quinta-feira, 18 de julho de 2013

As Raparigas

Tanto que a velhice se esforça para viver. Tanto. Quem sabe se não paga a pena. Dei por mim nesta cegarrega do pensamento depois de ter vindo da rua, que eu não sou nada destas coisas. Cheguei das compras e o saco pesava-me a vida. O Afonsinho! O Afonsinho da dona Aldegundes! Um garoto miúdo, morenito, que eu e a Belmira víamos na loja, se encostava quase a nós e enchíamos de beijos de azougue. Que nos mirava calado, corpo de acólito em missa, a transbordar atenção.
A idade já me deslembra. A idade e o resto. O meu genro matreiro, está com a ti osguinha, não é? Vamos lá para a cama. E, em calhando, ontem, a ti osguinha visitou-me. Não. Eu é que a visito. Eu é que não sou capaz de passar sem ela.  
Quando, de exames na mão, a filha me renovou no médico, eu a lembrar os olhos dos doutores que mexiam nas máquinas; não sei o que tanto diziam a bichanar uns com os outros, mas davam-se ares de quem espreitava por aquelas traquitanas e me descobria a vida toda. Eu, olhos no chão, a contar quadradinhos pretos e brancos que me faziam doer a vista e o doutor da consulta a olhar os exames num quadrado com luz que os fazia clarinhos e o meu lado de dentro à mostra para quem quisesse, sem um trapinho a escondê-lo que nem a pele se enxerga. E ainda estou para saber como não escorregavam parede abaixo, que até parecia bruxedo segurarem-se sozinhitos. E quando já ia para aí no quadradinho trezentos preto, os brancos todos contados, fora os que estão debaixo dos móveis está bem de ver, que os das cadeiras não se safaram, ele para a filha, alheio de mim, a pensar que era surda ou estrangeira, ou sei lá, ela mata-se se continua assim. Tem que deixar de beber, o fígado aumentou-lhe para o dobro. E ando a matar-me. Não é que me queira matar, o que eu mato são os dias e as noites, que não os aguento a seco. A minha mãe já os matava. Um a um. E agora eu. Primeiro, a filha esvaziava-me as garrafas, mas com o tempo – o tempo que ensina muito e muito pesa -  desistiu. E vou adormecendo as horas e os minutos todos, até que se me acabem dentro do quarto. E fora o fígado que cresce e me dá que fazer e as garrafas que me estão na lembrança como um ar que se respire, sou normal. Como a minha mãe que Deus haja. Iguaizinhas, nós. Levanto-me morta de sede que não é de água. Depois de matá-la sou normal, faço a minha vidinha, ajudo em casa, vou à praça no cedinho,  todos ainda no sono.
 Hoje, entrei no mercado e tudo no lugar, ninguém diria que o passado me apanhasse assim à sorrelfa, pela fresca. Na entrada, empurrei as portas de vaivém, que nem sei porque lá estão, e um cheiro de fruta misturado com verduras deu-me logo volta ao estômago. As mesmas vendedoras com os mesmos jogos de sorte para venderem o de ontem e outros dias, como se de hoje. Dei um giro de reconhecimento e elas ainda na fase do um, dois, três experiência. Estremunhadas de pele, penas de almofada a ensarilhar pestanas, sorrisos mortos de sono em lábios de desábito a repuxar nos cantos. Esticavam um bocadinho o pescoço e  o pregão parecia um chiar de roldana com falta de óleo, dona Cidália olhe as verduras fresquinhas. E uma mão a passear fracamente pelo que julgo ser a cabeça das hortaliças mas não garanto, a experimentar gestos, deixa cá ver se este ainda funciona, ganhando confiança à medida do acerto, afinal está cá o jeito todo, não perdi nada de noite.  Numa ponta da banca, termos a fumegar café com leite e, na outra mão, bocados de pão embrulhados em guardanapos de papel; desligada da parceira que passeia sobre o verde, esta mão conduz-se sozinha e, sintonizada com a oferta, é servida, aponta-me, desconvencida, a pistola do pão dentado. Um dia aceito e quero ver com que cara ficam. 
 Decidi-me pela banca da Henriqueta. Por nada. Ou talvez porque ela, de boca cheia, dispensava fios de conversa. Enquanto apreçava um molho de espinafres a olhar-lhes a verdura, que isto de verdes engana tudo e às vezes são de há três quinze dias, com muita água benta. Dizia eu, que enquanto assim, se me abeirou um interesse antigo, a pedir recuos no tempo, a minha memória aos saltos para trás que nem um canguru, pim, pam, pum…. e antes que chegasse a algum lugar, é a menina Cidália, não é? E eu nessa altura não era ninguém por não ter um tempo a que pertencer, mas é claro que ele não sabia,  fiquei de boca aberta – calculo que de boca aberta – a dar rédea à memória, despacha-te, despacha-te. E podem ter sido os caracóis ainda loiros, ou o jeito dos olhos, ou mais a linha do queixo, Afonsinho!... e de repente eu não no mercado, na loja, saia aos canudos e cinto elástico, só porque foi isso que ele abraçou. E depois do abraço, não o Afonsinho mas um Afonso cheiroso, homem feito, barbado. E eu velha, a dar-lhe pelos sovacos. O meu saco no braço e ele um soslaio pesaroso, já não usa a balalaica… E quase me senti culpada de, estragou-se; passou de moda. E os olhos do Afonsinho regressados, em saudade de criança retomada, tão bonitas que vocês eram. Tão bonitas. Virou-me para a luz da rua e as portas de vaivém cumpriram,  nunca vi olhos como os seus, nem encontrei linha de pestanas mais perfeita. – e num carinho de admiração - Que bonitas são ainda. E não sei explicar, mas vieram-me as lágrimas e tudo. A mim. Que me aguento à bronca da bebida, que não chorei quando os netos nasceram, que no enxuto corri tanto mundo aos ziguezagues.
Ai Afonsinho, filho, como a vida era! Que a não saibas. Não sejas como os médicos que me leram os interiores. Que não desconfies como ganhei a saia dos canudos, não descubras nunca o desaperto do cinto elástico. Que tão cedo se é às vezes mulher, a repartir homem com quem não seria nunca de fazê-lo. 
Querias saber da Belmira. Mas a Belmira, meu anjo, conversamos depois, que tenho ainda de a ajeitar na memória. 
E a minha filha coitada, tão boa para mim, a estranhar-me o mutismo no sofá da sala, a televisão uma negrura de boca fechada, a mãe está bem? E eu com a Belmira na ideia, imagina tu bem como as coisas são, vi o Afonso da D. Aldegundes.
Pode que fosse do escuro da sala, mas tudo me pareceu que ela embatucou.  Nem um ai lhe ouvi. O tic-tac do relógio a matraquear segundos uns atrás dos outros que me davam fernicoques e a minha Lucinda parada que nem estátua de santo. E eu, ó filha diz alguma coisa, mas ela saiu sem palavra e fechou-se na cozinha.

(continua)

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