quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Flores de Pó

Com os namoros da altura nada aprendi, eram bastante diferentes. Domingo à tarde, esperava paciente a bicicleta e mal disparava na minha porta, saltava um valado intrometido, corria o mais que conseguia até casa da vizinha, a clamar alto e bom som, vem aí o meu namorado, vem aí o meu namorado, e entrava na casa de jantar onde a Clementina, lábios cor de rosinha claro, dava um toque no caça rapazes a mirar-se num espelho de mão. E sentávamo-nos as duas à espera do “nosso” namorado. E nunca a Clementina um jeito diferente, ou qualquer enleio dos sentidos a toldá-la. Bom, admito, é difícil encontrar quando não se procura. E também conta o facto de me pespegar que nem carraça no colo do namorado que era também meu, a encher-lhe a paciência de cantigas e perguntas. Se hoje encontro a Clementina e o marido na rua, num braço-dado feito de anos, sobe-me uma vontade saliente de desculpas. Mas ocorre-me o tardio e inútil que seria e deixo-a de atravesso na garganta, ela pra mim, apertada na laringe, então…? E eu, não vale a pena, desce lá à memória se não te importas. E fico a guardar-lhes a velhice sossegada, pensando que talvez o dano tenha sido nenhum.
Quando andava na primeira ou na segunda classe – talvez – um vizinho e companheiro de brincadeiras, olhou-me com o jeito terno que hoje sei que me reservava –  tarde sabemos as certezas da vida -  e começou uma conversa estranha, mesmo que digas que não, eu não me importo, ouviste…e eu, é o quê, queres brincar a outra coisa? Estamos aqui tão bem… Andávamos de joelhos pela terra, descalços, a “lavrar”, ou seja íamos deixando um rasto feito por joelhos, pernas e pés, bastante parecido às lagartas deixadas pelos tractores. Eu, entusiasmadíssima a levantar a saia para não a atropelar com os joelhos envoltos em nuvens de poeira, imaginando-me numa espécie de trabalho de que a terra tirasse benefício. Então, ele parou de joelhos, mesmo na minha frente, quero foder contigo. Olhei-o naturalmente e perguntei, isso é o quê? E ele, vamos ali para trás da barraca, despimos a roupa e ponho-me em cima de ti. Achei uma grande palermice ir para trás da barraca da minha tia despir-me, mas só acrescentei a recordá-la com o seu monte de lixo a fumegar, mas ali é o monturo e o esterco, cheira mal. E ele, pois mas estamos só os dois; eu já fiz isso com outras gaiatas, mas é contigo que quero; e reiterou a olhar-me meigamente, é sempre contigo que quero. Mas eu não quero, não te zangas? E ele num sorriso meio de compreender, não me zango, não, já desconfiava. E continuámos a “lavrar”, assunto morto e enterrado. Nunca, nos tantos anos que ainda brincámos e mesmo quando deixámos de brincar, voltou a tocar no assunto. Certo dia, a minha mãe avisou, tem cuidado com o …Pareceu-me que duvidava dele. Desagradou-me em extremo. Descansei-a, que era com quem mais gostava de brincar, que nos dávamos bem e não havia essas coisas. Entretanto, as garotas tinham vindo gabar-se. Gabar e tentar aliciar-me com pormenores que desconhecia e me desinteressavam, a encher-me de recomendações, não contas nada a ninguém, jura lá; isto são coisas feias. Quando perguntei, e por que é que fazem, elas, gostamos; e uns risinhos parvos de umas a outras que me excluíam. Então eu amuava e ia embora com elas nas minhas costas, mariquinhas pé de salsa tromba do mesmo animal, até me perderem de vista O certo é que não espreitei o monturo da minha tia; se tinha que atirar lixo seguia cantando para lhes dar tempo a escapulir, caso por ali andassem. Faltava-me a curiosidade, mas não desejava perturbar. Julgo que quis guardar desse eterno companheiro de brincadeiras, sempre pronto aos meus devaneios, a imagem tocável e limpa, de encaixe completo nas reentrâncias da memória.

(continua)

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