sábado, 18 de outubro de 2014

Red Hair

Hoje vou escrever sobre as mulheres, que é sempre para elas que escrevo. Não o sabem talvez, mas prefiro-as às crianças loiras e etéreas das papas cérelac. E também a todo e qualquer outro ser. Porque sim. Enterneço nos pneus de gordura a debruçar da roupa, as rugas em puzzle miúdo pelo rosto. Conheço-as de mãos lotadas, pejadas no esforço da vida, estouradas de luta. São as mesmas mãos que passeiam um lazer de carrinhos de compras. Então, plantam-se indecisas entre as alfaces ou avançam braços decididos para as embalagens de carne, depois de longo olhar a deitar contas a bocas e carteira. Soberanas, matriculam cada artigo e inventariam prioridades.
A igualdade de sexos em responsabilidade e trabalho. Banalidade mais afrontosa! O mundo depara-se-nos sem projecto, está. Afirma-se em determinismo  saliente que mofa de sermos aspirantes de liberdade. Vem esta conversa porque impressionei em azáfama pós laboral onde sou entre iguais, ou seja, me vi de súbito plantada em partilha de interesses, olhares, questões, com vários grupos de mulheres. Num deles havia uma ruiva que, sem palavras ou quaisquer sinais de vivacidade, desde o início se afundava na cadeira a esconder pernas fatalistas. Era um cansaço feito de movimentos lentos, envelhecido, a que não conseguia subtrair-me, os olhos, estou enredado desde as pestanas, não sei soltar-me.  Se a espreitava, a red era toda lassidão, olhos vagos, um desalento de dar dó. No intervalo, a maioria das mulheres saía, conversava, fumava. A red sentada, numa opacidade tortuosa.
A princípio observava-a a medo, temia que sentisse a devassa, imaginava a pele branca a eriçar estranhezas incómodas, pelos de seda em sentido, não aguento estes olhos, quem me dera o oblongo de não ser notado. Mas rapidamente percebi que não a afectava. A garota vivia na sua bolha, em consumição. E quanto mais a olhava maior a certeza de conhecer aquele rosto. Mas de onde, perguntava-me. Estudava-lhe a pele branca, a cenoura dos anéis tombando num arrependimento baço junto ao rosto, os olhos cristalizados em admiração triste, a boca pequena desaparecendo, lábios virados para dentro. A ruivinha tinha uma linha de rosto pura e, não fora o desalento que a ocupava sem folgas, diríamos ser anjo de Botticelli.
Certa noite, houve um aniversário com bolo e a red hair, engaiolada no seu cansaço triste. Quando só restava ela na sala, levantou-se e seguiu-nos. Estávamos em volta da mesa, alegres do momento, palradoras e entusiastas. Esboçou um passo arrependido para o grupo e foi sentar-se numa cadeira encostada à parede, mãos juntas no regaço, o corpo a gritar mudamente, tirem-me daqui. Porém, ao som do “Parabéns a você”, como que acordado por um botão, veio vindo depauperado, mãos nos bolsos do casaco largo. Juntou-se-nos sem um som, a boca a encolher até ao risco fino. Enquanto as outras partiam bolo, o comiam e gracejavam, ela deu as costas e voltou para a sala a reservar-se de tocar em alguma coisa. Por essa altura, eu já concluíra que conhecia um familiar próximo, uma irmã, a mãe...
Ontem, estava eu distraidamente a dar passagem numa rotunda, passa a red arrelampada, a dar-lhe duas voltas completas. Os olhos dela a cruzar-me num azul cinza dormente, de felicidade nenhuma. E, de repente, a memória devolveu-ma. A menina mais linda do super, uma ruivinha alegre, a contar pormenores de vestidos de noiva e alianças enquanto as mãos esguias afinavam a máquina do fiambre. Vi-a assim tal qual, no seu esplendor sem relva, mãos vivazes, voz doce, a rebeldia de alguns caracóis a espreitar no estreito da touca.

Que lhe terão feito a vida e os homens?! Tinha boquinha de coração e cabelo eléctrico. Que é da garridice gestual e das mãos certeiras que só a felicidade confere? Em algum lugar esta mulher perdeu a correnteza da vida. Fiquei a vê-la afastar-se, incógnita de mim e talvez de quase tudo, e pensei nas mudanças físicas que casamento e união de facto provocam nos dois sexos. Se abstrairmos de rotundices adiposas e outros problemas menores que o estado acarreta em alguma gente, a mudança inscreve-se com muito mais força no rosto - sobretudo nos olhos - e linguagem corporal das mulheres. Os homens, quase todos, passam incólumes no teste, por vezes até resplandecem (também existem mulheres resplandecentes, mas são muito menos). Talvez sejamos mesmo feitas de uma costela, somos mais frágeis. Ou talvez não. Quem sabe somos igualinhas dentro da diferença. Mas o mundo inteiro incluindo nós mesmas, carrega sobre nós, desde tempos imemoriais, o seu insustentável peso. E não se aguenta, red hair. Mas é só a princípio. Depois passa. Há sempre um arco-íris a espreitar-nos. Bastam-nos os olhos de vê-lo. Espero nos teus olhos. Sinceramente.

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