automático de todas as coisas mede-lhes a pulsação. Vêem sem esforço e, se as imagens desimportam, logo esvanecem. Des-existem. Velhice e juventude distinguem-nas por um todo de pormenores alinhados em prateleira breve que só elas observam,  desinteressadas das marcas tradicionais de cada idade, que não sabem avaliar. Buscam outros sinais. 
Era assim que ele sabia as duas raparigas que às sextas encontrava na mercearia. Atraía-o a ligeireza grácil dos seus movimentos e olhava-as a  imaginar-lhes os ossos leves e dançarinos ligados por elástico resistente como o da fisga que o tio lhe tinha feito. Eram novas no modo como viravam a cabeça para o chamado da taberna e dos homens; eram novas no jeito inconsciente de mãos a compor o decote e alargar os laços erguidos que o rematavam; mas, sobretudo, eram novas pelo brilho do olhar e a vida que lhes cabia nos sorrisos. Usavam uma delicadeza de dedos a rodar o cinto elástico na cintura, em contraste violento com o cansaço que alastrava das outras mulheres; e viravam-se num bailado de saia que vergastava o mundo átono das casadas, a morrer num cochicho de meia inveja, elas voltavam-se e as saias rodavam todas em canudinhos. Ele gostava delas e dos ademanes que traziam até à loja, o seu meio metro de altura perpendicular à inquietude das mãos que inauguravam gestos na asas da balalaica. Pacientes, aguardavam vez num aparte de sol e caracóis escuros. Tão bonitas as duas! Contudo, sem um perfume a antecipá-las, que o cheiro de sabão e lavagem era o que os tempos permitiam. Às vezes, em distracção, erguiam a balalaica vazia e punham-na debaixo do braço, as fitas do decote a prender no entrançado da palha. E ele, que lhes seguia gesto e passo, desejava estar dentro do cesto, escutar-lhes as conversas de risinhos curtos, sentir o cheiro do sabão a desprender da pele… quem sabe, ouvir-lhes o coração. Tão bonitas as duas! Mas uma delas, mais. Uma elegância animal e inconsciente a despedir, que ia dos olhos esverdeados ao vôo negro dos caracóis, privilégio da natureza a sobrevoar a condição. E, quando em casa, é mais bonita que a outra, não é mãe? A mãe num sorriso triste, é sim filho. Mesmo muito mais bonita. Tão bonita que uma vez um descapotável parou quando ela vinha estrada abaixo para o avio da semana. Saiu um senhor todo bem posto que pediu para falar com a mãe. Foram os dois lá a casa da senhora Maria Afonso e o senhor pediu-lhe se o deixava levá-la para o cinema. Queria filmá-la. Dizia que levava a velha e tudo. E ele entusiasmado, e ela foi? A mãe deixou? E o fatal da resposta, uma má vontade a empurrar o pacote de açúcar até à prateleira do fundo, não. E num desabafo minado de desânimo, não sei porquê. Até hoje, ser bonita só lhe valeu o pior. E ele, o pior é quê, mãe? Mas a mãe, tu não percebes, quando fores mais crescido a mãe explica-te. Mãe, ela não tem marido? E a voz da mãe veio vindo como se estivesse dando a mão à rapariga, tem sim filho; e tem uma filha pequena, quase do teu tamanho. E o pai que entrara entretanto, Nunca vi mulher mais bonita, mais trabalhadora nem mais maluca com os homens. E ele a imaginar que ela ficasse tonta como quando brincava de andar à roda até cair e ficava maluco de não se ter em pé, o que é maluca com os homens? O pai bem disposto, Olha o piolho…
Observou os gestos comedidos da mãe, o seu mundo expurgado de gargalhadas e risos, a pausa da voz a adormecê-lo…a mãe teria sido assim rapariga? Todas as mulheres que encontrava impunham-se-lhe com seus olhos de criança castigada; onde teriam deposto o vívido dos gestos, os olhos brilhantes, as mãos nervosas, o corpo de espiga a ondular...? E se os tivessem perdido?! Não entendia tamanha mudança. Mas sabia sem entender que aquela rapariga bonita era uma solteira por dentro. Que tudo nela era solteiro e juvenil. Tudo, menos a voz que, ao invés da pureza dos gestos, emergia meio rouca, num tom baixo e secreto, calma de lago quase inaudível.
Oh! Como desejava crescer e entender o tanto que todos deixavam por explicar.  Temia mesmo que a vida lhe fosse insuficiente.
(continua)

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