quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Despedida à Portuguesa

O segundo prato veio servido em duas grandes travessas redondas que a minha mãe usava sempre que, no Carnaval, fazia filhoses. A minha tia reunira o que tínhamos em casa: arroz dourado no centro, em pose artística, rodeado de pequenas omeletes de ovo singelo ou ovo com linguiça a alternar com raminhos de salsa e bolas de rabanete cru. A acompanhar, uma enorme salada de alface. Não sei o que eles pensaram, mas eu achei o máximo. Na verdade, nem quando almoçara na casa das irmãs me tinham servido algo tão delicioso e bonito. Finalizámos com uma baba de camelo divina, doce que desconhecia e me soube a único. Era uma malga muito grande cheia de doce. Mas os franceses comeram tudo. Os garotos ficaram sem jantar e sem doce. Só quem lhes assistiu a desilusão dos olhos depois da refeição, a olhar o concâvo vazio do recipiente, sabe do que falo.
Antes de dormir, os franceses gabaram a culinária alentejana e o modo de apresentar os pratos e nós - eu e o meu pai - a derreter de orgulho, eu gabando a cozinheira como podia, no meu parco francês. Estavam cansados mas de estômago satisfeito e deixaram para o dia seguinte os parabéns à nossa chef. E lá seguiram para roulotte e tenda, sem atender a ofertas de outra cama que não a sua.
No dia seguinte, tomaram o pequeno-almoço connosco e quiseram conhecer a vila mais próxima. Enquanto em casa se preparava o almoço, fui fazer de cicerone. Dessa visita relâmpago ficou-me uma certa vaidade. Nas bombas de gasolina mostrei ao empregado que sabia francês. E ele muito admirado, a inquirir em estranheza, você não andou no colégio, não passava aqui todos os dias de bicicleta?! E eu que sim, que lá é que tinha aprendido francês. Ele abismado com o ensino, ai sim, vocês aprendem mesmo a falar?! Então, aproveitei para me exibir um pouco mais, está a ver, está a ver. A segunda coisa importante e inesperada foi a birra que o meu irmão fez na papelaria, queria à viva força que os franceses lhe comprassem um carro de pedais. É claro que me envergonhou e fez o que não era habitual, atirou-se ao chão a espernear como um danado, chateado de morte com o carrito que lhe ofereceram. Enquanto foi pequeno não voltou a acompanhar-me em passeio. E bem sabia porquê.
Depois de um almoço com a fatal canja portuguesa e o fricassé  - ementa  que destináramos antes da invasão – a que os franceses fizeram as devidas honras rapando quase tudo e repetindo sempre, tirámos fotos. Os dois pais de braço dado, nós todos, só eu e a Bernardette, só eu e os meus irmãos, e por aí fora. E, quando já estavam a colocar a máquina no invólucro, a senhora adiantou-se e sem palavras puxou o braço da minha doce mãe, pôs-lhe a mão no ombro e pediu uma foto. Achei tão bonito! Já lhe notara o misto de pena e ternura nos olhos  demorados em minha mãe, um soslaio à perna inchada a contrastar com a outra e a extrema magreza do do corpo. Quando o marido terminou, ela beijou-a nas duas faces, fez-lhe uma festa breve no macilento do rosto, e eu vi as pálpebras da minha mãe a engrossar e a lágrima que se escapou sob as lentes da senhora.  Como o sem palavras pode ser lindo!
Depois despediram-se de nós não sem antes darem uma salva de palmas a minha tia pelos pitéus. Ela, de tão desvanecida, esqueceu-se de invectivas  sarcásticas e ficámos todos a acenar até desaparecerem na curva do portão que não havia.
Mal deixaram de ver-se, as mulheres suspiraram de alívio e os garotos logo pediram o doce a que não tinham tido acesso. E a minha tia abriu o sorriso, mandou a minha mãe para a cama descansar e fomos por tudo nos lugares e levar a mobília da vizinhança. Depois, foi começar outro jantar. Mais informal e para nós muito melhor. Os franceses no seu caminho para França e nós a gargalhar com o jogo de peripécias - cada um a contar o seu bocado, a fazer observações, a relembrar uma coisa nunca vista na minha aldeia: a invasão francesa. 
No mês seguinte - Setembro - a minha mãe acamou e em Outubro piorou tanto que só se levantou para tratar de colocar a minha irmã junto de mim, em Évora. Nessa altura, escrevi à Bernardette a contar as desditas todas, mas ela não respondeu. Confesso que não gostei, mas a vida era-me pesada demais, o curso exigia e breve esqueci a francesa. Essas férias do Natal foram pródigas em canseira e sofrimento; estive tão sozinha e trabalhei tanto que certo dia uma prima afastada passou na estrada, viu-me a lavar ao tanque e subiu a minha casa, a prima dá-te uma ajuda. E só depois da morte acontecer, quando a saudade me roía e talvez a doença ganhasse espaço, escrevi de novo à minha francesa, desimportada de que me não tivesse respondido. Pedia-lhe que me enviasse as fotos de férias que eram as últimas de minha mãe e quase as únicas, pois lhe desagradava ser fotografada. A francesa eternizou o tempo de meia página de carta. Não sabia o que que tinha acontecido às fotos. Tinham desaparecido. E lamentava em frases curtas a morte que todos antecipávamos.
Não voltei a escrever-lhe. Rasguei cartas e endereço para que não houvesse arrependimentos palermas. Hoje, reconheço o abrupto do corte. Aprendi que não sei viver sem as pessoas e que por vezes elas não estão no seu melhor momento quando escrevem; ou não dão igual importância às mesmas coisas; ou não nos entendem. Penso que, quem sabe, a própria mãe lhe tenha dito que não seria bom. Mas também sei que, se houvesse vontade, me poderia ter escrito depois. Nunca o fez. Terá desanimado de mim quando me conheceu fisicamente.

Ficou-nos a história da invasão. Devemo-nos essa lembrança de união feliz.

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