domingo, 1 de novembro de 2015

Olívia


O tempo levou-nos na correnteza. Submersas em tentáculos quotidianos, persistimos viradas ao umbigo e suas extensões. Vivo enleada em palavras enquanto tu persistes nas obras comunitárias que te organizam as horas, manifesto da tua agenda. Não entendo como te deixas seduzir por catequeses, missas e velhos sem destino ou direcção; mas a ti  “faz-te espécie” que eu perca horas a ajeitar letras sem préstimo, que ninguém lê e eu mesma esqueço (a mim também me faz espécie, mas é um ritual e agrada-me). Como as pessoas diferem sendo tão parecidas! Preciso de um exercício de bom senso para aceitar que uma vida – a tua – tenha tal conteúdo e daí lhe venham os toques de alegria que te animam. Imagino que eu te provoque algo semelhante.

Lá fora, a política enlouquece a fingir acordos que não duram, o país depaupera e hordas de refugiados morrem e sofrem às portas da Europa. A frágil e fingida Europa. Que oferece roupas e agasalhos, e brinquedos e livros e o diabo a sete, mas receia.  Que deixa passar – se deixa –, mas não acolhe. Armada em obtuso Pôncio Pilatos. Pergunto-me como pode ser levada a bom termo a inclusão dos refugiados se não beneficia de acção concertada por parte dos Estados. Não se criam infraestruturas, não se pensa que são milhares e milhares de pessoas em fuga e  sem um haver. Que vêm para ficar. Oh, Olívia, não me julgues ingrata, uma mal agradecida a tanto particular que se moveu. É tudo necessário, os camiões TIR com víveres e roupas e livros e bonecos e tanta coisa. Porém, tudo isso pertence a outra ordem e é quase irrelevante na solução do problema e na sua premência. Queiramos ou não, é agora um problema nosso. Nosso, enquanto Europa. Nosso, enquanto países envolvidos no acolhimento. Vai afectar-nos presente e futuro e reduzir o problema à sua dimensão moral e humanitária é simplismo. É também um problema social, económico e político. E tem de ser assumido na sua qualidade. Mesmo não aplicando o discurso – verdadeiro -  sobre a tradição humanista da Europa, é errado ignorar e dar as costas.

            Quem sabe, esperas resposta do Deus de bondade e paciência. Que te acalma e promete.  Ao invés, os meus deuses  são inclementes,  viram-me o bico da seta  e não fazem promessas. Privo-lhes com a veia poético-estóica, que apregoa o esforço porfiado e convicto: “vai...mesmo que sejam vãos os passos”. Olívia, essa bondade inalienável não me existe, apaguei-a ao nascer. Ficou-me o reduto breve da poesia. E  os passos.

            Eu acho que hoje o meu coração ensopou, está de portas abertas e à chuva. E é por isso.

Um bjo

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